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Anabela Mota Ribeiro

Horácio Roque

15.12.14

O cenário: um fim de tarde rosa, uma vista sobre o bairro financeiro de Londres. Os edifícios espelhados, o passo acelerado nos passeios, os taxis. A cúpula da catedral de S. Paulo onde casou a Princesa Diana com o Príncipe Carlos; como um bolo de noiva onde apetece meter o dedo. Mas não falámos desse casal, Horácio Roque e eu. Falámos do casal Sarkozy e Cecília. E falámos pouco do casal que ele formou com Fátima (Roque), membro da UNITA, de quem se divorciou há sete ou oito anos. Foi também há sete ou oito anos que se emborrachou pela última vez. Não se especifica se os factos estão ligados.

Horácio Roque é um banqueiro que não se envergonha de assumir que já apanhou borracheiras de caixão à cova. Ou que diz que trair de corpo não é a mesma coisa que trair de coração. E que foi capaz da primeira, mas não da segunda. Porque é que isto parece suculento e o puxo para a introdução à entrevista? Porque é que isto, que é quotidiano e humano, nunca aparece nas biografias dos grandes homens? Por pudor, podem responder-me. Não consta do código de conduta. Mas a verdade é que o coração, o sexo, o desejo foram erradicados das conversas sérias – masculinas, leia-se. Saber que a mulher do presidente da França teve uma relação adúltera parece um detalhe folhetinesco. Mas será? Presumimos mais do carácter de Sarkozy, daquilo que o move e o perde, se olharmos para Cecília?

Roque, o Horácio Roque, não tem, ou não falou de uma Cecília na sua vida. Falou das traições nos negócios, ou das da carne que ele mesmo praticou. Falou das raparigas em flor, lindas, lindas, que frequentavam os seus colégios em Angola. De nunca se ter metido com nenhuma delas. Falou de coisas de que não estávamos à espera num homem da sua condição. Contudo, olhamos para o seu passado na aldeia, para a origem familiar, e percebemos que não está com grandes peneiras. Gostam, gostam, não gostam, comem menos. Tem dinheiro suficiente para impôr isto e o que ele quiser.

Na entrevista, tentou pôr em evidência o lado sério e responsável. Quase pomposo. De quem sabe que tem mesmo poder. Já agora, veste-lhe a pele. Do bom nome e da confiança no líder do grupo. Do que pensam dele. Do que conseguiu fazer com a vida. Entregou-se à entrevista com “o coração nas mãos”.

Como é Horácio Roque sem máscaras? É um homem que construiu um império chamado Banif em 20 anos, depois de ter construído e assistido à desconstrução de outros impérios. Não falámos do banco. Ainda que o pretexto para o nosso encontro fosse a abertura da delegação em Victoria Station. Dois dias antes, tinha-o cumprimentado no cimo das escadas. E na festa, tinha-me perguntado em que estaria, deveras, a pensar. Que significado teria tudo aquilo.

No dia da entrevista, estava pior da garganta. Chupou rebuçados durante a conversa. Comoveu-se duas vezes. Uma, disse-me que era da constipação. Outra, foi quando falou do pai e da sua relação com a terra... O pai morreu em 77. Ele não quer morrer! Tem 63 anos.

 

... E porque é que saiu do conforto da casa, para usar as suas palvras, e foi à procura de uma nova vida?

Porque já era ambicioso. Reconhecia que o ambiente em que estava inserido não era o que queria para o resto da vida. E arrisquei.

 

Descreva-me a casa da sua infância. Fale-me desse mundo, para poder perceber o que veio a seguir.

Nasci num povoado chamado Mogadouro, onde viviam cerca de 80/90 pessoas. A casa dos meus pais era a maior e considerada a mais rica da região. De qualquer modo, para ir à escola primária fazia cinco kms a pé num sentido e noutro. Pertenciamos à freguesia e concelho de Oleiros. Nasci em 44. O fenómeno da emigração ainda não se tinha dado. Os meus pais viviam da casa agrícola e davam emprego a bastantes pessoas.

