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Anabela Mota Ribeiro

Ingrid Betancourt

07.03.14

Ingrid Betancourt foi sequestrada em 2002 pelas FARC. Os guerrilheiros colombianos mantiveram em cativeiro a senadora e candidata à presidência cerca de seis anos e meio. O livro Até o Silêncio Tem um Fim é um relato doloroso desta experiência. Que descobre o humano sobre outro humano numa situação como esta? E que descobriu Ingrid sobre ela própria?

 

“Despojada de tudo, tinha agarrado a minha energia à felicidade de o ouvir, a voz do meu filho transformada em voz do homem. E, como Penélope, fiz e desfiz a minha obra à espera desse grande dia.” Mas você não é Ulisses da obra de Homero, que vive a tragédia e enfrenta os grandes desafios?

Eu era Penélope porque era a que esperava, enclausurada numa selva. Era quem fazia e desfazia, na minha cabeça, o momento da libertação. Não era a que estava a fazer grandes viagens.

 

O seu primeiro desafio era transformar o mundo, através da política. E por causa dessa aventura caiu nesta situação. Por isso pergunto se tem um pouco de Ulisses.

Desse ponto de vista, sim. Em Penélope há uma estratégia para desfazer uma coisa que lhe dá trabalho a fazer. Para ter uma desculpa para esperar. Percebo que as pessoas possam entender o que me aconteceu como uma grande aventura, mas para mim foi uma grande tortura. Na viagem de Ulisses há um poder sobre o tempo e o espaço, que eu nunca tive. Ele era senhor da sua vontade, capitão do seu barco. Eu não.

 

A pergunta – como seria a voz do seu filho? – era um sonho, que criou para si mesma, para enfrentar a espera?

Sim, imaginava-o a ele. Tal como imaginava a minha filha. Precisava de projectá-los visualmente na minha cabeça, para sentir que estava em contacto com eles. Tinha perfeita consciência de que o tempo estava a passar e de que eles continuavam a caminhar. Quando me sequestraram, eram crianças.

 

Que idades tinham?

Lorenzo tinha 13 e Mélanie tinha 16. Eu conseguia imaginar como tinha crescido Mélanie, dos 16 aos 22 anos; mas custava-me muito imaginar como estaria Lorenzo. Se já estaria transformado num homem? Se já teria mudado a voz?

 

Era um espaço só seu, simultaneamente de sonho e realidade, para poder respirar um outro ar, diferente do cativeiro. Que continuava a ser a mamã, e não só a refém dos guerrilheiros.

Exactamente. E para sentir que o tempo não me tinha distanciado completamente deles.

 

No livro fala-se da família como a coisa mais importante. Mas é curioso que diga: “...ficaria [Mélanie] desiludida com a mulher em que me tornara?”. Você também tinha mudado.

Sabia que os meus filhos tinham uma imagem minha quase mitológica, sobretudo o mais novo. Pensava: “Que recordações pode ter de mim? Que recordações tenho eu dos meus 13 anos? Não se lembra de mim. A imagem da minha cara apagou-se. Já não sabe quem eu sou”. Com a minha filha: eu sabia que ela tinha conhecido uma mulher diferente da que iria encontrar, depois do cativeiro. Claro que me perguntava se o que eu era, depois desses anos de sofrimento não os iria desiludir.

 

A selva matou, de certa forma, a pessoa que existia antes? Uma parte da outra que estava antes?

Não. Sou a mesma pessoa em momentos diferentes da sua própria história. Em outra idade, com outra bagagem de vida. Há aspectos dessa “Ingrid de antes da selva” que continuam cá. É mais fácil dizer-lhe o que mudou. Mudou a visão do mundo. Acho que era bastante maniqueísta, via as coisas a branco e preto. Na selva descobri os cinzentos. Isso dá outra dimensão, e creio que faz o mundo mais bonito. A relação com o tempo também mudou, porque a relação com a morte se alterou, e a morte é que determina o valor do tempo. Se fôssemos eternos não haveria qualquer problema... Muda a prioridade que damos às coisas.

 

Que prioridades eram as suas antes da selva?

