João Lobo Antunes
Houve um tempo em que os irmãos João e António dormiam em camas contíguas, partilhavam um quarto. Vinte e três anos ou coisa que o valha. Depois foram às suas vidas. Subitamente, ou bruscamente, no Verão passado, voltaram a encontrar-se no mesmo espaço, em que ainda cabiam. A vida era ainda a mesma, quando há muito deixara de ser a mesma.
João usa de alguma displicência no relato do que aconteceu. Como se fosse possível ignorar a poesia do regresso. Usa a displicência para rasurar a emotividade, que assume sempre forma contida.
A ideia de regresso perpassa esta entrevista. Regresso a um reduto final, íntimo. Quando ainda preparava esta entrevista, anotava palavras que me pareciam fundamentais: Memória, Ascetismo, Bondade, Estética. Mas não Regresso. Ainda que o regresso esteja implícito no trajecto da memória. Regresso a uma forma de felicidade? Será a felicidade que habita o reduto final? Porque o sofrimento, e uma parda melancolia, parecem, também, indissociáveis deste homem, a despeito da voragem com que se entrega à vida.
João Lobo Antunes é neurocirurgião, tem 57 anos. É excepcional no que faz, como é sabido. Em 96 recebeu o Prémio Pessoa, que o considerou intérprete da tradição médica humanista. (A propósito disso, diz ter sentido um frémito equivalente ao seu primeiro 20 na faculdade). É isso que é, um humanista. Esta entrevista fala do amor que tem pela vida.
Píndaro, na «Segunda Ode Olímpica», escreve: «Oxalá, por um acaso feliz, aconteça o esquecimento». O verso introduz os temas da Memória e do Tempo, que sei serem do seu interesse. O seu trabalho faz-se sobre a memória, e a carga identitária que lhe está adjacente. Numa primeira instância, a minha interpretação do verso faz-se no sentido de um regresso a uma forma de inocência, a uma inconsciência do saber.
No balanço entre as coisas que recordo e as que procuro esquecer ficam sobretudo aquelas em que me afastei de mim próprio, da minha razão de ser. Em que não fui fiel a mim próprio. Essas são irreprimíveis. Tive ocasião de ser eu próprio operário dessa transformação e de perceber como a doença trata a memória das pessoas. As pessoas sem memória são navegadores sem bússola. É das maldições piores que existem. Tenho-me entretido a ler a «Odisseia», novamente. O Calvino tem um comentário à «Odisseia» como epopeia da memória e do regresso. Por isso, nos últimos meses, meses difíceis da minha vida, tem sido um enorme suporte. Já tinha dito e escrito que a medicina celebrava o triunfo do regresso. A medicina triunfal é o regresso à saúde, à felicidade, ao bem estar. Considero que a memória é um instrumento fundamental, é um músculo, que a pedagogia moderna tende a descartar como algo acessório. No acto cirúrgico o que fazemos é comparar padrões, «Eu já vi isto, eu ainda não vi isto; se já vi isto, que soluções adoptei para resolver este problema». Isto não está nos livros, não está na internet. Isto está na arca que transportamos junto a nós. Na «Odisseia», Calvino observa duas coisas interessantes. Por um lado, Homero era aparentemente tão analfabeto como Ulisses e Aquiles _ eram poemas orais; em si mesmo, é um estupenda celebração da memória. Por outro lado, o que Ulisses não podia esquecer, não era nem Troia nem o Cavalo: era a casa onde tinha de voltar.
Em Orson Welles é o «Rosebud», o último reduto.
Fala do «Rosebud»?
Sim. Desse reduto que talvez seja o da infância. Ou, prefiro, um reduto primeiro.
Não há muita gente que tenha o privilégio de ter ainda a casa onde cresceu. A casa onde crescemos, os irmãos todos, ainda existe, e os meus pais ainda lá estão. Essa referência ainda está viva, é uma chama que ainda vai ardendo. A minha relação com a memória? Dizem-me que tenho uma memória excepcional. Eu acho que não. Tenho, o que é diferente, é uma capacidade de localizar informação no meu passado. Ir à procura e encontrar.
Porque foi bem armazenada?
Está muito bem arrumada. Nunca exercitei a memória como tal, mas sei onde as coisas se encontram. O Tempo. É um tema que gostaria de tratar. Estou à espera que a minha vida se aquiete um bocadinho.
