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Anabela Mota Ribeiro

Inês de Medeiros

20.02.14

Inês de Medeiros tem trinta anos [entrevista de 98], é mãe do Pedro de um ano e meio, filha da jornalista Maria Armanda Passos e do Maestro António Vitorino de Almeida, irmã da Maria e da Anne. Reparte os dias entre Paris e Lisboa. «Senhor Jerónimo» é o título do filme com que se estreou na realização e com o qual venceu o Festival de Curtas-metragens de Vila do Conde. Apesar de bem sucedida na nova experiência, quer investir cada vez mais na sua carreira de actriz. Inês confessou-se num fim de tarde português, na casa da mãe que foi, também, a casa da sua infância. Riu muitíssimo. O bebé dormia no quarto ao lado.

 

Porque é que escolheu a solidão e o envelhecimento para o núcleo central do seu filme?

Foi uma história que tirei de um recorte de jornal. O recorte dizia que o hospital se tinha enganado de morto e tinha avisado a família errada. Pensando um bocadinho achei que este senhor (vítima do engano) teve a sorte de poder ver o luto da sua família, que é uma coisa que nunca ninguém tem.

 

A história dava-se cá ou em França?

Cá, é uma história tipicamente portuguesa.

 

Quando se diz que a realidade supera largamente a ficção é válido para qualquer canto do mundo.

A notícia era óptima, «Morto que afinal estava vivo»! [riso] Foi uma história que escrevi muito depressa, imaginando reacções à notícia.

 

Escreveu compulsivamente achando que tinha descoberto «a história» para o seu filme?

Eu escrevo quase sempre compulsivamente. As histórias andam para aqui, depois concentram-se (parece que cristalizam) e é só escrever. Quanto à velhice e à solidão... Isto não é nenhum julgamento moral ou social das famílias que abandonam os seus velhinhos; é mais a ideia de uma sociedade que anda muito enganada sobre uma data de coisas, algumas óbvias.

 

Como é que uma mulher tão cheia de vida, que foi mãe há pouco tempo, se ocupa de uma história de lutos e equívocos?

Não há melhor maneira de perceber a morte que ser mãe. Durante muito tempo, para mim, a morte foi uma aberração, um acidente. Quando se percebe realmente o que é a vida e se começa a ter medo pela vida de alguém... Porque não se consegue pensar a nossa morte.

 

Não?

Eu não.

 

As mortes por acidente, com uma forte carga fílmica, da Marilyn ao Dean, são, pelo menos, mais facilmente romantizáveis.

Aceita-se melhor a morte por acidente, por fatalidade é mais difícil.

 

Pensei que fosse o contrário.

A grande velhice é outra coisa. As mortes por acidente são romantizáveis, cinematográficas, portadoras de ficção. O outro lado, em que por mais que a gente se cuide por lá passa, é que é difícil de perceber.

 

Qual seria a grande vantagem de viver eternamente?

Ah, não, detestaria morrer aos 130 anos como aquela senhora francesa que morreu há pouco tempo, coitadinha.

 

Morte com dignidade, portanto.

Isso é o filme. Alguém que decide que há-de morrer como entender e ter o domínio sobre a sua vida e sobre a sua morte.

 

Curiosamente a Inês não aparece no filme, ao contrário do que costuma acontecer com a maior parte dos actores que experimentam a realização.

Os actores precisam de alguém que olhe para eles; se eu fosse representar não saberia quem é que olhava para mim.

 

Precisa de ser dirigida, apesar de toda a experiência?

Obviamente, e é muito simples, é porque a gente não se vê. Por muito que se tenha domínio.

 

Porque é que escolheu aqueles actores ( Raul Solnado, José Viana, Rogério Samora, Teresa Roby)? A Patrícia Tavares, por exemplo, é mais conhecida pelo seu desempenho nas telenovelas.

A Patrícia Tavares é muito bonita e tenho a certeza que pode fazer coisas muito boas. A televisão é muito mais dura que qualquer cinema. As pessoas estão muito mais abandonadas. Não falo da Patrícia em particular, mas tenho a sensação que estes esquemas de representação muito rápidos são trituradores e estragam o prazer de representar.