Eu tinha que fazer uma séria de coisas, projectos muito definidos, de médio e curto prazo. Tinha uma agenda cheia de sucessos diários. Hoje em dia não quero essa vida. Quero ter tempo para reflectir, para ler, quero ter tempo para as pessoas que amo, para a minha família, os meus filhos. Quero estar disponível quando precisam de mim. Não quero ter que dizer depois ou esperem... Sou mais paciente, mais tolerante, sou menos exigente.

 

Consigo e com os outros?

Comigo continuo a ser exigente. É o meu carácter, é parte do que sou. Gosto de estabelecer metas e cumpri-las. Creio também que a área de interesse da minha vida se alterou.

 

Era a política. E agora?

O mundo. A política que eu fazia era uma política em que bastava ser eleita para mudar as coisas que eu achava importante mudar, apresentar projectos-lei, ter influência sobre decisões governamentais. Eu tenho poder hoje, mas é diferente. O poder de dizer o que quero, de ser escutada, de conhecer pessoas que são interessantes.

 

Sobre as pessoas, que aprendeu na selva? E sobre si própria?

O que se aprende na selva são coisas muito íntimas, difíceis de verbalizar. A maior força reside na consciência da debilidade, da fragilidade. Somos fortes quando tomamos consciência das nossas limitações. Temos sempre, interiormente, a capacidade de crescer, de ser mais fortes ou superiores ao nosso sofrimento, àquilo que vemos como um travão ou um obstáculo na nossa vida. Há sempre, em cada um de nós, essa dualidade de percepção; por um lado somos frágeis, e temos consciência dessa limitação, e simultaneamente é nessa mesma limitação que reside a força para superar obstáculos.

 

No livro fala das latas de conserva que o seu amigo Lucho recebia para remediar a diabetes, e que suscitavam ciúmes. “Uma garfada de atum era um luxo invejável”.

É interessante que tenha reparado nisso, pouca gente reparou; também creio que é uma das coisas mais fortes que estão neste livro. [Esta conversa] volta a colocar-me na situação. Vejo as reacções de uns e de outros, os ciúmes, companheiros nossos que (era tanta a dor que sentiam…), se davam atum ao Lucho, por estar doente, diziam estar também doentes para que lhes dessem o mesmo. Para Lucho não era uma opção, não era um luxo. Era uma necessidade. Isto criou muita controvérsia. Mas que podemos dizer? A fome era muita. As guerras fazem-se pelos egos, há momentos em que o ser humano se deixa levar por sentimentos irracionais e negativos.

 

E em momentos extremos aparecem coisas irracionais ao de cima…

Havia muita irracionalidade neste comportamento. E uma vontade de ignorar a realidade para poder justificar este comportamento. Tenho certeza de que eles tinham consciência de que essas reacções não eram correctas, mas tinham que justificá-las. Para isso, inventavam um raciocínio quase jurídico, ouviam-se frases como: “Aqui não pode haver preferências. Não podem existir prisioneiros de primeira e segunda classe.” Soa muito bem, mas quando há um doente, isto não se aplica. Isto tem necessariamente que nos fazer reflectir sobre o que se passa no mundo. Há raciocínios que parecem lógicos e escondem grandes perversidades.

 

Passa a ser outra discussão, não se trata de ser justo ou injusto, mas sim de vida ou morte?

Creio que ou é ético ou não é ético. Decidem-se coisas que são justas, mas não-éticas.

 

É um pouco o cinzento de que falava?

O cinzento, exactamente. Onde isto leva é às limitações que temos como seres humanos. A única maneira de enfrentar estas situações é com compaixão e muito amor. No final de contas, todas estas tensões se podem dissolver com a palavra, se nos dermos oportunidade para falar, entender, criar pontes de comunicação. Nesta situação de que falávamos [de Lucho], sentia-me tão indignada que simplesmente criei um muro de silêncio. Não queria sequer falar do tema, parecia-me infame. Mas a reacção correcta era falar sobre isto. Ter ido mais ao fundo das motivações de cada um.

 

Também descobriu, neste processo, coisas de que não gosta em si. Coisas que não correspondem à imagem de heroísmo e coragem que os outros têm de si…

Sim. Mas uma pessoa pode suportar mais facilmente a avaliação que os outros fazem de nós do que a avaliação que fazemos de nós mesmos. Os outros tendem sempre a criticar. O que nos deve alertar é quando sentimos que o que estamos a fazer não está bem. Vamos sempre encontrar muitas justificações para o fazer.

