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Anabela Mota Ribeiro

Irene Flunser Pimentel (s/ Portugal)

18.05.14

Irene Flunser Pimentel é historiadora. Houve um tempo em que encarnou a revolucionária soixante-huitard. A via que hoje preconiza para intervir social e politicamente é a reformista. Cita uma frase famosa: Chasser le naturel, il revient au galop. “Significa: mesmo que expulsemos o natural, aquilo que a pessoa de facto é, esse natural, vem a galope.” Qual é esse natural dos portugueses? Como somos, nomeadamente, quando se olha para a nossa história recente? “A História relativiza os grandes dramas. No meu caso, penso que, depois do Holocausto, se houve renascimento, se houve outra vez uma cultura possível, se houve política, também agora vai continuar a haver. Não sabemos é o quê. Nenhuma das chamadas ciências humanas nos permite ver o que vai ser o futuro. Basta ver os economistas: todos têm errado.”

Foi Prémio Pessoa em 2007.

 

É meia estrangeira. A sua mãe é suíça. Como é que apresentaria Portugal e os portugueses a um estrangeiro?

Tenho dificuldade em dar uma essência dos portugueses. Não se pode falar dos portugueses como uma entidade abstracta. Mesmo assim, diria que somos maníaco-depressivos. Tão depressa achamos que somos o máximo como achamos que somos os piores do mundo. Também temos o “nós” e os “outros”. Nós somos os bons, todos os outros não prestam para nada e não nos deixam avançar.

 

Os “outros” podem ser os estrangeiros, os “outros” portugueses, o colega?

Os outros portugueses. Quanto aos estrangeiros, há uma certa reverência e um certo racismo. Depende do estrangeiro. “Nós” é o meu vizinho do lado. “Eles não pagam impostos”, “eles não têm civismo a conduzir”. “Eu” pago os meus impostos; e se não pagar não digo, porque sou o espertalhão.

 

O “chico espertismo” é uma marca vincada dos portugueses.

Sim. E o “chico espertismo” está muito ligado à corrupção.

 

São dois pesos e duas medidas. Ser espertalhão é uma coisa à qual piscamos o olho quando é feita numa pequena escala – aplaudimo-la, achamos que eles a nós não nos levam. Quando é numa grande escala…

Quando são grandes corruptos, indignamo-nos. Isso está ligado a outra componente: a inveja. Ele conseguiu fazer aquilo, eu também consigo.

Estas últimas declarações de Cavaco Silva, além de tudo o mais, denotam no próprio Presidente da República, que se esqueceu que o era naquele momento, uma inveja. Como quem diz que outros ganham muito mais do que ele. Estas afirmações deviam ter consequências. Uma das características portuguesas é que a culpa morre solteira. Basta pensar no que aconteceu com os fundos da CEE; onde foram parar as verbas, como é que se gastaram? Como é que temos um Presidente da República que participou activamente nisso, e que ao mesmo tempo parece que está de fora, critica de fora? Muitos outros ex-elementos do governo, muitos outros ex-ministros das Finanças, quando falam, parece que não tiveram responsabilidades.

 

Defende a criminalização dos políticos e da sua acção governativa?

Sou contra. Mas tem de haver uma responsabilidade. E uma visão histórica dos acontecimentos. Espero que o que foi dito agora não esteja ultrapassado daqui a um mês. É como se estivéssemos permanentemente a viver no imediato, sem nada que nos tivesse antecedido e sem futuro.

A memória está ligada ao esquecimento, e é fundamental haver esquecimento. O problema é o que permanentemente esquecemos e o que permanentemente vamos buscar. O que vamos buscar é o ditador, a autoridade. O que esquecemos é a miséria ou a desigualdade de circunstâncias. Quantas pessoas ficaram pelo caminho porque não se puderam educar?  

 

Quando começamos a olhar para o nosso passado recente, tudo vai dar aos 48 anos de salazarismo?