 

É uma das razões pelas quais não faz televisão?

É uma, não é a razão. Julgo que teria muita dificuldade em trabalhar nessas condições. As coisas são escritas muito depressa, que é um erro de produção, porque quando se vêem as boas séries normalmente são todas muito trabalhadas, escritas e reescritas; só que isso custa dinheiro. São opções.

 

Uma das vantagens de fazer televisão é que são coisas bem pagas. Esse lado material não a tenta?

Acho que o lado material tenta toda a gente, quem disser o contrário, das duas, uma: ou é muito rico ou mente.

 

Há, então, pessoas mais tentáveis que outras.

Não é só uma questão de tentação mas de possibilidade. Eu sei que dizer «Faço isto e não faço isto» é um luxo; ou posso ter esse luxo ou não posso. Ou são escolhas, não tenho carta, não tenho carro.

 

Mas gostava de ter?

Não.

 

Não lhe é uma escolha difícil.

Não me é essencial. Durante imenso tempo os actores em Portugal viveram malíssimo e acho naturalíssimo que as pessoas comecem a ganhar mais dinheiro e queiram ganhar mais dinheiro; não quer dizer que tenham de se sujeitar a tudo.

 

Nunca foi sonho seu viver numa casa com piscina e ter um monte no Alentejo?

Claro que é, ainda não desisti. Um monte no Alentejo, com certeza, uma casa com piscina, depende.

 

Qual é a sua ideia de casa-lar?

Ah, é uma casa muito grande mas não nova, com madeiras e com alguns buracos. Tenho uma enorme dificuldade em imaginar-me naqueles apartamentos em torres muito modernas e assépticas.

 

Viveu sempre em casas antigas?

Sim.

 

Como era o seu quarto em pequena?

Era ali ao lado, tinha de o partilhar com a minha irmã. A Maria dizia «Este é o meu lado», que era o arrumado, «E este é o teu lado», que era o desarrumado.

 

Quando vem a Lisboa e fica nesta casa sente uma nostalgia da infância?

O quarto está diferente, as camas já não estão lá, os armários já não são os mesmos. Sinto mais esta sala como sala da minha infância que o quarto.

 

Tudo isto era a propósito do monte alentejano e da tentação do dinheiro. Podia ser uma casa na Provence ou ainda pensa em Portugal como o seu canto?

Não me vejo nada a ter uma casa na Provence, uma casa assim seria em Portugal.

 

Há quantos anos vive em França?

Não há muitos, três, quatro. Há muito tempo que estou a fazer idas e vindas e isso quero continuar a fazer. Nem quero que as pessoas achem que me mudei porque Portugal faz-me falta.

 

O que é que lhe faz falta?

A confusão, o sol, as pessoas que se encontram nos mesmos sítios e às mesmas horas; faz-me falta pelas mesmas razões por que me fui embora, este lado pequenino e provinciano.

 

Como as casas antigas.

Exactamente, como aquela racha que está lá sempre, que se tapa e volta a aparecer.

 

Como é que decidiu instalar-se em França?

Não decidi. Fui para lá por razões profissionais porque achei que cá tinha dado a volta à praça. Dez anos antes tinha feito a escolha de não ir para França, da qual não me arrependo nada. Quando fiz o Rivette tive de decidir se queria ficar ou se queria ir. Nessa altura em Portugal estava a aparecer uma série de gente nova e interessante e senti que havia uma espécie de nova dinâmica que não queria perder. Permitiu-me ter imagens de cinema muito diferentes; permitiu-me trabalhar na escrita com o Joaquim Pinto, como assistente da Teresa Villaverde e do João César Monteiro. Em França são coisas impossíveis: uma actriz é actriz e não pode fazer mais nada. Porque há muita gente e quando alguém vai meter o nariz noutra coisa é suspeito.

 

Na sua decisão, há dez anos, não pesou o facto de a sua irmã Maria estar em Paris?

Não.

 

Sendo mais nova não sentia necessidade de vincar o seu papel e o seu espaço?