 

Tem uma casa nesse sítio?

Conservo a casa dos meus pais, onde vive uma senhora de 96 anos. Trata de uma pequena horta e de coelhos e galinhas. Manda-me todos os anos uma cesta de cerejas. Normalmente chegam podres a Lisboa, mas ela não deixa de as mandar. E mel. Esta senhora foi trabalhar lá para casa aos dez, 11 anos.

 

Esta senhora, o professor primário, os seus pais e irmãos... Fale-me das pessoas que marcaram esta fase da sua vida. Anos mais tarde, diria numa entrevista uma coisa de uma força enorme: «Sei que só posso contar comigo».

Estes marcaram positivamente. Dentro da vida de aldeia, fui um privilegiado. Nunca passei frio nem fome, nunca andei descalço. A casa era farta. O meu pai era um homem de prestígio na região. Basta dizer que depois da escola, ia almoçar a casa do padre. Produzia-se cereal, vinho, azeite, havia os animais que trabalhavam a terra, cabras, ovelhas, muitas galinhas, muitos coelhos. Todos os anos se vendia uma parte da produção. E vendia-se resina.

 

Como é que nesse quadro de abundância se revela ambicioso e sedento de sair?

Todos os meus irmãos sairam depois da escola primária. O meu irmão mais velho tem mais 20 anos do que eu – sou o mais novo de cinco. A minha mãe já tinha 44, 45 anos quando nasci. Era o único que estava em casa e recebi os mimos de toda a gente.

 

Que figura, mais do que qualquer outra, marcou a sua infância?

A maior identificação seria com a minha mãe, que me compreendia melhor, que tinha mais cuidado comigo. Quando chovia muito, havia uma ribeira que eu tinha de passar e que tinha apenas umas tábuas... Ela levava-me a passar a ribeira... Uma história interessante: quando se falou de ir para Angola – tinha lá família – o meu pai disse que não mo permitia!

 

Porque é que se opôs?

Ele tinha um sonho: que alguém continuasse a obra que tinha realizado. E todos os outros tinham já partido. Mas a minha mãe disse: «Fazes muito bem em ir, meu filho, que isto aqui não é vida para ninguém». Ora, são duas maneiras completamente diferentes de ver o futuro e de ver o futuro de um filho. Convenceu-se o meu pai e ele pagou-me o bilhete, veio trazer-me a Lisboa. Parti do Cais da Rocha, parei na Madeira pela primeira vez.

 

A sua mãe, que o atirou para a frente, morreu em 1966. Cedo, portanto. Assistiu pouco ao seu sucesso.

Não desfrutou do sucesso que vim a ter. Mas sempre tivemos uma relação muito chegada.

 

Descreva-me a chegada a Angola, o começo da sua ascensão.

Comecei por ficar em casa da minha irmã e a trabalhar numa charcutaria. Só tive dois empregos e dois patrões na vida. Em 1959, o meu primeiro patrão prometeu-me 800 escudos e no fim do mês deu-me 1000 escudos. A minha primeira poupança foram 200 escudos por mês. No fim do ano, comprei uma mota, de que precisava para me deslocar, para ir trabalhar e estudar à noite. Mudei de emprego, passei a ganhar muito mais. Até que aos 18 anos, fui desafiado para abrir um restaurante e cervejaria em conjunto. Chamava-se Munique. Quando voltei a Luanda, nos anos 90, ainda existia.

 

Fez-se homem em Angola. Começou a namorar em Angola? Isto ocorre-me porque no outro dia vi uma imagem sua na televisão com duas mulheres lindíssimas, altíssimas, uma de cada lado.

Tenho a impressão de que uma era a minha filha Teresa, que é alta e bonita.

 

Aquele quadro era muito provocatório. Só era possível numa franja específica: a de homens com confiança em si próprios.