Há uma tendência para isso. Em História não há profecias, porque o decurso dos acontecimentos depende de vários factores e de diversas combinações destes factores; tanto pode acontecer algo como o seu contrário. Mas diria que alguns vão começar, muito em breve, a responsabilizar o 25 de Abril. Há um certo revisionismo histórico, quando se diz que no marcelismo havia um desenvolvimento económico, um avanço e uma abertura, e que se não tivesse havido o 25 de Abril teríamos tido outro percurso.

 

Austeridade é a palavra mais usada, e sentimo-nos colectivamente num beco sem saída. Estamos?

A imagem que passou muito bem, e que continua a passar, é a de que não há alternativa. Há a austeridade, há o empobrecimento. Não digo que determinadas questões não devessem ser reestruturadas, havia coisas que não podiam continuar, e por isso já estavam a decorrer reformas. Mas estão a perder-se, com esta radicalidade, em nome de uma política e de uma ideologia, determinados direitos adquiridos. As pessoas estão apáticas, estão com medo, não vêem alternativa. Acham que vivemos acima das nossas posses e que agora temos que poupar.

 

E não vivemos? Sendo verdade que o problema não somos só nós ou o que os nossos políticos nos dizem que gastámos. A crise da dívida não é exclusiva de Portugal.

As actuais forças políticas de direita ganharam as eleições com a noção de que isto era só em Portugal. A narrativa era a de que, acabando com uma determinada forma de fazer política, de governar, passaríamos a ser bem vistos no estrangeiro, a dívida iria ser perdoada, os juros iriam baixar. Neste momento a narrativa é a de que estamos numa conjuntura mundial. Coisa que sempre aconteceu.

 

Um alemão vive acima das suas posses? Pergunto isto com a ironia do português que não gosta do cumpridor exemplar, do aluno marrão que nunca se descai.

Estava a falar do discurso que é transmitido, não do meu discurso. Não posso dizer que a maior parte dos portugueses tenha vivido acima das suas posses, posso dizer que há pessoas que viveram acima das suas posses. O grande problema é a falta de produtividade. Mas nesse sentido, quem é que é responsável?

 

Dirigentes que não exigem outra produtividade ou não a imprimem.

Não imprimem, não sabem gerir, estão-se nas tintas. As elites, os gestores, os patrões, têm aqui uma enorme responsabilidade. Podem ser gastadores, ignorantes, muitos deles têm a 4ª classe.

 

No estrangeiro, o português é louvado pelos seus dotes de trabalhador.

Na Suíça, os portugueses são considerados os mais produtivos. Na restauração, há uma pessoa para servir 40, e aquilo anda. Evidentemente com salários muito superiores aos de miséria que aqui vigoram, e com um maior reconhecimento do mérito do trabalho de cada um. Em Portugal, num café, uma pessoa vai buscar uma coisa e não vai buscar três. Isto passa pela educação, pela organização, de alto a baixo da sociedade.

 

Mas como resolver o problema da produtividade?

Não é com o aumento exponencial das horas de trabalho e da redução do tempo de lazer e de descanso, não é com salários baixos, que se aumenta a produtividade. Não é com este ciclo vicioso de empobrecer, deixar de consumir – qualquer dia não há um restaurante aberto – que resolvemos o problema. Ao contrário da Alemanha, temos o hábito de jantar fora, fazer vida social no restaurante, o que é uma boa coisa. Vai acabar.

 

Muitos restaurantes queixam-se do aumento do IVA. E de haver menos dinheiro. Para um povo como o alemão ou o holandês jantar fora é um luxo. Olham para este hábito como sendo um desperdício. Olham para os países mediterrânicos como sendo perdulários.

É verdade.

 

Estas noções de que estamos a tratar, da relação com o trabalho e o prazer, têm que ver com uma matriz religiosa?