Somos muito diferentes. Na altura do Rivette a Maria fazia muitíssimo teatro mas pouco cinema, ela começou a fazer mais cinema a partir do Henry and June. As pessoas é que acham que é mais difícil, duas actrizes irmãs, não sei quê; mas sinceramente, na prática, nunca sentimos nada. Qualquer pessoa que duvide entre mim e a Maria é porque não sabe o que quer do papel. Há dez anos perguntava-me «Para que é que vou para França ser mais uma actriz quando em Portugal posso ter não só uma garantia de trabalho que não quero perder como um contacto muito mais humano e próximo com as pessoas?»

 

O lado hollywoodesco, que acabou por estar ao alcance da Maria, não a seduziu? A Inês parece pouco ambiciosa.

Não tenho ambição de grandes famas, isso não. Tenho uma família recheada de grandes popularidades e não é qualquer coisa de que sinta necessidade. Tenho ambições de trabalho. O facto de ter um pai que... Nunca me incomodou, diga-se de passagem. Não quer dizer que não goste que as pessoas me reconheçam.

 

Aqui em Portugal reconhecem-na muito na rua?

Acho que reconhecem, não sei bem porque são muito delicadas, muito afáveis e mesmo em relação ao meu pai nunca são abusivas. Essa é uma das grandes vantagens de Portugal.

 

Se virmos a questão ao contrário, alguns dos seus mitos, justamente por ter tido essa proximidade, devem ter sido visitas de casa. Não teve o entusiasmo juvenil de pedir autógrafos?

Não tive, confesso.

 

Por ninguém?

Tive, tive pessoas com quem ficava a tremer. Lembro-me que a certa altura filmei com o Sérgio Godinho, que é alguém de quem eu gosto muito, e pensei «Se aos 12 anos me tivessem dito que filmaria com o Sérgio Godinho tinha tido um ataque». Mas Portugal é tão pequenino que inevitavelmente acabamos por nos cruzar com os mitos. As pessoas não deixam de nos emocionar mas temos menos aquela coisa de «Nunca o vou poder alcançar».

 

E lá fora, há alguém que a faça tremer?

Ai, eu até já consegui conhecer o Caetano Veloso! [riso]

 

O que é que lhe disse?

Não disse absolutamente nada. Foi um encontro depois de um concerto no Coliseu, estávamos todos, a Maria, a Teresa Villaverde, o Sérgio Godinho.

 

Podemos voltar à sua vida em França? O que é o seu dia normal?

Então, acordo, vou pôr o meu filho à creche e depois tenho todos os problemas de consciência das mães. O meu dia normal depende muito do que estou a fazer, agora vou filmar como actriz, portanto vão ser ensaios ou provas de roupa ou assim. Mas quando não estou a filmar têm sido muito a escrever, escrever. O que mais gosto de escrever são diálogos; também escrevo histórias muito pequeninas.

 

Começou por frequentar um curso de línguas, não foi?

Saí porque achei que me estava a tirar o gosto da leitura. É a mesma coisa com a música, nunca quis aprender porque achei que me ia estragar o prazer de ouvir. Eu gostava imenso de crítica literária; mas a crítica é anatomia, é dissecar um texto e a certa altura é de tal maneira que já não se lê texto nenhum.

 

Pôs a hipótese de ser professora, que é, normalmente, a profissão esperada quando se tira um curso de letras?

Não, nunca. O que eu queria ser era cantora de ópera. Quando fiz o Amor de Perdição com o Ricardo [Pais] havia pessoas em cima do palco e de repente eles começavam a cantar e eu via semi-deuses entre nós. Pensava «Como é possível que aquilo esteja lá dentro e saia?»

 

Nunca chegou a experimentar?

Não. É uma história da infância: A Maria disse-me que eu ia ficar muito gorda e eu era muito vaidosa e desisti. Só tinha a imagem da Monserrat Caballé e pensei «Ai não, assim não quero ficar».

 

Queria ser cantora de ópera por lhe lembrar Viena?

Não, de Viena lembro-me das orquestras a tocarem no jardim, das pessoas em fato de noite a dançarem a valsa, de nos ensinarem a fazer a vénia. A recordação que tenho é a de um país completamente anacrónico, parado no tempo. Estamos a falar de 74, 73. 

 

Quem é que lhe ensinava a fazer a vénia, o seu pai ou a sua mãe?