Quando olho para o meu passado e para a minha vida, isso dá-me legitimidade para ter confiança em mim próprio. Não tenho preconceitos em tirar fotografias seja com quem for. Casei novo, aos 23 anos, e estive casado 30 anos. Tenho duas filhas, amorosas. Divorciei-me há sete, oito anos. Tive uma vida muito cheia em Luanda, tive muitas namoradas. A minha actividade era muito visível, fui muito conhecido.

 

Traduzindo: tinha poder.

Tinha alguma influência. Era jovem, tinha bons carros, dava nas vistas. As pessoas tinham um bom conceito a meu respeito. Preocupo-me com aquilo que os outros pensam de mim. Não preciso que gostem de mim. Mas preocupa-me que não haja uma grande divergência entre o que pensam de mim e o que sou.

 

Pensei que fosse mais seguro de si próprio...

E sou, mas gosto de ter um bom nome. Que saibam que sou sumpridor das minhas obrigações, que sou correcto, que gosto de tratar bem as pessoas. Eu tenho responsabilidades. Para começar, com os cinco, seis, sete mil que o grupo hoje emprega. É fundamental para o estímulo e para o orgulho em pertencer ao grupo a boa imagem e a confiança no líder.

 

Os carros, a influência, dar nas vistas: perguntava-se se as mulheres estavam consigo porque tinha essas coisas todas? Porque abria portas? Quando se tem muito dinheiro, essa dúvida - porque estão connosco? –, fica sempre?

Não. O facto de a pessoa ser conhecida, homem ou mulher, é atractivo. O facto de a pessoa ter poder é afrodisíaco. É difícil fugir a isso. Mas é só o cartão de visita.

 

Nunca perdeu a cabeça?

Tento controlar-me... Já perdi várias vezes a cabeça. Mas nunca a parti!

 

Já voltamos às mulheres. Há dois dias, no fim da sessão de lançamento do Banif em Victoria, Teresa Salgueiro cantou uma música angolana. E percebi, no modo como falou, que aquela é a sua caixa delicada... Algures entre a emoção e a ferida...

Felizmente consigo libertar-me do passado. Nunca transporto esqueletos no armário. Vivi em Angola dos 14 aos 32 anos. A sociedade angolana era diferente da europeia, da americana... Foi construída por nós, à nossa maneira. O surto de desenvolvimento foi incrível no princípio dos anos 60. Cresceu em pessoas, riqueza, em tudo. Eu cresci com ela. Fazia parte de algo que tinha ajudado a construir.

 

Como uma casa?

Como uma casa. Novas estradas, ruas, edifícios, bairros, escolas, hospitais. Se nascemos em Lisboa ou no Porto, enquadramo-nos numa sociedade que já tem os seus hábitos e costumes. Ali, as pessoas criaram os seus costumes: ir ao cinema, à praia, a determinados restaurantes, à esplanada.

 

As descrições de Angola são muito sensoriais. E sensuais. A dança, as viagens, o café.

O clima contribuía muito para isso. A informalidade na relação: as pessoas não tinham de telefonar antes de ir a casa de alguém. Batiam à porta e entravam.

 

Deixou de acontecer na sua vida? Tocarem à campainha e entrarem?

Acontece com algumas pessoas. Na minha casa de Lisboa e na de Joanesburgo tento manter essa informalidade de Angola. Os almoços combinados à última da hora, este e aquele que também se juntam. Mas foi um tempo que acabou. Tudo deslizava melhor. Nem se perdia tempo com o trânsito, nem havia a burocracia que há hoje. Nunca precisei de advogados para fazer contratos: era olhos nos olhos e apertos de mão. A palavra bastava. Já não se pode funcionar assim. Essa vida apaixonava-nos. Luanda tinha 36 cabarés.

 

Serviam para quê? Dançar, beber, namorar?

Eram centros de encontro. Onde as pessoas se divertiam.

 

A liamba tinha uma presença forte?

Não, nem se notava. Mesmo o tabaco.