O que constitui para mim mistério é o mecanismo e o critério da memória: a razão porque autonomamente, e indiferente à nossa vontade, ela resgata determinadas emoções e oblitera outras. E, claro, há a dificuldade em perceber que momento vai perdurar e com que intensidade.
Tenho quatro ou cinco memórias, episódios em que não me portei bem. Uma vez, uma delação. Não foi grave, mas marcou-me tanto... Depois, uma de cobardia, que também tenho. Foi bom que acontecesse quando era muito pequeno, tinha 8, 9, 10, 11, e que tivesse marcado tanto. Imunizou-me. Uma espécie de sarampo moral que deixou anti-corpos.
Teve noção da importância do que estava a acontecer, e que seriam perduráveis?
Não tenho consciência de fazer muitas maldades. Mas quando a maldade está a ocorrer, faz-me lembrar a cena final da «Sonata a Kreutzer» do Tolstoi, quando o marido ciumento está apunhalando a mulher e não consegue parar. Ele diz que a loucura tem as suas regras, que não podia dominar-se. Se havia ou não um marcador somático, se suava, ou o coração batia mais depressa, ou, pelo contrário, se era uma coisa sentida, mas sem expressão visceral, isso não recordo. O que sei é que havia um travo, um travo de desagradável.
Um desconforto.
Sim. Um travo que me acompanhou o resto da vida. Lembro-me tão bem, de duas ou três coisas... Não vou contar quais, essa memória ainda me magoa.
Falou das situações de delação e cobardia. Houve uma auto-punição, ou ela veio do exterior? Tenho isto dito de uma forma bonita do ponto de vista formal. [Pega na separata «Uma razão de ser»]. Para explicar como é que senti que fui educado. Há uma diferença entre a maneira como os meus pais achavam que me estavam a educar e a maneira como eu sentia que estava a ser educado.
Há sempre.
«A evocação do erro, e sobretudo das grandes, e mesmo das pequenas traições, continua a criar um desconforto nas vísceras, um rubor na face, um batimento descompensado no peito que logo desperta do seu sono leve o Eu Tranquilo. Os neurocientistas chamam a estes fenómenos “marcadores somáticos”. Eu chamo-lhes a admoestação do grilo, na recordação perene da fábula de Pinochio que me marcou na infância. Pinochio, tal como Jesus, era filho de carpinteiro. Um espírito, santo?, o soprou de vida, mas deu-lhe também consciência ligada ao inocultável e imperioso marcador somático: a mentira fazia-lhe crescer o nariz. Na realidade somos todos membros de uma tribo de narigudos virtuais condenados à violência perpétua da memória. (...) No meu caso, a pedagogia estética do comportamento, «Não faça isso que é feio», foi muito cedo, demasiado cedo talvez , substituído pelo imperativo da racionalidade, «Não faça isso que é estúpido». Por isso, a razão de ser assumiu-se precocemente como pura expressão de racionalidade. Simultaneamente tornou-se cada vez mais aparente para mim que o cumprimento da verdade no juízo que fazia de mim próprio e dos outros nascia também de uma imperiosa necessidade biológica».
A base seria sobretudo biológica, em detrimento da psicológica?
Já não se podem dissociar. Vai-se no caminho da biologia como a grande ciência unificadora. Embora custe a acreditar que todo o fenómeno global seja explicável desta maneira. Se for assim, perde-se muito o encanto.
A neurologia trata dos pontos de conexão, que dão sentido e fazem viver as várias partes. O que me pergunto é se na cartografia dos pontos de conexão da pessoa, nos aproximamos mais e mais do seu reduto final.
Uma das abordagens curiosas das neurociências têm sido os modelos de inteligência artificial. Como último objectivo, ter um programa de inteligência artificial que traduza também emoções, reacção a acontecimentos. Penso muitas vezes se o último conhecimento de nós próprios, essa exalação _ no fundo, é a alma, num sentido muito abstracto, mas ao mesmo tempo quase palpável _ se no dia em que se conhecer tudo, se é que alguma vez se, se se ganha tudo, ou se se perde muito.
É uma boa pergunta para si, que sempre quis saber tudo.