Não tenho dúvida nenhuma. O Espírito do Protestantismo de Max Weber ainda hoje é um livro fundamental [para compreender a Europa]. A minha família materna é toda protestante. A relação com Deus é directa e a nossa, católica, não é. Temos o acto de contrição, a confissão, que passa pelo padre, e que põe tudo outra vez a zero. Podemos pecar, e no momento seguinte, se nos formos confessar e comungar, estamos novamente puros. Eles têm uma visão completamente diferente. A graça divina, que para nós vem do exterior, para eles é uma coisa interior. “Tenho que trabalhar, tenho que poupar, para obter essa graça divina”. É verdade que é muito mais interessante a nossa cultura, do divertimento, do gozo gratuito, mas podíamos conjugar as duas coisas.

 

Por que é que nunca conseguimos conjugá-las? E por que é que, uma após uma, ao longo dos séculos, fomos desperdiçando todas as oportunidades de operar mudanças de fundo?

A minha interpretação é que achamos sempre que alguém vai tratar de nós. O Estado Novo, aquele regime, convinha muito, também, aos portugueses. Os portugueses aceitaram-no e não é por acaso que durou tantos anos. Não é por causa da repressão. A repressão era dirigida contra alguns. O grosso da população tinha a ganhar com aquilo, e tinha, sobretudo, a ganhar com esse aspecto de não ser responsabilizado.

 

Em liberdade, escolhemos. E somos responsáveis por essa escolha.

Com o 25 de Abril, com a democracia, passámos a protestar e a reivindicar como se tivéssemos direito a tudo, mas esquecemos que também tínhamos deveres e responsabilidades. Não temos a noção de que somos uma sociedade em que temos de atender aos outros e às suas necessidades. A falta de civismo é típica: as casas dos portugueses de certeza que não são como as nossas ruas – uma porcaria. Salazar era uma espécie de paizinho bondoso que olhava pelos seus filhinhos tontos. Ele próprio tinha os portugueses em muito má conta. Achava que os portugueses eram sentimentais demais. Odiava o fado, o fatalismo.

 

Era bonzinho porque, apesar de tudo, não foi uma ditadura tão violenta como a do franquismo?

Não. Era um pai severo que geria uma situação em que os filhos se portavam mal. Para o que ele queria, não precisava de mais violência. E era uma violência rasteira que perdurou durante anos, que teve resultados perniciosos. “Não te manifestes, não fales disto”. Uma violência que em Espanha seria quase impossível. Como é que se proíbe um espanhol de falar ou de berrar? Aqui bastava dizer que não fica bem, que o vizinho do lado está a olhar, que a polícia está atenta caso se ultrapasse o risco.

 

Era todo um dever ser, que grassava na sociedade.

Uma aparência. Aparência muito utilizada por Salazar, que sabia que “o que parece, é”.

 

Mas quando as pessoas diziam “parece mal”, isso era lido como um conteúdo despolitizado.

Despolitizado e cultural, atávico. Mas é claro que é politizado, é uma maneira política de ser. O carisma salazarista é o carisma do homem que não fala muito alto, que tem aquela voz, aquele sotaque da Beira. Um carisma que permitia uma certa identificação com o ditador da parte dos governados e que o punha, enquanto governante, noutro patamar. Num patamar diferente do do homem com o chapéu na mão, a olhar para o chão, no relacionamento com alguém que manda. Mas isso ainda cá está dentro. Acabamos por nos vender por tuta-e-meia, para estar bem com aquele senhor, e não nos importamos, até, de trair o nosso vizinho que está nas mesmas circunstâncias.

 

Um gesto na ditadura – não sei se hei-de dizer na ditadura ou no tempo dos grandes industriais – que impressiona: o empregado vai pedir ao patrão que chame à atenção do seu filho, para que estude, para que zele pelo seu futuro. É uma abdicação daquela forma de autoridade (na relação com o filho) e revela uma dependência do poder. Nós, portugueses, somos um pouco assim? Estamos sempre a pedir a alguém de fora que intervenha por nós.