 

A bebida, nunca o tentou?

Sempre fui controlado. Já me embebedei, não tenho vergonha de o dizer. E já me senti muitas vezes quente.

 

Há quanto tempo não apanha uma borracheira?

Dessas de caixão à cova, sete ou oito anos. Não é só por causa do controlo e da disciplina que não bebo... O álcool não me dá grande prazer. Posso beber uma garrafa de champanhe ou de whiskey com amigos. Mas sozinho, nunca bebo álcool.

Sempre foi controlado porque tinha um objectivo e não queria perder o foco. Era isso?

É verdade. Dou-lhe um exemplo: desde os 21, 22 anos tive colégios em Angola. Havia raparigas muito bonitas. Mas devo dizer que nunca na vida me meti com uma aluna ou permiti que uma aluna se metesse comigo. Isto revela o sentido de responsabilidade e o interesse no projecto.

 

Uma coisa dessas deita a perder um nome e uma reputação. Quem tem colégios não pode arriscar a que se diga que o dono do colégio ou os professores se deitam com alunas.

É evidente.

 

O negócio dos colégios foi frutuoso...

O Eurico Mota Veiga era uma das pessoas mais influentes e ricas de Angola; quando eu tinha 19 anos, contava-lhe que estava muito feliz, que estava a ganhar dinheiro, que os negócios me corriam bem. E ele disse-me isto que nunca esqueci: «Não te esqueças que vais ter sempre que devolver algum». Ou porque o negócio seguinte não corre bem, ou porque vamos ter de pagar qualquer coisa por ele... É fundamental que a pessoa pense que nada do que ganhou é limpo.

 

Tem sempre isso na cabeça? O que é líquido e o que é ilíquido? Quanto é que custa na verdade? Em quanto tempo? Quando vai ganhar, e de que maneira?

Tenho, permanentemente. Como tenho o espírito de poupança. Ter sempre uma reserva. Princípio que me advém...

 

Do desastre de 1976?

Não. Dos 200 escudos que poupei todos os meses. O meu pai dizia que temos de poupar – pôr de lado para um problema de saúde ou para a educação dos filhos.

 

Se fosse apenas o espírito de poupança do seu pai, se não fosse também o espírito de aventura da sua mãe, eu não estaria aqui a falar consigo... Provavelmente, seria um lavrador bem sucedido. Acontece pensar que a sua vida podia ter sido outra?

Não. E não poderia ser bem sucedido. Nos últimos sete anos em que o meu pai explorou a casa, eu cobri-lhe o défice – uns dez, 15, 20 contos por ano.... O meu pai recusava-se a vender terreno e os produtos que vendia já não eram suficientes para pagar aos trabalhadores.

 

Fale-me desse gesto.

O meu pai devia algum dinheiro, 60 ou 70 contos – do défice que se ia acumulando. Sugeri-lhe que se vendesse uma parte da terra e se pagasse aquele valor. E o meu pai começou a chorar. As lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo. Dizia: «Vocês são todos iguais», aquelas críticas que saem... Senti que tinha uma obrigação para com o meu pai.

 

Foi a única vez que o viu chorar?

Foi. Tocou-me, é evidente que me tocou. A minha mãe já não era viva, isto foi no princípio dos anos 70. Procurei saber a dimensão do problema. Perguntei aos meus irmãos se queriam participar, mas eles achavam que o meu pai devia era vender uma parcela de terreno. E eu fi-lo, sozinho. Paguei todas as dívidas do meu pai.

 

O seu pai sentiu-se humilhado porque o filho lhe pagou as dívidas?

De maneira nenhuma. O meu pai tinha tinha um orgulho enorme em mim e contava a toda a gente do meu gesto.

 

Para um homem como ele, vender um pedaço de terra era como perder um dedo... Uma quase amputação.