O «Tentar conhecer tudo o que está escondido naquela casa de ossos», como diz o Nemésio, provavelmente iria acabar com aquilo que nos torna tão únicos. Que é o nosso mistério. Em nós, nos outros. Estou convencido de que não estaria interessado em saber tudo. Até ao fim, o que gostaria era de maravilhar-me, maravilhar-me, e de tentar perceber, tentar perceber. A procura é que é o mais interessante. O encontrar provavelmente já não é tanto. Nas neurociências tenta-se, através de técnicas de imagem, perceber que áreas do sistema nervoso se iluminam com as diferentes funções cognitivas, motoras, etc. É interessante, é importante, é operacional _ permite-nos fazer uma cirurgia muito mais inteligente, com uma topografia completamente diferente: reconhecemos onde as funções estão sediadas. Mas no apanhar o conjunto, estamos longe, longe disso.
Se lhe pedisse para desenhar a alma, que imagem resultaria?
A quem pediria para pintar a alma?
É uma outra questão. Mas podemos começar por aí.
O Blake seria uma das pessoas que podiam pintar a alma. Havia uns que não podiam pintar a alma, embora pudessem pintar a expressão da alma. Sabe que o quadro mais reproduzido não é a «Mona Lisa»? É «O Grito», do Munch. É o grito da alma, ah. Outro dos quadros que mais me impressionaram, porque foi um murro, a «Guernica». Está cheio de alma, de gritos de alma.
E de vísceras.
A figuração da alma. Tinha de ter branco. Isso vem-me da catequese. O branco é a cor mais interessante. Como é que se pinta o branco?
A minha primeira questão era outra. Quando pensa na alma, e se nem tudo é biológico, como é que a configura?
A minha alma? Deixe-me pensar. Eu, eu tenho uma relação pacífica com a minha alma, damo-nos bem. Para lá da alma, há outra entidade, que não sei onde está ancorada, outra maneira de sentir e de pensar. Muitas vezes assisto ao diálogo destas duas entidades que co-existem dentro de mim. Diria que a alma tem camadas mais profundas, os braços mais largos.
Acolhe tudo?
Não tem rosto. Ou se tem, é um rosto feminino ou andrógino. É acolhedora, mas tem desgostos, tristezas. É onde eu habito, talvez. Uma coisa que me tem ocupado é como é que mantemos a continuidade do que somos. Olho para o espelho e estou obviamente mais velho. (Agora estou muito mais, porque perdi peso. A magreza contrai o tempo. De repente o tempo aparece com a sua verdadeira face). Apesar de tudo, continuo a pensar que sou menino, porque há uma continuidade. Há um fio que não se partiu, e isso está na alma. O outro Eu, que é mais activo, que sai para fora, esteve mais marcado pelos seus tempos: a adolescência, a maturidade, a maturidade técnica, um certo estatuto. Que a alma não reconhece, mas que o outro reconhece, «Tornou-se um senhor importante, conhecido». Para a alma é o mesmo, vai sussurrando. Você sonha muito?
Sonho.
Eu também. O sonho que mais me apoquentou toda a vida é o sonho em que matei alguém, enterrei o cadáver, ou no jardim da casa dos meus pais ou na rua fora da casa, e que vão descobrir. É um sonho com uma realidade tal que quando o experimento acordo com uma angústia...
Percebeu em que momentos tem esse sonho?
Não. É um sonho que me revisita. É tal realidade como a do filósofo chinês: «Esta noite sonhei que era uma borboleta. Como posso saber se uma borboleta sonha que é homem ou se é um homem que sonha que é uma borboleta?». Podia-se dizer que são coisas ligadas a insucessos cirúrgicos. Não, é um sonho antiquíssimo, vem antes do meu tempo de cirurgião.
O cadáver pode ser o seu? Imagine que enterra um homem que não é assim tão bem comportado. Porque faz lembrar um príncipe florentino, um modelo de virtudes.
Está a falar de mim? Olhe que bom! Mas pérfido, não? Daqueles que dormia com as irmãs? Estou à vontade, não tenho irmãs. Fez-nos falta, a nós rapazes. Alguém me disse que os homens que tiveram irmãs tratam melhor as mulheres. Se calhar é verdade.
Então, mulheres.
Oh, as mulheres são muito mais interessantes que os homens.
Até disse que queria escrever sobre elas. Porque são um mistério?
Se calhar porque eu próprio sou capaz de ter um temperamento feminino nalgumas coisas, não me custa a admitir. Tenho uma sensibilidade feminina. Já ouvi dizer que o meu irmão António escreve sobre as mulheres com uma enorme compreensão. Há uma superioridade biológica da mulher, na aparente fragilidade. É um tempero de emoção e inteligência, ou cozinhado do que somos, que a mim me agrada mais.