Era na escola, no Liceu Francês. Ensinavam as meninas a fazer a vénia e os meninos uma espécie de continência e a baterem com as solas.

 

Nasceu cá ou lá?

Nasci lá. Até aos seis, sete vivi em Viena durante o ano e na Linha, na casa dos meus avós, durante o Verão. Do que eu me lembro é da chegada a Lisboa em 75 no pós revolução e do mundo que eu desconhecia com gente eufórica na rua. Eu e a Maria fazíamos trezentas e cinquenta vénias por segundo durante as manifestações. Era maravilhoso! Os miúdos que viveram de alguma maneira o 25 de Abril só podem ter boas recordações, recordações de alegria absoluta. Na minha família também havia quem não estivesse tão contente, mas esses foram para fora; nós viemos e eles foram.

 

Essa parte da família que foi para fora era do seu pai ou da sua mãe?

Da parte do meu pai; e depois havia os da parte da minha mãe que não foram mas gostariam de ter ido.

 

Continuou cá no Liceu Francês?

Sim, o Liceu Francês era um misto de gente muito curiosa: havia, por um lado, algumas das grandes famílias portuguesas e, por outro, muitos filhos de intelectuais de esquerda. Nós fomos para o Liceu Francês porque não tínhamos a certeza se ficávamos em Portugal e o Liceu era uma maneira de garantir uma continuidade nos estudos. Como éramos todos filhos de pessoas politizadas havia uma grande animação, discutia-se muito. Em pequenina a base era «O teu pai é comunista, o teu pai é fascista». Eu defendia-o sempre e pensava «Será que devo dizer que ele é comunista, porque ele não é?» Depois as discussões foram outras.

 

E a casa, tinha-a sempre cheia de intelectuais a conversarem?

Isso sim, os meus pais eram pessoas muito rodeadas. Como eles estavam separados tinha de um lado e de outro.

 

Que idade tinha quando eles se separaram?

Sete. O meu pai vivia em Viena e eu vivia cá com a minha mãe. A minha mãe era jornalista.

 

Em Paris relaciona-se com as pessoas do cinema?

Tenho uma vida mais isolada que em Lisboa porque as pessoas têm vidas mais isoladas que em Lisboa. Depois de ter vivido muitas saídas à noite sabe-me bem este lado mais recatado. Mas é inevitável que as pessoas com quem me cruzo estejam ligadas ao cinema. Em Lisboa é mais fácil estar em contacto com pessoas que fazem outras coisas, em Paris é tudo muito compartimentado.

 

Tem um agente em Paris? As propostas chegam-lhe com a mesma profusão?

Tenho uma agente. Houve aqui dois anos, e isto tem a ver com o nascimento do meu filho, em que me cortei um bocadinho de tudo voluntariamente. Quis aproveitar ao máximo as coisas que estava a viver.

 

Tinha conseguido amealhar o dinheiro suficiente?

Tinha o programa da televisão («O filme da minha vida») que dava imenso jeito. O dinheiro é uma preocupação óbvia para toda a gente mas acaba-se por encontrar sempre aquilo de que se precisa.

 

O que se procura cada vez mais numa actriz, pelo menos num determinado tipo de cinema, é a femme fatale com silicone injectado e ancas aspiradas. Essa imagem não é agressiva para si?

Está a dizer que não sou boazuda, é isso? [riso] Não acho sequer que seja verdade. Hoje em dia qual será a actriz que mais trabalha em Portugal? Eu acho que deve ser a Rita Blanco, que não é o protótipo da starlett em fato de banho nas praias de St. Tropez. A nível internacional as actrizes europeias com maior prestígio são a Binoche, a Bonnhair, a Béart. Há estereótipos (e continuará a haver) e modelos de sedução e de sex appeal; mas acho que, pelo contrário, quanto mais uma pessoa se vincar num tipo de personalidade e de carácter mais hipóteses tem de resultar.

 

O seu tipo é o da sonhadora e boazinha?

Ah não, espero que não!

 

Era essa a imagem de há uns anos.