Sim. Durante os últimos anos foi a Europa. Agora temos de nos confrontar com a situação de que nem a Europa [nos pode acudir]. Estamos completamente despidos. Quando saí da política tive uma enorme angústia de me sentir livre. É duro ter a liberdade de pensar, a liberdade responsável de tomar opções, de ter que ter opiniões. Se tivermos alguém que se encarrega de fazer isso por nós, de bom grado deixamos.

 

A ousadia que nos permite ir mais longe exige várias coisas. Entre elas, ter um horizonte futuro, o que contraria o que há pouco disse, de vivermos no presente. Preferencialmente devíamos ter uma estratégia, para que a persecução de um determinado objectivo seja bem sucedida. E precisamos de ter a confiança de que aquilo pode correr bem, ou, mesmo que não corra bem, que há uma segunda oportunidade.

Exactamente. Não encaramos o lado aberto do futuro, e no entanto todos temos futuro. Isso é o que a História nos dá e que é muito agradável: vermos que há mudanças e que o mal nunca perdura. No período em que estamos a mudar não sabemos para onde vamos. Não sabemos o fim da história, porque esta não tem fim. É o contrário do que Fukuyama disse, quando disse que [a Queda do Muro] era o fim da história; ele próprio já recuou relativamente a essa afirmação em toda a linha.

 

Uma das marcas do nosso tempo é a velocidade. Quando pensamos no Holocausto, constatamos que os nossos pais eram vivos quando o horror maior estava a ser perpetrado na Europa. E tanto aconteceu depois disso. Mesmo depois de 1989, uma nova matriz foi inaugurada e rapidamente chegámos a um ponto agónico onde não esperaríamos estar, tendo começado há tão pouco tempo.

A minha mãe viveu tudo isso, tem 89 anos, está muito lúcida. Não está tão apavorada, como um jovem, e eu se calhar também não, porque tenho a idade que tenho. Está a assistir do balcão, como se aquilo não tivesse consequências para ela, o que lhe dá uma postura de independência e de liberdade. O mundo que nos foi ensinado, e eu sou filha do pós-Segunda Guerra, tinha a característica, muito iluminista e marxista, de acreditarmos num eterno progresso. À medida que íamos crescendo, íamos progredindo. Um jovem não tinha acesso a praticamente nada, mas sabia que ia ganhando acesso às coisas. Esse paradigma está completamente posto de lado. Já está há alguns anos posto de lado do ponto de vista factual e objectivo, mas subjectivamente é agora que os jovens se estão a aperceber disso.

 

E sentem uma castração do futuro?

Sentem frustração, que é uma coisa tremenda. Na minha geração, a frustração vinha dos pais, da autoridade; e isto resolvia-se, saíamos de casa ou fugíamos, ou casávamos. Sabíamos que isso tinha um fim. Agora é ao contrário. Muitos destes jovens tiveram acesso a muita coisa a que vão deixar de ter acesso. É muito mais difícil perder do que vir a ganhar. É preciso ver que tipo de influência vai ter este novo paradigma na vida das pessoas. E na política. Ainda estamos a viver, no pensamento, um mundo político do pós-guerra, mas, na prática, este já não existe. Não há é um pensamento adequado ao que estamos a viver.

 

Explique isso.

A forma como as sociedades democráticas estão organizadas é como no pós-Segunda Guerra Mundial, só que já não temos as características desse período. O estado social, que nasceu pouco depois da Primeira Guerra, mas sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial – o Welfare State –, é muito recente. No entanto, já está a ser desmantelado. Nós, devido à ditadura, apenas vivemos com essa noção de Estado-Providência, uma benesse à qual nos habituámos, desde 1974. Sem quase nos apercebermos, ele está a desaparecer.

 

A criação de um Estado Providência, no pós-guerra, era forçosa. Era preciso valer aos que sobreviviam.

Apesar do recente horror, havia um lado optimista de recomeço, renascimento. Hoje, assistimos à expressão de noções outrora consideradas eugenicamente criminosas, como a de que o Estado não se deve encarregar dos velhos e desempregados. Isto faz-nos lembrar a deriva eugénica dos anos vinte e trinta do século XX, marcada pelo darwinismo social, segundo o qual quem tem unhas é que toca viola.