Quando é que se apaixonou pela primeira vez? Quando é que sentiu afectação provocada pela presença de uma mulher?
Oh, tinha seis ou sete anos. Comecei muito cedo. Não tive pulsões doutra natureza, tive só essas, as hetero. Depois vi nas «Aventuras do Tom Sawyer» ele próprio fazer macaquices para encantar uma, Amy, se bem me lembro: dependurado no braço da árvore, fazendo o pino, etc. Aquelas demonstrações do macho, do pavão, muito jovem e muito inocente, que abre a cauda. Percebi que aquilo era muito biológico: a necessidade de mostrar encantos de qualquer natureza, ou capacidades. Isto tudo são estratégias de sobrevivência, se pensar nisso.
Começou aos seis anos.
Sim, e vamos ficar por aqui.
Teve uma experiência televisiva na adolescência. Um rapaz louro, de olhos azuis claros deve ter provocado estragos.
Não imagina a vergonha infinita que tinha do que fazia. Odiava o que fazia!
Não me vai dizer que fazia contrariado por causa dos 300 escudos que ganhava.
Fazia basicamente por isso. Não gostei, não gostei e fui embora.
Mesmo assim, ainda lá esteve cinco ou seis anos.
Nunca respondi a uma carta de uma admiradora, e recebi algumas. Deveria tê-lo feito. Não tinha retratos para dar.
Mantinha uma distância aristocrática.
Não. «Je n’etais pas bien en ma peau», nesse papel.
Estava integrado no Orfeão do Liceu Camões quando o escolheram para apresentar um programa juvenil.
A minha parceira inicial era um actriz conhecida, a Irene Cruz.
Vi-a no outro dia numa telenovela. Num determinado momento as vidas das pessoas coincidem e depois divergem em direcções opostas. Faz-me sempre pensar na escolha e na arbitrariedade: há uma infinidade de vidas disponíveis e, depois, há aquelas que tomamos para nós ou que nos tomam a nós.
Pois é. Não tinha talento nenhum para aquilo. Sou um bom expositor, o Luís Salgado de Matos dizia que eu era telegénico! Sei, de facto, a técnica da televisão, sei como estou, e, de uma maneira geral, saio-me bem. Mas o dinheiro fazia-me muito jeito. 150 escudos. 300, tinha de ser uma coisa muito sofisticada! Foi há 40 anos. Você não era nascida.
O princípe florentino aparece na televisão e tem hordas de fãs, que ignora.
Tinha uma namorada. Uma das características da adolescência é a fidelidade. Não sou eu que digo, são os psicólogos.
Gostaria de introduzir os temas do amor e do erotismo.
Nunca esqueço o preceito do Henry Miller, «Damned head, damned fucking». Há muito de cerebral, apesar de tudo. Há um componente instintivo insofismável, uma atracção irresistível, e ao mesmo tempo indefinível. Pode não ser a mulher mais bonita, a mais poderosa... Mas há qualquer coisa que é puramente biológico. É químico, tem que ser, tem que ser. Agora, a maneira como a atracção é elaborada, é muito cerebral, passa por um certo sentido estético. O cenário vai sendo construído à medida que se vai caminhando. No outro dia via outra vez o «Annie Hall» do Woody Allen; ele quer criar um cenário, vai buscar uma lâmpada encarnada... Construir o cenário, não; mas integrar a paixão num cenário, sobretudo se for natural... Pode ser um dia de chuva, pode ser o tradicional pôr do sol, ou o mar, ou Veneza, ou Amesterdão. Para esses estados de graça, têm de ser cidades onde se possa andar invisível. Que não dêem por nós. Nesse estado, está-se só, e não há outros. Amesterdão tem esquinas, recantos, e tem muita gente igual a nós: gente que não se preocupa com o outro. Uma liberdade. Esse enledo só se pode exercer numa liberdade absoluta, e numa liberdade que tem no seu fundamento a liberdade do outro.
E há um outro tipo de amor, a que assiste diariamente quando lida com situações limite.
Ah, isso é uma coisa...
É um amor mais impregnado de bondade; o outro de que falávamos era mais pulsional e sensual.