Exactamente. Mas em termos práticos, não fazia sentido nenhum. Vendia uma parcela, pagava as dívidas e vivia melhor, porque nem tinha de trabalhar tantas horas por dia. Mas não. A vontade de manter aquilo que construiu ao longo da vida era tão grande que era incapaz de se desfazer do que quer que fosse. Achava, ainda, que aquilo seria o futuro dos filhos! Embora nenhum deles estivesse lá. Apercebi-me de que seria uma humilhação tremenda vender uma parte da terra.

 

É dos gestos da sua vida de que mais se orgulha?

Orgulho não é a palavra. Cumpri a minha obrigação de filho. Embora o meu pai não quisesse que eu fosse para Angola. Não era para me travar... Era porque na cabeça dele, o meu futuro seria continuar a obra que ele criou...

 

Naquele tempo, e naquele quadro social, a herança, o que se deixa aos filhos, e que passa quase sempre pela terra e pela honra, eram coisas essenciais.

Não o censuro. Naquelas terras, ainda hoje, o Senhor Roque era um homem muito respeitado e estimado. Isso marcou-me na vida. A sua maneira de ser e de estar deu-me bases.

 

Durante o jantar, num espaço nobre da City, muito elegante, quando tudo corria muito bem, perguntava-me em que pessoas estaria intimamente a pensar... Se pensaria no seu pai, na sua mãe...

Não. Uma parte substancial das minhas energias vão para o grupo e penso mesmo nas pessoas que trabalham comigo, e no contributo que elas dão. O que este grupo fez me 20 anos? Não posso pensar só em si. Sei que assumi sempre a liderança, a dianteira, que corri os riscos em termos de investimento, mas isto foi feito por um grupo.

 

Estava à espera que fosse mais vaidoso do que se está a revelar! Tem uma aparência mais vaidosa.

[gargalhada] Estou a falar-lhe com o coração nas mãos. Não tenho máscara nenhuma.

 

Quando diz que se preocupa com o grupo, fala como um pai que quer envolver os que estão consigo, entusiasmá-los. Deixou de ser filho. Já não é o miúdo que quer que os crescidos digam: «Correu bem, venceste». Sabe que venceu, quer outra coisa.

A sua análise está correcta. Quando saí do jantar, no carro, com a Paula, a minha mulher, e a Teresa, a minha filha, perguntei-lhes: «O que é que acham que correu mal?» Não sinto necessidade que me digam: «És bestial, és o melhor».

 

Quando é que deixou de sentir necessidade desse reforço? Todos nós precisamos da nossa plateiazinha...

Todos precisamos, sim. Como lhe disse, preocupo-me com o que pensam de mim. Não quero que pensem que sou uma estrela. Quero que pensem em mim como uma pessoa normal. Quero ser respeitado. Uma frase que uso muito: quero que as pessoas que estão perto de mim me digam aquilo que pensam, e não aquilo que eu quero ouvir.

 

Pode ir atrás da sua intuição e contrariar aquilo que seria mais razoável?

Posso, posso. E por causa disso já errei muita vez.

 

Um homem que diz que só pode contar consigo, é fácil presumir que foi abandonado. Ou traído.

De que tipo de traição está a falar? Por pessoas? Ah, já, já. Por mulheres, não sei! [risos]

 

Já que fala disso, seria insuportável e ignominioso para si ser traído pela mulher? No seu meio, seria penoso socialmente.

Temos de ser postos perante factos... Há duas maneiras de traição. Uma é fisicamente e outra é afectivamente. Mas sabe, ainda esta manhã li um artigo sobre o Sarkozy e a mulher, a Cecília..., e é o presidente de França. Em termos sociais, não dou relevância nenhuma a isso.

 

Habitualmente não se fala do sexo, ou do desejo. Como se fosse uma realidade separada daquela em que o sujeito vive. Mas o caso Sarkozy ilustra, justamente, como o sexo está presente nas vidas públicas, mais do que queremos admitir ou dizemos.