As guerras [têm na sua génese], desde a Idade Média, pelo menos, a falta de pão e procuram resolver essa falta eliminando as bocas. Por isso se pergunta se não estaremos…

 

… a viver o advento de uma terceira guerra?

Há elites que não se importariam com isso. E não estou a falar só da indústria de armamento, que sempre existiu. Basta ver, nos Estados Unidos, o que foram estas últimas guerras. Se não tivermos cuidado podemos caminhar para qualquer coisa desse género. Estamos em cima do vulcão, sabemos que alguma coisa está a mudar e não sabemos para onde é que vai.

 

Voltemos a Portugal e à situação a que chegámos.

Ao estado a que isto chegou [riso], como disse Salgueiro Maia.

 

Se tivesse de apontar as grandes razões pelas quais estamos onde estamos, o que é que diria?

Não há uma razão, há vários factores, e tudo está ligado à ideologia e à política. Sou defensora de um estado social. É uma opção política fazer tudo para que ele subsista, sabendo que vai ter que ser reestruturado. Não pode ser extinto. A saúde não é um luxo, a vida não é um luxo.

 

Porque é que se opõe à extinção do Serviço Nacional de Saúde?

Eu tenho um seguro privado; parece evidente, se tenho um seguro, se raramente vou à segurança social ou ao médico de família, por que é que hei-de estar a descontar? Tenho tido essa discussão com a minha mãe, que diz: “O teu pai tinha dinheiro, foi operado; como o hospital público era o melhor, foi operado no hospital público, e não pagou nada. Não é correcto”. A questão é que tem de se ir buscar aos impostos das pessoas que ganham mais, e esses não devem fugir, para poder pagar o estado social a quem precisa. Mas todos têm que pagar e ter esse acesso. Isto só é possível porque a lei é universal. Se não tiverem esse acesso, não vão pagar todos e, então sim, deixa de haver dinheiro para assistir a todos.

 

Sente que continua a ser de esquerda porque…

Neste momento, por causa disto. É uma esquerda tão reformista que não tem graça nenhuma [riso]. Tinha muito mais graça ser revolucionária. Hoje não sou uma revolucionária. Sei o que é que determinadas revoluções deram, movidas por determinada ideologia. Devemos avançar e os progressos são feitos através de reformas.

 

Fala a soixante-huitard.

Para uma soixante-huitard, não havia coisa pior do que um reformista. Hoje sou isso, por escolha própria, e porque não há outra alternativa, segundo penso. Ser de esquerda hoje é defender o estado social, a educação para todos, com a noção de que isto são opções políticas – o dinheiro vai para ali porque se opta politicamente que vá para ali. Há muitas circunstâncias que fazem com que as pessoas não possam tocar viola.

 

Voltemos às razões, porque não é só uma, que nos trouxeram aqui. O que é que apontaria?

Tem muito a ver com a falta de democracia plena. Não posso culpar os políticos. Os políticos são à nossa imagem. Em democracia, ninguém nos proíbe a participação política. Se não a temos, é porque não queremos, é porque desistimos de actuar. Vejo por mim: não me tenho metido em política, e cada vez que me meto fico arrependida. É um processo muito…

 

Destrutivo?

É. As pessoas já não ouvem nem querem saber de alternativas. Ficam todas acantonadas em pequenos grupos, sectários.. Ainda bem que há políticos, seria muito pior se não pudéssemos delegar em ninguém. Eu investigo História e não tenho tempo para gerir o bem público; por isso, quero delegar em alguém a administração desse bem, sob minha fiscalização. Mas se as pessoas deixam de votar, se se estão nas tintas para isto tudo…

 

Enquanto historiadora, o seu objecto de estudo, mais do que tudo, é o período do Estado Novo. O 25 de Abril aconteceu nem há 40 anos. Nos anos subsequentes, houve uma grande participação política. Por que é que o envolvimento e a crença no futuro se dissiparam tão rapidamente?