Tenho reparado na diferença que há entre um amor de um pai ou de uma mãe para um filho ou uma filha, e no amor de um filho ou de uma filha para um pai ou uma mãe. Ou seja, isto é não é uma reacção química de sentido igual. Em relação ao amor de pai ou mãe para filho ou filha é de uma enorme inquietação e vigilância constante na sua expressão normal. O de filho ou filha para pai ou mãe é, até na experiência de mim próprio, um amor de um laço biológico que muitas vezes quer estirar, para ver até onde dá. Quer renegar e partir. Percebi, não há muitos anos, que mesmo em situações de discordância não poderia vencer esse lado biológico. O laço nunca daria de si. «Mas, é meu pai. Mas, é minha mãe». É um amor de «mas».
Significa que acolhe tudo, como a tal alma que nos abarca a partir do fundo, e sempre mais fundo, e que por isso não tem fundo. O seu sonho. De certeza que os seus pais o amariam mesmo que matasse alguém.
Não sei, não se pode desafiar isso.
Poderiam não ocultar o cadáver, o que é outra coisa.
Em amor, raramente é dada a oportunidade ao teste último. O teste último é a vida. Dar a vida por. Se tivesse de dar a vida para salvar uma das minhas quatro filhas, era isso que ajudava? No sentido de privar as outras três da possibilidade de as ajudar de outras maneiras. Há dois ou três dias veio-me à cabeça como resolver este dilema moral.
Posto do lado das filhas, seria: «Por qual de nós ele daria a vida?».
Claro. Ainda que estejam todas bem, há uma certa rivalidade. Não é rivalidade... Os filhos têm dificuldade em perceber the uniqueness, ou seja, a singularidade da relação com cada um deles.
Quando percebeu a sua com os seus pais?
O quê?
Singularidade.
Não percebi. Nem estou particularmente interessado nisso. É um problema deles. Nunca disputei os meus pais aos meus cinco irmãos.
Mas é possível?
Acho que é. A prova é que, eu teria uma carreira relativamente fácil aqui em Portugal, e fui-me embora para Nova Iorque, onde ninguém sabia de quem era filho. Quando para lá fui, era como os milhões que lá desembarcam.
Eu fiquei surpreendida quando li que os seus pais praticamente não comentaram a sua sucessão de vintes na faculdade. Fizeram um primeiro comentário quando teve 20 a Fisiologia, um facto inédito.
Nem é para comentar. Ainda no outro dia tive a caderneta na mão. O preço que paguei por aquilo, em termos daquilo que não vivi, foi exorbitante. Não sei se, voltando atrás, não me acontecia o mesmo. Não é «Se não fazia o mesmo», é «Se não me acontecia o mesmo». Pela maneira como sou estruturado.
Não seria possível fugir a isso, que é a sua maldição.
Que é a minha maldição. Perdi, perdi muito, e nunca recuperei. Não sabia fazer mais nada. Gostaria de tocar piano. Dava uma dúzia dos meus vintes para ter dez em piano.
Pessoa precindiu de viver para escrever. De uma certa maneira, estudando tão afincadamente, prescindiu também de toda uma vida mais visceral, descontrolada, susceptível de provocar dor e também prazer.
Eu tinha uma vida de..., uma espécie de Frade Cartuxo. Fiquei muito impressionado quando visitei um convento de Cartuxos em Saragoza. Estão numa cela, e não falam, e escrevem. E o que escrevem é inútil, ninguém vê, não tem destinatário. Eu começava às nove com o sino da igreja, acabava à uma com o sino da igreja, recomeçava às três com as três badaladas, acabava às oito com as oito badaladas, recomeçava às nove a acabava às onze. Dia após dia após dia. Sábado e domingo descansava. Era muito obsessivo.
Como eram o sábado e o domingo?
Sábado ia para a televisão. Domingo era para a namorada da altura, que acabou por se cansar, como é evidente _ eu não lhe dava assim tanto.
As mulheres gostam de tempo.
Tempo. Mas sabe que se pode dar um bom, longo e interminável segundo.
Vem agora com a treta do tempo qualitativo?
Claro. Quando estava no liceu, o professor de moral, o padre Gamboa explicou que, em termos de pecado, até três minutos o beijo era admissível. Um beijo de três minutos era um longo, longo, longo beijo. Dar o tempo... Eu dou.
Em oposição a este hábito de Frade Cartuxo há todo um espaço de alienação.