 

Racionalizações.

Sempre, a racionalização permite-nos explicar por A, B e C por que temos direito a fazer o mal que estamos a fazer. Vivemos como sendo vítimas das nossas reacções.

 

Mas somos também os autores.

Somos autores. O que sei é que podemos mudar – essa é a boa notícia. Na selva, foi uma oportunidade que nos foi dada: estar nus diante dos outros. Não havia maquilhagem possível. Não havia telefone, porta, compromissos. No mundo, em liberdade, podemos sempre encontrar uma maneira de sair de um problema, fisicamente, escapar, não o resolver. Na selva, numa situação de cativeiro, somos confrontados com o que somos e com o outro. E não há saída.

 

São duas selvas: a selva enquanto espaço físico à volta e a selva que se instala entre as pessoas, na forma como se relacionam.

A selva dos animais e da vegetação é incómoda. Mas a selva dos homens é cruel.

 

Desde o princípio do livro fala da sua obsessão: escapar. A sua companheira de cativeiro, Clara Rojas, tinha um comportamento diferente: procurava adaptar-se. Nunca, nestes seis anos e meio, pensou que poderia também adaptar-se?

Tive que adaptar-me de muitas maneiras. Mas não queria. Achava que se criasse raízes estaria a trair o que para mim era fundamental. O desejo de escapar era o que me permitia aceitar o dia que passava. Nesse dia eu tinha estado a planear como escapar, tinha sido produtiva...

 

Tinha um objectivo.

Um objectivo e um controle sobre o meu tempo e o meu espaço. O tema da adaptação era uma traição à minha essência. Sabia que os guerrilheiros queriam que nos adaptássemos, que faziam o possível para que perdêssemos a sede de fugir. No fundo o que queriam era que aceitássemos que a guerrilha tinha direito a manter-nos sequestrados. Isso era algo que não iria aceitar.

 

Era uma forma de se manter viva psicologicamente?

Era, mas era também uma forma de manter a ordem na minha cabeça. A ordem era: estou injustamente sequestrada, tenho o direito de voltar a casa. Não é somente o meu direito, é a minha responsabilidade, porque tenho dois filhos à minha espera e não vou aceitar que sejam órfãos, enquanto for viva. Portanto, tenho o dever de escapar. Se me adaptar traio os meus filhos e aceito o que não devo aceitar. Eram temas muito profundos. E deles derivavam uma série de comportamentos, em todos nós.

 

Este livro é dedicado a diferentes pessoas, e depois numa página à parte, é dedicado apenas à sua mãe. Porquê?

A minha mãe foi quem me manteve viva. Na sua obstinação, no seu amor. Ela enviou-me mensagens todos os dias. Segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira, sábado, domingo, segunda-feira, terça-feira, quarta-feira... Seis anos e meio.

 

Foi a primeira vez, nesta conversa, que se comoveu. Isso aconteceu porque falou da sua mãe? Comove-se muito?

Acontece-me frequentemente. Mas hoje estou muito bem, então aconteceu menos! [risos] Pouco a pouco fui-me fortalecendo. Há momentos de emoção, ela existe e existirá sempre. Cada vez menos. Chegará um dia em que deixará de acontecer.

 

Como a raiva, que desaparece?

Sim. Ou como uma porta que se abre sem fazer barulho.

 

Termina o livro assim: “Tudo desaparecera, tudo fora levado, esvaziado, limpo. Acabara de nascer. Não havia nada mais em mim senão amor.” Como é possível apagar a raiva e a dor que estão para trás e nascer limpa?

É a graça. E é muito natural. Como quando se dá à luz. O parto, normal, exige muito e é doloroso. Mas esquecemos que sofremos. Perante o bebé, a única coisa que dizemos é: “É uma maravilha.” Há momentos em que a passagem da dor para a felicidade pode dar-se num segundo. São experiências muito fortes que todos temos, de momentos em que soltamos tudo e ficamos novos. Isso é renascer.

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2010