Heroínas (exposição em Madrid, 2011)
Quando perguntaram a Frida Kahlo porque pintava auto-retratos, ela respondeu que passava muito tempo sozinha, entregue a si própria. Frida auscultava-se, sabia-se. O surrealista Breton definia-a como uma combinação particular de “candura e insolência, crueldade e humor”. Uma combinação de vida e morte, masculino e feminino, antigo e moderno. De política, sofrimento e introspecção. Nenhuma mulher até Frida tinha dito tanto de um país, um tempo, um género. Não por acaso, o seu Auto-retrato com colar de espinhos e colibri, de 1940, encerra a exposição Heroínas, que pode ser vista em Madrid, no museu Thyssen-Bornemisza e na Fundación Caja Madrid.
No quadro, Frida exibe um olhar ausente (próprio de quem pintava olhando-se ao espelho), uma pilosidade abundante (bigode-imagem de marca, as sobrancelhas unidas), a vegetação luxuriante da América Latina por detrás, os animais à espreita; e depois a coroa de espinhos, usada como um colar, que faz sangrar, e o horror do colibri, escuro como o sofrimento, morto, dependurado. Na parte superior do quadro, o cabelo meticulosamente arrumado, duas borboletas, de uma cor que brilha e contrasta com o negrume da parte inferior do quadro, uma manifestação de vida.
Poucas mulheres como Frida Kahlo souberam dizer o que são as mulheres. O que são as pessoas. Ícone feminista, a pintora mexicana não excluiu o drama amoroso, o tormento pessoal da sua representação pictórica. Mas ele nunca é auto-piedoso ou complacente. É simplesmente parte integrante.
A exposição Heroínas é dedicada a mulheres assim. Mulheres que passaram de Penélope a Ulisses. Que empreendem a viagem, controlam o seu destino, são conscientes do seu poder. Apesar dos constrangimentos sociais, dos estereótipos vigentes.
As fotografias de Marina Abramovic são eloquentes a este propósito. A mulher de cabelo esvoaçante que segura uma imensa bandeira – uma certa encarnação do mito de Joana D’Arc – não espera o seu príncipe encantado. Busca-o (se o quiser encontrar; mas ela escolhe-o, em todo o caso), montada num cavalo branco. O papel activo e decisório cabe-lhe a ela. A peça chama-se, ironicamente, O herói. Alguém estava à espera de que o herói, aquele que resgata, fosse um homem?
Outra fotografia de Abramovic: uma pietà invertida, nova encarnação de Joana D’Arc, a virgem guerreira. Mas, desta vez, é a mulher, desfalecida, que está nos braços do homem, que a contempla e conforta, ambos agrilhoados numa armadura, num cenário medieval e futurista. Há ainda, de Abramovic, uma fotografia que evoca Santa Teresa D’Ávila, a ascender aos céus/ a emancipar-se de uma cozinha onde os utensílios de alumínio, panelas, colheres de sopa, estão alinhados. A cozinha deixou de ser a sua prisão, e aquelas deixaram de ser as suas ferramentas. Agora, ela usa-as quando quer. Agora, ela tem querer.
“Heroínas é uma galeria de mulheres fortes. Figuras femininas activas, independentes, desafiantes, inspiradas, criadoras, dominadoras, triunfantes: figuras que podem ser fonte de empowerment para as próprias mulheres”, começa por dizer Guillermo Solana, o director artístico do Thyssen-Bornemisza e comissário da exposição, no texto do catálogo. (Solana dedica o texto à mãe, a sua primeira heroína. Serão sempre as nossas mães as nossas primeiras heroínas?) São dezenas de peças que fazem uma representação destas mulheres ao longo dos últimos séculos, e que recusam a representação convencional da mulher, quase sempre ligada à maternidade e ao erotismo.
Em Heroínas, não há pin ups nem madonnas. Não há mulheres submissas, que esperam pelo marido, e que são o ornamento de um enredo que não é o seu – é o do herói. Não há mulheres dengosas, que se afirmam no território da sedução, que morrem por amor. A única que parece prestes a suicidar-se, nesta exposição, é a poetisa Safo.
Do seu canto saíram versos como este: “No ramo alto, alta no ramo mais alto, uma maçã vermelha, ali ficou esquecida. Esquecida? Não, em vão tentaram colhê-la” (tradução do grego de Eugénio de Andrade). Oriunda da ilha de Lesbos, (daí provêm os nomes “sáfica” e “lésbica” para homossexuais femininas), Safo tem dois quadros que lhe são dedicados em Heroínas. Mas a exposição é cuidadosa no sentido de não colar a imagem da mulher emancipada ao lugar-comum da lésbica feia e máscula, que não gosta de homens porque nenhum a escolhe. Pelo contrário, o espectador pode preparar-se para uma galeria de mulheres belíssimas, de corpos voluptuosos, olhar determinado.