Que palavra tão feia.
Alienação? Porquê?
Mas diga lá.
Recusou sempre a alienação.
Foi outra coisa: nunca me embebedei. A voz entaramelava-se e as pernas ficavam moles antes de atingir qualquer estado de euforia. De maneira que nunca ultrapassei.
Não percebo porque é que nunca se alienou por oposição a essa vida espartilhada, assente num racionalismo puro.
Era um racionalismo afectuoso. Era a minha constituição, a fatalidade da maneira como me construí. Talvez fosse a maneira que me trazia menos intranquilidade, ou menos censura. Tive sempre uma enorme lucidez em relação a mim próprio. Lucidez não quer dizer ingenuidade. Há quem diga que em muitas coisas sou ingénuo, até no juízo dos outros. É possível. Mas é uma ingenuidade benfazeja. Fui-me construindo assim e já estou em pleno Outono.
Nunca viveu uma paixão de caixão à cova? Uma à «A Voz Humana» do Cocteau, por exemplo, que é um monumento à irracionalidade da paixão.
Se alguma vez me submeti a essa irracionalidade?
Submeter é um segundo momento. Pode descobrir-se súbdito dessa irracionalidade; submeter-se ou não, é outra coisa.
Ah... Está a entrar numa esfera muito íntima. [pausa] Isso talvez não. Mas assumir a última consequência da paixão, sim. É a mesma coisa?
Penso que não. Assumir a última consequência pode ter que ver com a noção de respeito pelo outro, de honorabilidade, de responsabilidade.
O que quero dizer é assumir a fatalidade da paixão. Não é a responsabilidade, é o inexorável. É o já não poder voltar atrás. Tendo deixado Sodoma e Gomorra, não olhar para trás.
E não poder ser de outra maneira, a coisa é essa.
Uma coisa de grego, nesse sentido, sim. Mas doi muito, hum. Não é uma experiência exuberante. Vergarmo-nos ao peso da, irrecusável, por nós próprios e para nós próprios. Doi porque estes ataques da alma não são cirúrgicos: não há bombardeamento cirúrgico, há muitos feridos. Nós próprios e outros. O [amigo] Fernando Gil, comentando comigo esta matéria, dizia-me que o amor era algo ontológico, que não se podia pedir desculpa. E é claro que é uma óptima desculpa: passamos do biológico para o ontológico e está tudo perdoado!, «Volta a ti próprio». Você está a levar-me para caminhos pessoais... Vamos lá para o formal.
Não julgo que o leve para caminhos pessoais. Perguntava pela sua vulnerabilidade. Não acredito em príncipes florentinos. Estes também sofrem e choram e amam visceralmente.
Com certeza. É evidente que há uma natureza profunda que algumas pessoas conhecem. Não é assim nada que eu proclame. Algumas pessoas acham que inspiro medo. E em consciência digo, e repito, e quem quiser que ouça e quem não perceber ou concordar, paciência, que sou das pessoas mais benevolentes que conheci em toda a minha vida.
O medo pode ser instigado pela tal ideia de perfeição: parece que não se está à altura. E o poder que tem, enquanto médico, sobre a vida, sobre a morte, sobre as pessoas, endeusa-o aos olhos dos seus doentes.
Alguns. Mas sabe, o milagre que nós fazemos _ nós, um enorme colectivo _ é uma coisa que claramente nos transcende. O único milagre de que falo é o da educação: como é que a educação me transformou naquilo que sou. A aprendizagem de um ofício, o conhecimento da biologia, da doença, etc, é um milagre da educação. Tive bons mestres, fui um bom aluno. Isso sim, reclamo para mim: aprendi sempre bem, e essa foi a minha arma principal. A aprendizagem foi o meu grande triunfo. Você situou esta conversa num tempo intemporal e num espaço desconhecido. Não falou do país, e Deus queira que não fale porque já muitos falaram sobre isso. A única maneira de operar uma transformação profunda na sociedade é através da educação. Isso é que é milagre, isso é que é aperfeiçoamento genético de uma raça. O resto é conversa.
Voltando ao seu último reduto, aquilo que as pessoas amarão em si, os seus pais, as suas filhas, será sempre menos a sua mestria técnica, será sempre mais a sua capacidade de amar.