As imagens criam-se em função do que as pessoas pedem para fazer e isso não se domina forçosamente, não se controla o que inspiramos nos outros. Eu sempre quis fazer uma comédia e nunca ninguém mo propôs. Portanto, em França não tenho feito tantas coisas quanto isso. Tenho andado muito pacata na minha vidinha de mãe, a escrever e a experimentar. Esta curta-metragem foi uma experiência de que gostei muito. Mesmo que não queira pôr de lado a minha carreira de actriz, bem pelo contrário, sinto-me com muito mais vontade... Porque sempre tive uma relação difícil com a ideia de ser actriz.

 

Porquê?

Isto é muito pretensioso de se dizer mas é verdade, eu não escolhi completamente ser actriz; fui sendo até perceber que não queria fazer outra coisa. Ser actor é uma coisa muito difícil. Porque é uma eterna sedução; ser actor só faz sentido se quisermos que os outros nos amem, é «Gostem de mim, gostem de mim, gostem de mim». Pode dizer-se que todas as pessoas querem que gostem delas, mas no caso de um actor é elevado ao cubo. 

 

Desgasta-se muito na preparação de um personagem ou é uma coisa que lhe é intuitiva?

Depende. Quando uma rodagem corre bem é um dos maiores prazeres que se pode ter; quando corre mal é um pesadelo. Eu sei que sou profundamente infeliz quando estou a fazer qualquer coisa na qual não acredito a 150%! Quero lá saber que o resultado não seja aquele que esperei; na altura em que estou a filmar tenho de estar convencidíssima de estar a fazer uma obra prima. O resultado final é outra relação. Os actores só se têm a si próprios para se usarem, não têm utensílios, não têm uma caneta sequer, têm as suas mãos, a cara, a voz. Não quer dizer que se tenha de usar o passado ou os traumas de infância, isso são outras teorias com as quais não estou completamente de acordo. Temos de nos usar a nós próprios, é um investimento físico; e, como tudo o que é físico, é muito mais difícil que o mental.

 

Pensei que fosse ao contrário. As coisas mentais não são as que ficam e doem? A feridinha passa com um bocadinho de mercúrio.

Voltando ao que falávamos no princípio, a solidão é uma coisa física, a paixão é uma coisa física...

 

Então, como é que sente no corpo a infelicidade?

Fico cheia de olheiras, com um olhar baço, mal disposta, não acordo de manhã. Uma depressão não é uma coisa física? Não estamos a falar de traumas terríveis enfiados no subconsciente; acho que o mental pode ser dominado e contornado e contado de novas maneiras, o físico tem qualquer coisa de irredutível. Quando se tem frio tem-se frio, não se experimentam técnicas zen.

 

Essa inspiração oriental, a astrologia, a meditação transcendental, todas essas coisas que elevam o espírito, atraem-na?

Tentei fazer ioga mas adormeci sempre, é que eu não tenho problema nenhum em descontrair. Sou supersticiosa como qualquer pessoa que compra uma revista e a primeira coisa que faz é ler os signos; meia hora depois esqueci-me do que lá está. Não passo debaixo de um escadote; gatos pretos é que tive vários e acho que dá imensa sorte.

 

Vivia sozinha nessa altura?

Tive um gato preto quando era pequenina e agora tenho uma gata preta de quem tenho muitas saudades porque não a posso levar comigo para Paris. Eu adoro gatos, mas um gato não substitui nada. A casa é pequena e eu já tenho um filho.

 

Sentiu com a criança uma transformação na sua vida, no seu corpo?

Claro que senti. O mais perturbante quando se está à espera de um filho é saber que não se domina de modo nenhum o nosso corpo, que pertence a outra pessoa. É fascinante e terrível.

 

Como é que decidiu ter um filho? Sentiu que aos 29 anos era altura de ser mãe?

Eu decidi ter um filho quando achei que tinha encontrado o pai certo. Volta e meia também há as vontades físicas que não têm a ver com a ideia de educar um filho; são mesmo físicas.

 

Ficou com um medo enorme do que pudesse mudar?

Eu acho que só se percebe mesmo o que muda uma vez que a criança nasce. Todo o lado prático muda e, a partir daqui, são novas bases. As coisas comezinhas são essenciais; a felicidade está nas coisas comezinhas e a tristeza também. Não se trata de um sacrifício, é um ser que não pede licença para nada, que exige e a quem se dá sem sequer perceber que se dá. É extraordinário existir alguém que nos pode exigir tudo.

