Jacinto Lucas Pires
Jacinto Lucas Pires escreve romances, contos, peças de teatro, filmes, música. O seu mais recente romance, “O verdadeiro ator”, venceu o Grande Prémio de Literatura DST 2013 e foi publicado nos EUA. Mantém o blogue “O que eu gosto de bombas de gasolina”.
“Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya”, de Jorge de Sena: “Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós”. O que deseja para os seus filhos, para o país, no novo ciclo que se anuncia?
Desejo um país onde a esperança não seja a palavra proibida, a palavra dos loucos, mas o terreno concreto de onde partem as ideias, as escolhas, a acção. Desejo um país com mais igualdade e mais abertura. Um país com voz europeia, onde o debate de ideias possa juntar outra vez paixão e seriedade, profundidade e clareza. Onde a representação política seja realmente a missão de honra de servir o bem-comum.
Acredita deveras que será um novo ciclo? Parecemos exauridos. Como encontrar/alimentar a garra dos dias inaugurais? Estamos atados no “a gente vai levando”, de uma canção brasileira?
Não é o gerúndio que nos ata. Acho que é antes uma forma de medo. Uma estranha forma, entre o “medo de existir” de José Gil e o “medo de ser feliz” de Fernando Mamede. Medo de sairmos de nós para desatar os nós. É notório que a austeridade que a coligação Passos-Portas-Troika impôs ao país tem tornado mais literal e mórbida a nossa famosa “saudade do futuro”.
Como? Pode falar mais do medo e do cansaço?
Como se o futuro estivesse morto e enterrado, e agora só nos pudéssemos preocupar com a mercearia… Esse cansaço tem muito a ver com a desesperança que se sente. Corremos, exauridos, e para onde? Como sabem os maratonistas, o melhor da maratona é chegar. Mas quem nos meteu neste corrida da austeridade não propõe sequer uma meta… No imediato, penso que pode haver um novo ciclo se, à esquerda, formos capazes de ver para além das diferenças — na busca de um novo “dia inaugural” para Portugal e para a Europa.
Como é que Portugal pode ser mais competitivo, crescer mais, acumular mais capital? O mais provável é que não haja resposta para isto. Mas isso é aceitar que somos um país que não se governa nem se deixa governar, como dizia Júlio César. Que emenda?
O discurso de que “não há alternativas” é que não é possível. Um país de inclusão e igualdade, onde todos sintam que “fazem parte”, é um país com muito mais hipóteses de pôr boas ideias a mexer, de conseguir crescimento, desenvolvimento e de estabelecer pontes eficazes com o mundo não europeu. A questão não se põe em termos de “acumular capital”, mas de como restabelecer laços de confiança entre as pessoas, como regenerar a democracia. Como construir uma ideia de país com pessoas dentro, em vez de números.
BES, PT: é possível compreender os últimos anos sem passar por esta ruína? O que é que ruiu ali?
Acho que isso é daquelas histórias que — mesmo depois de termos todos os movimentos contabilizados e explicados — só vamos mesmo perceber quando alguém escrever um romance a sério sobre o assunto. Uma coisa assim de fôlego, como o “Libra” de Don DeLillo.
Quais são os grandes desafios da próxima legislatura? Pagar a dívida, resolver o problema da justiça, dar alento ao quotidiano das pessoas? Outras prioridades?
São desafios grandes e graves. Primeiro, dar — nem é alento – uma visão do país que queremos ser, o Portugal para onde queremos caminhar. Depois há a questão de como resgatar a democracia na fase pós-PSD/PP: na educação, na saúde, na justiça, na cultura, e em geral na relação permanente dos representantes políticos com os seus representados. Por fim, encontrar uma voz nossa na Europa que possa, juntamente com outros países, mudar a União no sentido de uma maior democracia europeia — desde logo, lutando contra o absurdo que é ter uma união política onde é “inconstitucional” governar à esquerda.
Quer apostar em cenários?, vitórias, derrotas, coligações, protagonistas?
Como eleitor, apostarei na vitória da esquerda europeísta — contra os “merkelismos” e os “orgulhosamente sós”.
As palavras “empobrecimento” e “pobres” podem ser reconduzidas a uma disputa político-partidária. Mas a questão foi concreta na vida de muitas pessoas. Aprendeu a viver com menos?
Quem trabalha na área da cultura ou das artes, sabe que o que sempre foi difícil ficou ainda mais difícil nesta legislatura. Também sabemos que sem imaginação não há identidade, e que a imaginação é uma luta concreta e diária, e por isso não desarmamos. O país está mais pobre, sim. Não só porque há mais desemprego e mais pessoas a sofrer dificuldades económicas, mas também porque há menos tempo para o que interessa e porque vamos perdendo, colectivamente, a capacidade da esperança e a disponibilidade para olhar o outro como um de nós.
O afastamento da população em relação à política não é novidade. Exercer cargos públicos pode transformar-se numa nódoa, facilmente, no currículo de uma pessoa? Como fazer a renovação e reaproximar o cidadão da res publica?
Essa é uma questão complexa, que tem causas para lá da política. Há, no nosso tempo, nesta sociedade, uma tremenda falta de espírito de comunidade, um défice da ideia de pertença. As razões primeiras pelas quais as pessoas não vão ao teatro ou ao cinema não são muito diferentes das razões por que não vão a comícios ou até às urnas. Deixámos de saber estar em modo “cidade”, uns com os outros, de viver a vida ao vivo. Também a política se vai tornando um assunto “à la carte”, de gente cada vez mais fechada dentro do menu dos seus interesses específicos — como consumidores fechados nos auscultadores do seu portátil ou telemóvel — e cada vez menos disponível para o assunto do todo da sociedade (que é o que define a política).
Mas é verdade que, muitas vezes, as instituições não parecem ter como desígnio a res publica, essa “coisa comum”.
Pode explicitar?
Darmo-nos ao respeito não é escondermo-nos atrás de muitos degraus, burocracia, opacidade, aparelhismos. É estarmos disponíveis e procurarmos melhorar sempre. Claro que essa percepção também passa pela ideia essencial de que a democracia serve para alguma coisa: para uma mudança efectiva, para uma responsabilização efectiva.
O mundo não é o que era. Veja-se o que aconteceu na China, com a bolsa a provocar tremores de terra. Nos EUA há o aparente entretém Trump enquanto Obama faz grandes mexidas. Mais grave que tudo, a Europa a desmoronar-se? A crise de refugiados é um sintoma disso?
A crise dos refugidos é uma nova dimensão da grande crise da Europa. Depois da terrível machadada na ideia de solidariedade e de união que foi a Alemanha pôr sobre a mesa de discussão europeia a saída de um país-membro do Euro, agora a questão põe-se sob a forma de muros, fronteiras fechadas e desculpas “pragmáticas” para atitudes xenófobas. Claro que, neste caso, o problema de fundo é a guerra na Síria. Mas o défice democrático na União Europeia é que está por trás da resposta fraca e a más horas perante crises de diferentes tipos.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Setembro de 2015