Espero que sim. Aliás, uma das minhas filhas disse ao namorado na minha frente _ o que, do ponto de vista da estratégia dela, achei condenável _ «O meu pai faz tudo bem feito!». Mas elas sabem que sou uma mistura de pára-quedas, de rede, de porto, de farol. Tudo coisas que garantem um regresso tranquilo, já reparou?
A alma, lá no fundo.
É o que podemos dar aos nossos filhos.
E às quintas, quando janta com os seus pais, de que é que falam?
Oh, agora... Primeiro, somos muitos a falar ao mesmo tempo. Depois, mais de metade são surdos. A minha mãe, infelizmente, é surdíssima desde muito cedo. O meu irmão António está surdo. Eu estou surdo. Outro está surdo. Depois, há certas divergências políticas, estéticas. O pai tem muito a tendência de estabelecer cânones de qualidade, «Esta gravação é a melhor gravação desta peça. Isto é bom, isto é mau». Eu sou muito mais inseguro quanto à possibilidade de catalogar de uma forma definitiva isto ou aquilo. De maneira, que muitas das discussões prendem-se com juízos, com julgamentos estéticos.
E de uns para outros?
De uns para outros. Há uns tempos o «Público» fez uma coisa sobre irmãos e vários comentadores disseram que não era possível aquela relação, que aquilo são construções. Mas que aquilo é a realidade da nossa relação, é. É uma realidade singular, seis pessoas, seis irmãos, todos eles com mérito, numa ou noutra área, que conseguem conservar os laços de uma enorme força. Laços, aliás, que se prolongaram à geração à seguir; os primos têm uma relação única, no Verão juntam-se todos na mesma casa. Este ano aconteceu-me uma experiência extraordinária: voltei a dormir num quarto com o meu irmão António.
Como é que foi?
Foi. Era preciso dormir e era o quarto que havia.
Emocionalmente.
Ele que fale por ele. Mas eu sei que ele se levantou, eu estava ainda meio a dormir, passou por mim e fez-me uma festa no cabelo. Irmão mais velho. E eu tive de lhe tirar os óculos porque ele tinha adormecido com o livro e tinha a luz acesa. Fechei a luz, e depois dormimos, claro. Havia qualquer coisa de simbólico. De regresso _ aí está outra vez esta ideia. As camas eram as mesmas, de solteiros, e cabíamos ainda.
Orgulha-se da relação que têm?
Não tenho que me orgulhar disso, é um fenómeno natural. É mais uma benção _ blessing. Qualquer coisa que um homem de fé deveria dar graças por ter. Eu não tenho fé dessa maneira, mas se calhar há um sentido religioso, oculto: é uma benção ter os irmãos que tenho. Poder dizer ou não dizer, ir ou não ir, estar ou não estar. Mas quando se está... Este ano estivémos todos num jantar, com a geração a seguir, que foi das coisas mais divertidas e mais animadas de que me recordo. Com muito riso. Percebo que, quem de fora assista, sinta despeito.
É uma felicidade quase ultrajante para os que assistem?
Se quiser. É uma espécie de família siciliana sem crimes objectiváveis.
E sem massa a escorrer pelo canto da boca.
Estavam a fazer um jogo entre eles, passar uma maçã ou uma laranja do queixo para... Sabe como é? Bom, implica uma intimidade física única. E outros assim, ainda menos higiénicos.
Para terminar, gostava de saber como vai ser o resto do seu dia.
Vou almoçar com o reitor da Universidade Católica, um amigo de longa data; vamos discutir coisas importantes para o ensino da medicina em Portugal. Depois tenho uma operação interessante, daquelas cujos dados não são ainda completamente conhecidos em relação ao que se vai encontrar e fazer. Depois tenho vinte e tal doentes para ver. Depois vou para casa. Tenho estado a ler a poesia do Nemésio; ontem fi-lo, e, para sobremesa, fui buscar um bocadinho de O’Neill. E foi bom, sabe? E pronto, aqui tem.
Não o apoquenta pensar que tudo isto pode acontecer de uma outra maneira, que futuro é sempre um imponderável?
Quando olho para a minha vida, diria que o futuro sempre me aconteceu, e eu não dei por isso. Nunca tive uma meta _ uma ou outra coisa, mas muito pouco. Portanto, quando dava por isso, o futuro já cá estava. De maneira que estou tranquilo. Queria ter uns anos mais, queria ter uns anos mais.
Publicada originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2001.
João Lobo Antunes morreu em Outubro de 2016.