 

É a forma última do amor.

É uma forma do amor, é uma coisa que só se aceita a um filho. Eu nunca quereria ter uma relação amorosa destas a não ser com um filho. Não aceitaria nunca que alguém fosse tão dono de mim.

 

Sempre foi muito independente?

Sempre. E simplifica imenso a vida! Uma data de interrogações, «Será que devo fazer isto ou aquilo, ser mais assim ou mais assado?», não têm importância nenhuma. Tudo passa a ser tão relativo em relação à enormidade que aconteceu. Para mim foi uma espécie de libertação.

 

Quais eram as suas grandes angústias?

Iguais às de toda a gente, «Será que estou bem, será que estou bonita, será que gostam de mim, será que disse uma asneira, será que vou ganhar mais dinheiro?». Estava a falar de dinheiro? Agora com o dinheiro é assim: tenho que ter dinheiro porque tenho um filho, pronto. Todos esses problemas, «Será que posso fazer esta concessão?», se eu não tenho dinheiro tenho que fazer as concessões todas. Eu sozinha posso comer batatas durante três meses, com um filho não posso.

 

Angustia-se em relação ao seu talento?

Claro, toda a gente se angustia.

 

Uns são mais visíveis, outros parecem mais autoconfiantes.

Acha que eu pareço muito autoconfiante? Engana-se, pelo contrário. Tenho sempre um medo absurdo antes de começar as coisas. O que eu acho é que uma pessoa angustia-se e deve angustiar-se pelo seu talento; mas tem também que poder aceitar que o que faz é, em grande parte... No resultado final domina o quê, 30%?

 

Estava mais angustiada do que é normal em relação à sua estreia na realização?

Claro que estava. Mas há acasos... Quando escrevi pensei nuns actores e depois noutros e depois tinha de filmar naquela altura, com aquele dinheiro, naquelas condições. Falei com o Raul Solnado e o José Viana três dias antes de começar. Não tinha actores; não tinha porque não achava possível ter aqueles actores, «O quê, ir buscar o Raul Solnado que deve ter tanto que fazer?» E foi e correu tudo maravilhosamente.

 

Como é que foi o momento em que disse pela primeira vez «Acção»?

Isso foi uma vergonha! [riso] Mas passa depressa. Pior que Acção é Corta. Se estiver a representar é com certeza muito mais difícil; a realizar vê-se o que não está bem. Como é uma evidência no momento, mesmo que seja uma burrice, dá uma enorme força. Nas curtas-metragens há uma vantagem: como nunca há condições nenhumas, as pessoas estão lá porque acreditam e têm vontade. Não se pode desiludi-las e, como se sabe que as pessoas lá estão porque gostam, há uma liberdade muito grande.

 

O filme vai ser comercializado? Em Portugal temos assistido à experiência de algumas curtas a precederem as longas-metragens.

Em princípio sim, é bastante comprido (21 minutos) e é preciso encontrar um filme que não seja muito longo. Já houve contactos mas não sei quando nem como.

 

Está com medo da crítica, do público, do que os amigos do meio vão dizer? Ou com essa relativização de que falava há pouco as críticas não a tocam de todo?

Ah mas é essa a imagem? Não é nada verdade, as coisas tocam-me imenso. E as críticas dos amigos são as piores de todas, amigos do meio e sem ser do meio. Agora estou um bocadinho mais descansada, o filme foi bem aceite, Vila do Conde (Festival de Curtas-metragens) correu bem, foi vendido para o Canal Plus...

 

Se tivesse corrido mal, seria o suficiente para a deprimir?

O estado de espírito para este filme era «Vou ver se eu sou capaz ou não, se tenho ideias, se sei dirigir actores, se gosto ou não gosto». Se o filme tivesse corrido mal provavelmente teria arrumado as botas.

 

Lidar com o fracasso é uma coisa complicada. Uma coisa é dizer «Pronto, arrumo as botas» outra é...

Claro que é difícil lidar com o fracasso, teria detestado, teria estado deprimidíssima. Aturavam-me em casa.