Tem a ver com a questão do fim, ou não, da história. Para Portugal, o 25 de Abril marcou o início de um novo regime e parecia que tudo era possível. Parecia o início de uma nova história, que estava, no entanto, marcada a nível mundial por ideologias que tinham nascido no início do século XX. Depois veio a acalmia democrática e o amanhã que canta europeu. De repente, estávamos na Europa, numa democracia consolidada, como noutros países europeus, e nestes a tendência era para a apatia, a demissão política, o entregarmo-nos a plantar o nosso jardim. Isso está a mudar, porque já não estamos felizes. Temos duas alternativas: ou passamos a discutir e a actuar politicamente ou deixamos que uma ditadura providencial o faça por nós.

 

Disse que a História não se repete. Mas estudando períodos especialmente marcantes, fracturantes, é inevitável estabelecer paralelos, similitudes. Repetidamente olha-se para os anos 30 quando se analisa o tempo que vivemos. Faz sentido?

Hoje há certos aspectos que metem medo e que nos remetem para o final dos anos 20 e 30 do século XX. A crise financeira de 1929, a crise do liberalismo e da representação democrática. De repente começa a haver chapeladas, pancadaria, a luta contra os políticos, que não representavam as pessoas. E vieram opções políticas, ditatoriais, cujo objectivo principal era eliminar o parlamentarismo e os adversários políticos. E com um líder carismático. Hoje, numa situação de crise da democracia, de crise financeira, pode haver a tendência de procurar a solução num ditador populista, demagógico, que chegue aqui a dizer que amanhã resolve isto tudo. Eliminando o conflito, eliminando greves, eliminando manifestações. E qualquer regime ditatorial que viesse agora, seria pior do que tudo aquilo que já vivemos, pelo poder da informação. O Estado Novo escutava 20 telefones por dia, hoje pode escutar-se tudo com uma antena parabólica.

 

É nos anos 30 que as ditaduras se afirmam na Europa. Hitler ascende ao poder em 1933.

O Salazar também, o Mussolini antes, em 1922. E tinha acontecido a crise de 1929, em que se viu que quem sofreu mais foram os países mais desenvolvidos – a Alemanha. É por isso que a Alemanha tem horror, por exemplo, a fazer moeda. Lembram-se de na crise de 29 as pessoas andarem com maços de notas que não valiam nada.

 

Uma alemã, casada com um chileno, contou-me que num jantar com alemães perguntaram, uma semana antes, se ele, chileno, tinha ideia de quantas batatas ia comer. Pareceu-lhe uma pergunta abstrusa. Ela explicou-lhe que, além dos lugares comuns que usamos para caracterizar os alemães, existia uma memória da guerra e do racionamento. Este gesto traduzia isso.

É verdade. Uma amiga minha alemã, que adora Lisboa, perguntou-me ao telefone: “E os restaurantes, continuam cheios?”. Eu disse: “O que é que estás a querer dizer?, que continuamos a gastar dinheiro e a viver acima das nossas posses?”. Ela responde: “Sim, porque aqui os restaurantes estão vazios”. Sempre estiveram. Havia já uma pontinha de racismo. Logo a seguir ela muda o discurso e começa a atacar os gregos. “Eles são culpados”. Mas é verdade que a memória [dos alemães] e doutros europeus é muito maior do que a nossa. Outro dia estava a ler o livro do Tony Judt, o último que escreveu antes de morrer, O Chalet da Memória, em que descreve a austeridade no pós-guerra em Inglaterra, que durou até aos anos 60. Disso não temos a noção, porque não vivemos a guerra e não o tivemos no pós saída da ditadura. Embora não se deva esquecer que, em Portugal, até aos anos 60 do século XX, houve fome, e as pessoas tiveram de emigrar em massa para sobreviver.

 

Voltando à forma como se dissipou tão rapidamente esse entusiasmo colectivo.

