Joana Vicente
Joana Vicente é uma mulher determinada. “Se tenho uma coisa na cabeça, hei-de fazer tudo para que ela se concretize – seja convencer um realizador de que nós é que somos os produtores ideais para fazer o filme dele, seja tentar arranjar o financiamento”. Joana Vicente continua a ser uma menina insegura: “Às vezes ainda tenho falta de confiança em mim. Mas a determinação de fazer aquilo em que acredito é mais forte do que isso. Sou uma pessoa tímida, e é difícil ser assim na minha profissão”. Vive nesta luta constante. É produtora de cinema. Foi nomeada para os Óscares com o documentário Enron: The Smartest Guys in the Room. Dá-se com os realizadores mais reputados do cinema americano. Tem como sócio o poderosíssimo director da Vanity Fair. Tem 44 anos, dois filhos, um casamento que definiu a vida que hoje tem. Portugal parece-lhe uma realidade longínqua.
Carmen Miranda cantava Dizem que Voltei Americanizada! Tem essa impressão quando regressa a Portugal? Que está americanizada.
Já me considero americana. Falo inglês com os meus filhos, falo inglês para trabalhar. Pensar noutra língua [implica] pensar de uma maneira diferente. Já nem sei muito bem o que é que se passa aqui. Se consumo literatura francesa ou chinesa, leio as traduções inglesas. Nova Iorque é uma cidade cosmopolita, é um melting pot de pessoas, de culturas, de todos os sítios. A diversidade é enorme: religiosa, social, cultural, de opções sexuais...
Sentiu-se desde sempre à vontade nesse melting pot? Nasceu em Macau, viveu em Moçambique, na Madeira.
Hoje em dia sinto que as minhas raízes são na América. Não é bem na América, é em Nova Iorque. [O meu marido e eu] vivemos um ano em Paris, antes de ir para Nova Iorque, e sentia-me estrangeira. Trabalhava no Parlamento Europeu, ia semana sim semana não a Estrasburgo e Bruxelas. Nunca senti que fizesse parte do social fabric [tecido social] de Paris...
A sua experiência é errática: foi assistente do Paulo Branco, foi assessora da Maria de Lurdes Pintasilgo em Paris. Licenciou-se em Filosofia.
Os meus pais divorciaram-se na altura da revolução. Fui um bocadinho abandonada... Se eu disser isso, eles dizem: “Nem pensar!”... Mas é completamente verdade. Andavam distraídos, no pós-revolução e nos caminhos e escolhas que estavam a fazer para as suas vidas. Então, ia aos comícios todos, passava o dia nas sedes dos partidos; sentava-me até aprender o programa. Era empenhada politicamente para tentar encontrar um sentido. Foi aí, também, que comecei a ver imensos filmes, os ciclos no Palácio Foz, os musicais americanos, os westerns, os filmes do Jerry Lewis, os Irmãos Marx...
Como é que se encontrou com o cinema?
Não sabia o que queria fazer. Conheci o Jason [marido] através da Maria de Medeiros; ele estava em Portugal a trabalhar num filme do Samuel Fuller. Quando nos mudámos para NY fiz um curso de cinema – um daqueles cursos de três meses – e fiz um estágio nas Nações Unidas. Durante um ano e meio, dois, fui a pessoa responsável pela rádio para os países de língua portuguesa. Ao mesmo tempo, começámos a fazer documentário, curtas-metragens, videoclips, public service announcements [anúncios institucionais]; ao fim de semana. A certa altura decidimos que íamos deixar o trabalho...
O que é que impôs a opção definitiva pelo cinema? O dinheiro nunca foi um problema?
Tínhamos a sorte de a família do Jason ter dinheiro, portanto nunca estivemos na penúria. E éramos mais novos, não tínhamos filhos, era possível tomar riscos. Foi um processo muito orgânico, não deu para pensar: “Ah, finalmente, é isto que quero fazer!”. Às vezes, as pessoas sabem aos 12 anos exactamente o que querem fazer. Nunca tive essa clarividência. Mas também nos apaixonamos pelas coisas que nos dizem respeito... Era mais natural apaixonar-me pelo Jason do que por um banqueiro alemão!
O vosso percurso está cheio de prémios…
Fizemos uma primeira longa-metragem que correu lindamente, Welcome to the Dollhouse; ganhou o [festival de cinema independente de] Sundance. A seguir fizemos outras de que nunca ninguém ouviu falar; foram a Veneza, a Berlim, foram filmes respeitados, mas com muito pouca viabilidade comercial. Até que fizemos o Tree Seasons no Vietname, que ganhou Sundance, ganhou o prémio da audiência e correu bem comercialmente. Olhando para os filmes que temos feito, há uma questão de gosto pela qual começámos a ser respeitados. É importante ter uma grande exigência sobre o que se está a fazer; os únicos erros que cometemos aconteceram quando não fomos exigentes.
Um americano judeu e uma portuguesa que viveu em diferentes pontos do planeta têm sensibilidades estéticas diferentes; como é que isso depois conflui num mesmo rio, e num gosto que se identifica?
Acho que o gosto se educa. Sou filha de arquitectos, sempre vivi com pessoas para quem o gosto e a estética são importantes. O Jason vem de um meio completamente diferente, sendo que o pai era russo, judeu, e a mãe australiana. Sempre tivemos uma afinidade enorme, o mesmo approach [abordagem]. Ao mesmo tempo, acabamos por nos surpreender com uma ideia que o outro tem – temos mantido sempre a relação viva nesse sentido.
A vossa filmografia que aparece no site IMDB (uma espécie de bíblia do cinema) é extensa e respeitável. Como é que aprendem a investir nesta pessoa e não naquela? A detectar o talento, numa palavra.