Eu também já traí. Mas só fisicamente. Não o fiz sentimentalmente. Se é que isso é considerado traição... Já fui traído. Não tem nada a ver com amor ou sexo. Homens, negócios. Há três pessoas com quem cortei relações para o resto da vida.

 

O que é que lhe custou mais nesses casos?

O desapontamento em relação às pessoas. Não era o dinheiro que estava em causa. E já saí a perder em muitos negócios.

 

Já alguma vez traiu?

Desse género? Creio que não. Não sou santo, procuro defender os meus interesses, mas nunca fui acusado por ninguém de uma coisa dessa natureza. É um dos grandes activos que tenho: as pessoas confiam em mim.

 

O que é que se compra, o que é que não está à venda?

Nunca se pode comprar respeitabilidade. As pessoas ou têm respeito por nós ou não.

 

Que presentes é que gosta de dar? Uma vez que os pode dar todos...

Gosto de ver as pessoas felizes. Gosto de oferecer flores às senhoras.

 

As senhoras gostas mais de receber diamantes! Diamonds are a girl’s best friend.

And diamonds are forever. Não se pode dar diamantes a toda a gente e a toda a hora. Mas já dei diamantes a algumas mulheres. Às minhas filhas, dou tudo o que gostam.

 

Ainda sabe o valor do dinheiro miúdo? Ainda sabe quando custa um pacote de leite?

Não tenho ideia. Não sei o preço das coisas, mas sei o valor do dinheiro. Se não dou às minhas filhas, vou dar a quem? Se elas querem viajar, valorizar-se... Estudaram nas melhores escolas; as duas fizeram o St Julians em Carcavelos. A mais velha foi para Oxford, Itália, Washington. A mais nova fez Antropologia Social em Lisboa e depois uma pós-graduação na London School of Economics. Enfim, dei-lhes todas as armas.

 

Com uma mesada certa, para aprenderem a gerir o dinheiro, a saberem o que custa a vida?

Não, confesso esse como um dos meus falhanços. Não lhes controlo as contas. Mas não são perdulárias. Não gosto de pessoas perdulárias.

 

Porque isso contraria a sua vida toda? A sua vida fez-se pelo trabalho.

Não gosto quando a pessoa se impõe pelo dinheiro. O show off do “tenho tantos milhões, posso comprar o mundo”... Não sou apologista da exibição permanente da riqueza.

 

Mas é também o banqueiro que não prescinde de uma nota exuberante. Usa uma inesperada camisa verde alface!

Comprei há dias para ir ver o Sporting! Hoje é casual Friday, em Londres... Acho que a camisa verde me fica bem.

 

Estou só a sublinhar o código de conduta do meio...

Gosto do que é bom, gosto de viajar da melhor maneira, gosto dos melhores hotéis e dos melhores restaurantes, gosto da melhor vida. Mas não sou exibicionista em termos materiais. Sou capaz de ser exibicionista se for dançar.

 

Mas aí, é a marca de Angola.

É.

 

Quando comprou esse relógio de ouro, pensou nesse exibicionismo?

Sabe quantos anos tem este relógio de ouro? Comprei-o aos 19 anos. Gosto muito de usar este relógio.

 

Porque é que decidiu oferecer-se de presente um relógio de ouro aos 19 anos? Foi a materialização de um novo estatuto?

Eu tinha feito um negócio simpático, umas casas nas quais fui intermediário. Foi a primeira extravagância da minha vida, a compra deste relógio, no Natal de 63. Não era um sonho, não. Achei que era um bom investimento.

 

Não é Tio Patinhas que amealha na casa forte...

Não, uma parte é para usar. Comprei um Rolex algum tempo depois, um Rolls Royce em 79, um Ferrari em 80. Na África do Sul tenho um Rolls, em Portugal não, porque é muito... visível.

 

Quando vai à sua terra, que carro leva?

Quando nasci, os carros não chegavam à minha terra. E agora, vou lá de Ferrari.

 

Um regresso triunfante...

Não... Até porque ninguém aprecia.