Comecemos a vê-la. Uma parte das peças está no Museu Thyssen-Bornemisza, a outra na Fundación Caja Madrid. Artifício engenhoso: como forma de levar os visitantes até ao espaço da Caja, menos popular do que o Thyssen, por onde, em princípio, se começa a ver a exposição, e que tem filas de espera enormes, espalharam-se por toda a cidade algumas das imagens mais fortes da exposição: Frida Kahlo, Caravaggio, Dante Gabriel Rossetti. Ora estas imagens estão na Caja Madrid, e não no Thyssen. Por isso, quem quiser vê-los, é obrigado a deslocar-se 15 minutos a pé, e visitar no centro histórico a Fundación Caja Madrid. Aqui, a entrada é livre.
As heroínas estão agrupadas em diferentes núcleos temáticos. Há cariátides (colunas com forma de mulher que suportam na cabeça a cobertura do templo), que trabalham no campo e exibem corpos vigorosos, robustos; têm uma solidez que é também a da Natureza, fundem-se com a ideia da mãe-Terra. Está nesta secção “La Aguadora” de Goya, de textura vibrante.
Há ménades (significado etimológico: “enfurecido”, também conhecidas como bacantes, e deste termo o termo “bacanal”, adoradoras do deus Dioniso), que se lançam à presa masculina de forma lasciva e impetuosa. Há atletas como a deusa Diana, caçadora, de formas que lembram as de Miguel Ângelo: pés desmesurados, ombros possantes; bela peça de Rubens. Há as que têm o corpo blindado numa armadura – símbolo de inviolabilidade e de protecção contra o perigo. São virgens guerreiras. A mais bela destas peças talvez seja a do autor pré-rafaelita Dante Gabriel Rossetti, mas há também quadros magníficos de Tintoretto ou Delacroix.
Entre as amazonas, há um quadro excepcional de Degas. A temática não é a das bailarinas, e os tons não são os róseos ou pastel. O pintor francês descreveu numa cena de 1860 o desafio feito por jovens espartanas aos seus companheiros. De igual para igual. Isto num tempo em que as mulheres eram sempre o assunto das telas dos grandes pintores, numa situação resignada social e familiarmente, objecto da adulação erótica do pintor-homem. Objecto, justamente.
Avancemos na exposição, desta vez já na revelação das telas que se encontram na Caja Madrid. Um óleo gigante apresenta Joana D’Arc, na sua entrada na aldeia, entre estandartes e agitação popular. É uma ligação com a última peça do Thyssen Bornemisza, com Marina Abramovic a cavalo.
A seguir, as magas. A circe homérica que transformava os seus admiradores em animais de estimação. A sibila que desvenda o futuro numa bola de cristal, no fogo, nos sinais antigos. Depois a secção dedicada às mártires.
É aqui que se encontra, talvez, o mais precioso quadro de toda a exposição: a Santa Catalina de Alexandria que Caravaggio pintou em 1597. A paleta de cores é reduzida, o contraste de luz e de sombra é comovente, a composição é simples. A auréola faz-nos perceber que estamos na presença de um quadro religioso. Mas o que domina a cena é a erupção do humano. Tudo ali é humano, tremendamente humano. O pintor transportava pessoas da rua para cenas religiosas, e esta Catalina reaparecerá noutros quadros. Crê-se que se chamava Filli de Melandroni, que era prostituta, e encarnou figuras intensas como Judith ou Salomé noutras obras de Caravaggio.
Por fim, as leitoras (aponta-se a leitura como espaço de solidão, interioridade, enriquecimento) e as pintoras (todas em auto-retrato). Num caso e noutro, procurou-se estabelecer o paralelo entre a representação da mesma cena em diferentes períodos. Entre a leitora de Matisse e a de Gerhard Richter há cerca de cem anos de intervalo. E tanto quanto possível, estabelece-se também uma relação entre representações feitas por homens e por mulheres. Como é que eles as pintam, como é que elas se vêem. Os quadros que melhor traduzem esta relação estão logo no começo da exposição: são Quarto de Hotel, de Hopper (1931), e Cama, de Sarah Lucas (1999). No primeiro, uma mulher lê um papel amarelecido, há malas por desfazer, uma zona de sombra impede-nos de conhecer a expressão da cara. No segundo, uma mulher jovem está numa posição corporal tensa, num quarto que não parece ser o seu. As duas estão, de certo modo, fechadas sobre si. À espera. Mas são agentes do seu destino.
Heroínas, que pode ser vista até 5 de Junho, é sobre mulheres assim. Para usar um título de Virginia Woolf, é sobre mulheres que conquistaram “um quarto que seja seu”.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011