Quando me perguntam: “Quando lês um script, como é que sabes se vai ser bom? O que é que procuras?” No fundo, é como um bom livro: lê-se, chega-se ao fim e aquilo teve um efeito: a pessoa vê as coisas de maneira diferente, aquilo fez-nos pensar sobre qualquer coisa, transportou-nos para outro sítio, há qualquer coisa que nos toca. Apaixonámo-nos pelos projectos que fizemos, depois pelo realizador e pela visão que ele tem desse projecto. Tem que haver respeito e confiança: têm de olhar-nos como partners...
Neste caso, significa ser co-autor?
Sim co-realizadores, co-autores. O realizador, para nós, tem sempre a última palavra, o final cut. Quando trabalhamos com realizadores que fazem primeiras obras, é como com os filhos: é preciso guiar sem guiar. Dar os instrumentos para que realizem da melhor maneira. E estar ali, como barómetros, a quem eles podem pedir a opinião. Dizemos sempre a verdade. “A actriz não está a perceber o que a cena é. Pensa no assunto, vai falar com ela, tenta filmar de outra maneira...”. Isto é, para mim, a parte mais engraçada de produzir. As situações de crise foram importantes para pensar: “O que é que queremos fazer? Onde é que estamos?”. E é importante trabalhar com realizadores que admiramos.
Trabalham com realizadores como Jim Jarmusch, Steven Soderbergh, Hal Hartley.
OJim não precisa desse tipo de colaboração, como um realizador mais jovem e mais verde precisa; ao mesmo tempo ouve toda a gente e nunca tem a necessidade de dizer que sabe tudo. “Jim, como é que se vai fazer?” “I don’t know!” [Eu não sei!] [risos]
Steven Soderbergh é, simultaneamente, um cineasta independente e um realizador dos grandes estúdios. Enquanto produtores, a vossa intenção é essa? Estar entre o mainstream e o Festival de Sundance?
Sim. Em 1999 fizemos Down to You com a Miramax, e ficámos bastante desiludidos; não tivemos controlo nenhum sobre os meios de produção, nem qualquer poder criativo. Tínhamos visto um filme do Dogma [movimento de cinema independente dinamarquês], o Celebration, feito em digital, e ficámos inspirados com a ideia de ser possível fazer coisas com muito pouco dinheiro. Muitos dos filmes independentes que acabaram por ter sucesso não tinham realizadores ou actores conhecidos.
É um diferente paradigma, por oposição ao esquema dos grandes estúdios, que se alimenta do star system.
Estes filmes tiveram sucesso porque são diferentes, originais, interessantes. Fizemos parte dessa revolução na América. Fomos parte da primeira produtora, a Blow Up Pictures, a fazer filmes em digital. Continuámos a produtora com um bilionário americano que tem uma equipa de basquetebol, já a fazer os filmes em alta definição, a gastar mais dinheiro. O ano passado produzimos o Brian de Palma.
Profissionalmente, como são os seus dias?
Se não estamos em produção, é ler guiões, guiões, guiões, até encontrar alguma coisa de que goste. Se estamos a pôr um filme para a frente é arranjar financiamento. Se estamos a trabalhar num script, são aquelas reuniões em que se dá imensas notas sobre o guião. Em termos sociais é como em todo o lado: os jantares com os amigos, uma antestreia de um filme, os festivais...
Vive o lado mais glamouroso do cinema? Com os vestidos compridos e o convívio com as grandes estrelas.
Sim, sobretudo em Los Angeles, mais do que em Nova Iorque. Há duas coisas por ano em que é mesmo preciso vestir um vestido fabuloso: a abertura do New York Film Festival e os Gotham Awards. Em Nova Iorque a comunidade de cinema é bem mais descontraída, temos uma óptima relação, trabalhamos uns com os outros. Há uma generosidade em geral, porque é tão difícil sobreviver...
E há a grande festa do ano, a seguir à cerimónia dos Óscares, a da Vanity Fair. É fundamental estar presente, para fazer rede?
Encontra-se lá toda a gente. Ser convidado já é qualquer coisa... Somos amigos do Graydon Carter, o director da Vanity Fair. No documentário que fizemos sobre Hunter Thompson ele é produtor connosco. Trouxemos o Alex Gibney para realizar, o Graydon possibilitou o acesso a todo a estate do Hunter. O Johnny Depp, que era amigo do Hunter, disse que fazia a narração; mas depois nunca mais fazia. Nessa altura é preciso o Graydon telefonar e dizer: “Vê lá se fazes isso...”. Isto para dizer que para a festa da Vanity Fair somos sempre convidados!
Como é a sua vida em NY? Vive em Tribeca. Passa o Verão nos Hamptons. Parece um quadro de um filme do Woddy Allen: move-se no mundo das pessoas que lêem livros, que vão ao cinema, que frequentam galerias de arte, que vão passar fins de semana no campo
Temos um loft, bonito e grande, temos o escritório a dois quarteirões. Todos os dias ponho os meus filhos na escola; ao fim de semana há sempre um jogo: football no Outono, baseball na Primavera. Nós não somos dos piores, há pais que são completamente escravos dos filhos!
Está familiarmente e profissionalmente enraizada na América. O que é que lhe permitiu sentir-se integrada desta maneira?
Na América nós somos quem somos. É tudo por mérito. Claro que é importante conhecer pessoas, ter boas connections [conhecimentos ou relações], mas o mais importante é quem somos, o trabalho que fazemos e o sermos respeitados por isso.
Publicado originalmente na revista Máxima em 2008