 

Não me lembro de nenhuma situação sua de fracasso.

Não. Não ter fracassos também prova que não corro muitos riscos. Não tenho a sensação que seja uma atitude muito consciente, mas parece-se um bocadinho evidente.

 

Porque é que o homem do filme se chama Jerónimo?

Porque é um nome que eu gosto, que soa bem, tem um O lá dentro.

 

Fala com o seu filho em português?

Sempre, sempre em português. Falo em francês com o meu marido.

 

Casou mesmo, pela igreja e isso tudo?

Não, não, tenho que tratar agora dos papéis. Pela igreja não me caso de certeza, mas quero casar-me. Não sei bem como dizer, digo «o meu marido», mas ele não é meu marido; não suporto «companheiro» e «namorado» já não pode ser porque ele é mais do que isso.

 

Nem em miúda sonhou com o vestido de noiva?

Não, eu morria de vergonha num vestido de noiva, fugia logo. Entrar na igreja com as pessoas à volta e o padre ao fundo, com um véu e umas grinaldas, que horror!

 

O casamento simboliza o ideal romântico feminino. O seu era o do príncipe que vem buscar a donzela?

O casamento era bom para as bonecas, para as Barbies. O meu... Mas eu sou muito romântica [riso]. Ideais românticos há vários, mas parece-me que são mais quotidianos.

 

O Senhor Jerónimo acaba sozinho debaixo de uma árvore.

Pensei que era uma morte digna. Não há pior solidão do que a solidão que se sente no meio de uma cidade com as ruas apinhadas de pessoas, a rirem, a falarem, a cantarem, a namorarem. Quando se está completamente sozinho a solidão não tem o mesmo peso. 

 

De qualquer maneira agora tem o seu filho. Estava a pensar naqueles pais que dizem que os filhos são um amparo para a velhice.

Sei lá, se calhar vai fechar-me num asilo [riso].

 

Dá-lhe para pensar no futuro?

Ai nem penso nisso, eu aos setenta, que horror! Gostaria imenso de conseguir envelhecer bem; para já não consigo e acho uma aberração. Vê como não sou assim tão segura, também tenho algumas angústias.

 

 

A sua imagem é muito mais de uma pessoa convicta, muito pouco de alguém frágil e inseguro do seu trabalho.

Se quiser pode ir ali falar com o meu marido e ele dá-lhe outra versão. Passo a vida entre Lisboa e Paris e não há nada que me angustie mais que partir. Na véspera de uma partida estou angustiadíssima, quer num sítio quer noutro. 

 

Medo de quê, afinal?

Medo que as coisas desapareçam com o partir. Eu sei e sou absolutamente capaz de fechar portas.

 

Cortar relações com pessoas?

Cortar relações é uma forma de manter ainda uma relação qualquer, mesmo mentalmente.

 

O que pode ser tão grave para fechar assim uma porta?

Pode ser uma traição.

 

Perdoa?

Não, perdoo pouco. O mais doloroso é quando se percebe que não há mais nada a dizer, que não há qualquer afinidade. O meu maior pânico são os desgastes, a usura, nem sequer é o corte de uma relação.

 

Já foi trocada?

Fui uma vez enganada, mas trocada, trocada não. Foi uma sensação muito esquisita. Nunca troquei uma pessoa por outra.

 

A fidelidade é-lhe natural?

É, não só a amorosa mas também a profissional; eu podia trabalhar só com três realizadores. Não se trata de jogar pelo seguro, acho é que se vai mais longe; Os inícios são penosos e difíceis, normalmente são menos penosos porque são entusiasmantes, mas não deixam, por isso, de ser laboriosos. Acredito nas coisas que se constroem na duração, não tenho fascínio pela aventura. Não quer dizer que não goste de descobrir coisas novas mas não me sobe a adrenalina. Tenho imensas reticências em viajar por viajar, estou sempre à espera de um pretexto para ir trabalhar num sítio que quero conhecer.

 

Demora muito tempo a deixar que os outros entrem no âmago de si?

Talvez, não sei. Não tenho a sensação de fazer grande mistério.

 

Acha-se fácil?

Então não sou fácil e acessível?

  

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 1998