 

Eles nem sabem ver quanto é que aquilo custa nem o que é que simboliza?

A pessoa mais nova que vive na minha terra tem, talvez, 75 anos. Uso-o ao fim de semana, ou quando vou para fora. Com o motorista, não ando de Ferrari.

 

É muito de si para si. Vai à terra de Ferrari porque, mesmo que os outros não fiquem impressionados, sabe quando é que aquilo vale e o que fez para o conseguir. Já não há pessoas ali que queira impressionar.

Gostava de impressionar os outros pelas minhas qualidades. Gostava de ter mais qualidades para impressionar as pessoas. Não posso impressionar com um carro...

 

Impressionou muito mais com o gesto de ajudar o seu pai do que por chegar de Ferrari?

Sim. O dinheiro é um instrumento. Pode contribuir para a nossa felicidade. Pode proporcionar-nos uma vida desafogada – ou seja, não temos que nos preocupar com o dia de amanhã. E depois tem outra componente, para mim a mais importante: serve para fazer coisas. Empresas, fazer crescer as empresas, reunir-me de pessoas para fazer coisas. É para isso que o dinheiro me serve, é para isso que gosto de ter dinheiro.

 

No fundo, para ser um líder. Do que gosta, é de ser um líder.

Não gosto que as empresas não dêem dinheiro, e porquê?

 

Porque é sinal de falhanço.

Falhanço absoluto.

 

É capaz de me contar um momento da sua vida em que se sentiu um falhado?

O pior momento da minha vida foi quando saí de Angola, em 76. Toda a minha vida estava orientada para Angola.

 

Nessa altura, queria morrer em Angola.

Achava que ia morrer em Angola. Que Angola era a maior terra do mundo. De um momento para o outro, senti-me de mãos a abanar. De um momento para o outro, olho para trás e vejo o desmoronar de toda uma vida.

 

É a sequência do dominó? Vai tudo por arrasto?

É. Até me começou a cair o cabelo. Mas acho que tomei a atitude certa. Já tinha aberto um colégio na África do Sul. A Fátima, minha mulher na altura, tinha ido com as nossas filhas para Joanesburgo – estavam em segurança. Angola estava num estado infernal, parecia o Líbano. Fiquei mais uns sete, oito meses. Normalmente ia passar os fins de semana – eram três horas de avião.

 

Seis meses antes estava convencido de que não precisava trabalhar nunca mais...

Achava que era mais rico do que na verdade era.

 

Havia uma certa megalomania de um jovem que se deslumbra com o que consegue em tão pouco tempo?

Não existia uma megalomania, existia uma realidade.

 

Não estou a duvidar dela, estou a pensar no tamanho da queda.

Pois. Só me apercebi disso depois. Condenei-me por ter feito uma análise errada. Devia ter olhado para os outros países africanos... Falhei, e fiquei apanhado. Tive um acto de alguma coragem e de um pragmatismo à toda a prova: sair de Angola e cortar com Angola.

 

Saiu para nunca mais?

Foi em março de 76 e disse a uma pessoa que nos dez anos seguintes não queria saber de Angola para nada. «Quando vim para Angola não tinha nem dinheiro nem experiência. Hoje, dinheiro não tenho muito, mas experiência e amigos tenho». Já lá vão 30 anos e continuo a pensar o mesmo. Voltei 16 anos depois, em 92. A Fátima [ligada à UNITA] teve um problema político: foi eleita deputada e proibida de sair de Angola. Estive lá por causa dela. Depois disso, não voltei.

 

África do Sul é o começo de um livro novo. Não só era uma língua nova, como era uma nova maneira de pensar e de estar. A sociedade era muito estratificada, não só racialmente, mas também financeiramente.

Fui para a uma sociedade que já estava madura, depois de ter participado na construção da angolana. Em 76, pôs-se-me ainda um dilema: onde ficar. Andei pelo Brasil, Canadá, Argentina, Portugal, embora tivesse uma base na África do Sul. Um colégio e um pequeno escritório com três pessoas.