Logo a seguir ao 25 de Abril vivemos uma crise tremenda, chamou-se o FMI. Lembro-me das manifestações de bandeiras pretas, sobretudo na margem sul, de pessoas que não tinham ordenado ao fim do mês, ordenados pequenos. Foi antes da CEE. Muito rapidamente, muita gente achou que estávamos pior do que antes. O entusiasmo foi até 76, 77, não chegou aos anos 80. Nos anos 80 vivíamos em democracia mas foram anos duros, negros.

 

Qual é que acha que foi a grande oportunidade, ou as grandes oportunidades, que Portugal desperdiçou? E isto também é uma narrativa recorrente acerca dos portugueses.

Foi a entrada na CEE. Não é muito original, toda a gente diz isso, mas já na altura tínhamos a noção de que o dinheiro não estava a ser bem aplicado. E não estou a falar das estradas, tínhamos que ter estradas. Houve tanta corrupção… Havia cursos para tudo e para nada, ninguém fiscalizava nada. Alguém é responsável, há uma responsabilidade política.

Mais a questão da agricultura e da pesca. Hoje fala-se, numa atitude utópica, de um retorno serôdio ao campo, à semelhança do que parece estar a acontecer na Grécia, onde certas pessoas tentam assim completar a dieta familiar. De novo, a atitude ruralizante de Salazar. Na Segunda Guerra Mundial, havia uma campanha em todos os jornais, muito bem feita do ponto de vista gráfico, “Produzir e Poupar”. Dizia-se, bem à portuguesa, à salazarista, que cada pessoa que tinha um canteiro podia plantar umas batatinhas.

 

Mesmo que a responsabilidade não seja inteiramente nossa, a verdade é que não poupámos e não produzimos.

E é verdade que temos dívidas para pagar. Mas é preciso ver como é que estas dívidas foram produzidas. Não me sinto nada responsável por esta dívida, mas vivo em Portugal e acho que todos temos que pagar. Não sou como certas pessoas que dizem que não se devem pagar impostos.

 

Quem são os grandes responsáveis pelo estado a que isto chegou, retomando a expressão?

Não consigo dizer que é o antigo governo, que são as pessoas dos vários governos que estão aqui desde o 25 de Abril, até porque isso seria retirar responsabilidades às forças políticas que nunca estiveram no governo. Ora todas têm responsabilidade. Não me esqueço que o chumbo do PEC 4 foi da autoria da direita, hoje no poder, e de uma certa esquerda. O que é que esta pensava? Que com eleições ganharia a esquerda? Mas o grande responsável é a alta finança. É um processo complexo e que ainda não está muito à vista, mas alguém andou a destruir isto tudo em nome de interesses financeiros, em nome de ganhar, ganhar, ganhar. A especulação financeira que aconteceu é crime.

Outra coisa muito perigosa é que os valores europeus, que são fundamentais e que são os meus valores, pelos quais sempre quis lutar e gostaria de continuar a lutar, estejam a desaparecer.

 

Com o iminente ou eventual colapso da Europa?

Sim, e tenho muito medo que o paradigma chinês ou que até o paradigma norte-americano, que não é igual ao europeu, triunfe sobre o nosso. Esta percepção, já a tive há alguns anos, quando comecei a pensar em como as coisas eram produzidas na China, e quão baratas eram. A solução era um proteccionismo? Mas isso seria possível? Acho que não, o mundo global não o permite.

 

Para terminar, e voltarmos ao ponto de partida, como falaria de nós a um estrangeiro?

Embora sabendo que esse nós não é uma entidade colectiva, mas uma colectividade de indivíduos, vou utilizar esta linguagem: “Já cá estamos há muito tempo. Por vezes, falhamos, outras, nem tanto. Conseguimos sempre encontrar a nossa própria via de sair do aperto. E para o conseguir, contamos com as vossas sugestões. Temos de fazer algo contra as terríveis desigualdades existentes entre nós, portugueses”.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Janeiro de 2012