 

Foi um ano de vacas magras, mas com uma rectaguarda razoável.

Eu não perdi nada em Angola, levei 500 escudos e vim embora com 500 escudos e os juros. Consegui meter isso na minha cabeça. Nunca ninguém me viu em ajuntamentos para a devolução dos bens de Angola... Parti para outra.

 

Deu uma “volta ao mundo” para perceber onde podia começar outra vez. Não é tão diferente assim fazer negócios na África do Sul ou em Portugal? Sabe ganhar dinheiro em todo o lado?

É preciso encontrar as pessoas certas. Negócios são pessoas. Temos de nos integrar na mentalidade e nos costumes dos locais.

 

Em Roma sê romano.

É o que faço.

 

Como é que nunca soçobrou? Como é que conseguiu essa confiança para seguir em frente?

Tenho auto-confiança. Sempre apliquei as minhas energias no sítio certo. Foco, e ponho as outras coisas de lado, para não me dispersar. Não me importo de fazer sacrifícios.

 

O que são sacrifícios quando se tem a vida que tem?

Um sacrifício: querer passar um fim de semana com a família e não poder. Interromper as férias porque alguma coisa importante acontece e vamos lá. Ter um jantar marcado e de repente há algo que consideramos mais importante.

 

Sacrifício? Adora a excitação dos planos alterados à última hora... Momentaneamente, pode até parecer desagradável, mas traz uma dimensão aventureira e emocionante à sua vida.

Para mim, não é um sacrifício, de facto. Para mim, o trabalho é um prazer. Quem corre por gosto não cansa. Tenho às vezes dias em que me apetecia dormir mais um bocado. E sinto-me infelicíssimo quando me levanto. «Para que é que tenho de me levantar? Porquê é que vou aturar aqueles tipos?». Mas depois de tomar um café, fico pronto para atravessar a montanha.

 

E não pode emperrar a máquina.

Sou disciplinado e gosto de dar o exemplo.

 

A primeira coisa em que pensei, quando cheguei a este 18º andar, foi nas cenas dos filmes da Grande Depressão. Quando os banqueiros se matavam porque o mundo ruía. E perguntei-se se essas ideias se lhe podem atravessar.

De maneira nenhuma! Não tenho esses pensamentos. E depois, quem já passou pelo que passei em Angola... A casa onde vivia, (que já estava meia vazia, mas que era a minha casa), estava ocupada! Estavam miúdos a brincar no quintal. Falo de Outubro, Novembro de 75. Quando vê a sua casa ocupada por alguém com quem não tem relação nenhuma, é tomado por um sentimento de injustiça. É uma invasão. Vivi situações muito dramáticas. Mas tive, apesar de tudo, o privilégio de ir a Joanesburgo sempre que quis.

 

Pausa

 

... Vi ao espelho a minha camisa... De facto, não está de acordo... [gargalhada] Mas leia isto como informalidade.

 

Li também como gesto de excentricidade! Uma última questão: o fantasma de 76, de perder tudo e ter de recomeçar do zero, persegue-o?

Não. Já não tenho 32 anos, seria mais difícil recomeçar tudo outra vez... Mas esta minha história de Angola ilustra bem como os valores materiais são transitórios. Não podemos basear a nossa vida nisso. Os grandes impérios, de um dia para o o outro, caem.

 

Se tudo desaparecer, o que é que gostava de manter?

Mantenho a casa da aldeia por respeito aos meus pais. Realizo as obras necessárias para que a senhora que lá está viva com todo o conforto.

 

E ela reconhece isso e retribui com cerejas e mel.

Mas se alguma coisa me acontecesse, gostaria de manter a minha saúde física e mental. E a minha capacidade para o optimismo e para me rir de mim próprio.

 

Onde quer ser enterrado?

Em parte nenhuma! Não quero morrer! [gargalhada].

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007

Horácio Roque morreu em 2013