Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

João Pereira Coutinho (2014)

16.11.14

Antes de João Pereira Coutinho ser o colunista amado e odiado que é, era um rapaz licenciado em História (variante História de Arte) e depois um doutor em Ciência Política e Relações Internacionais. Antes e agora, um conservador. Porquê? “Em sentido prosaico: é aquela história de preferir o familiar, o que existe e persiste. Em sentido político: por entender que os políticos são tão falíveis e até perigosos quanto eu. O que significa que quanto menos poder tiverem sobre a vida dos outros, menor será a margem de erro e de destruição.”

Acabou de lançar em Portugal um livro de capa azul, chamado simplesmente “Conservadorismo”, que já havia sido lançado no Brasil. É um ensaio de um académico habituado a chegar ao grande público, com humor e consistência. MEC chamou-lhe um golfinho no meio de sardinhas.

 

Se vou entrevistar um conservador, começo a provocar desde já: Salazar foi a pessoa que fez pior à direita em Portugal?

Ajudou à festa. Um regime autoritário ajuda sempre. Mas é preciso relembrar que a festa foi montada pelo caos e pela violência da 1ª República, que tiveram dois efeitos. O primeiro foi produzir Salazar, que até prova em contrário não aterrou entre nós na sua nave espacial. E o segundo, menos óbvio, foi o jacobinismo doméstico ter varrido uma direita civilizada e “liberal”, daquelas que podemos apresentar à família e que sabe comer à mesa com talheres, e que era possível encontrar na segunda metade do século XIX.

 

E do outro lado, quem é que fez pior à esquerda desde que a esquerda é esquerda?

Todas as ideologias são doenças. A própria noção de que é preciso uma ideologia – uma forma de interpretar e transformar o mundo – já é uma confissão de debilidade. Mas existem doenças e doenças. Algumas são benignas. E outras desenvolvem metástases. Quem fez pior à esquerda, geneticamente falando, foi Jean-Jacques Rousseau no mais brutal ataque à “civilização” que a história das ideias políticas produziu. A descendência levou as premissas de Rousseau – a ideia de que nascemos livres e nos encontramos aprisionados em toda a parte – até às suas últimas e brutais consequências. Deu no que deu.

 

No concreto, quando é que começou o seu pó de estimação à esquerda? Ou, devo dizer, ao Partido Socialista?

Não há nenhum pó de estimação à esquerda, muito menos ao PS – e, em geral, ao socialismo democrático. Ser de esquerda ou de direita faz parte do jogo pluralista de qualquer sociedade decente. Só fanáticos, ou pessoas com grande património genético neandertalensis, pensam o contrário. E o socialismo democrático, ao enterrar os eflúvios revolucionários do marxismo-leninismo, foi precioso ao proteger as regras do jogo democrático e ao aceitar participar nele pela força do voto e não pela força das armas. Isso é bastante estimável.

 

O que é que ainda temos do “saudoso tempo do fascismo”, como dizem os fascistas e reacças? Quarenta anos depois, voltámos a sentir o que muitos apontam como factores essenciais para compreender a permanência de Salazar no poder, ou seja, pobreza e medo?

Com a devida vénia a José Gil, o livro dele sobre o “medo de existir”, essa herança perversa do salazarismo que ainda hoje perdura e bla bla bla, é uma tese fantástica. Pena que seja totalmente fantasiosa. Como já disse algures, Salazar só foi possível porque a maioria dos portugueses era tão iliberal quanto ele. Foi um ditador exactamente à medida do que somos e valemos. Só isso explica a duração obscena da ditadura. José Gil absolve os portugueses e condena Salazar. Lamento. A condenação é mais vasta e a história do Estado Novo tem poucos heróis.

 

Como é que ficámos com estes pares de jarras, em que ninguém se revê em ninguém e toda a gente vocifera contra toda a gente? Falo da degradação da cultura democrática e da apregoada indigência da classe política. Ou não é nada assim e só estou a repetir as vozes de inúmeros treinadores de bancada?

Costuma dizer-se que a classe política de um país reflecte o que esse país realmente é. No Portugal democrático, essa tese não foge à regra. Na generalidade, os políticos são maus porque os portugueses não exigem melhor. Basta ver este cenário anedótico: aqueles que tiveram responsabilidades directas na degradação das contas públicas são os mesmos que comentam a actualidade política, nas tv’s, nos jornais ou na rádio, como se tivessem chegado hoje de outro planeta. E, que eu saiba, as audiências e os leitores apreciam a farsa. Quer melhor do que isto?

 

Engrossa a fileira dos que dizem que é perigosíssimo o discurso anti-políticos e anti-partidos?

Não. É saudável o discurso anti-políticos e anti-partidos, desde que seja apenas discurso (e não violência) e inclua também alguma dose de vigilância sobre os usos e abusos do poder. O que é pena é que essa desconfiança só apareça quando o país está de rastos – e não quando havia pão e circo para entreter os nativos. Como sempre, os portugueses protestam tarde e a más horas. Para regressar ao Estado Novo, faz lembrar aquelas multidões que no dia 25 de Abril eram todas democráticas e prontas para varrer o regime de peito feito – mas no dia 24 nem se atreviam a dar um pio. Conheço casos.

 

Aposto que não esperava um país novo, com a vinda da troika. Mas, que diabo, não era para estarmos melhorzinho depois de três anos a levar forte e feio?

Não, não era para estarmos melhorzinho. A vinda da troika foi para não falirmos, uma coisa desagradável que normalmente implica salários e pensões suspensos, contas bancárias congeladas, pancadaria social e, quem sabe?, até a própria ruína do regime democrático. As pessoas que pensam que estes anos foram o pior possível, nem imaginam o que é o pior possível.

 

O que falhou?

Dizer-lhe que o governo falhou ao não ter reformado estruturalmente o Estado é um exemplo. Ter carregado nos impostos é outro. Mas isso seria contar uma parte diminuta da história. O nosso falhanço deve-se a uma sucessão de políticos incompetentes ou dolosos que permitiram a falência do país três vezes em 40 anos de democracia. É fácil fazer tiro ao alvo com o dr. Passos Coelho e tutti quanti. É outra atitude infantil dos portugueses: acreditar que o mal começou hoje ao pequeno-almoço, e não ontem, nem anteontem, quando vivíamos alegremente com crescimento medíocre e com o dinheiro emprestado dos outros. E ninguém achava a coisa bizarra porque havia crédito, estádios de futebol e o diabo a quatro.

 

E a crise internacional?

A “crise internacional” pode ter as costas largas. Mas ela só deu a sua estocada final porque o país já estava de joelhos. Sou crítico deste governo, sim, mas ainda não sofro de amnésia.

 

O descalabro dos números revela a falência da política neoliberal?

“Neoliberal”? Bom, partindo do pressuposto de que “neoliberal” tem algum significado político substancial, coisa que duvido, só por piada se pode chamar “neoliberal” (ou simplesmente liberal) a este governo. Com uma despesa na estratosfera e uma carga fiscal deste tipo, onde é que está o liberalismo? Até o sr. Friedrich Hayek, que tinha fama de ser um paz de alma, teria um colapso nervoso se o identificassem ideologicamente com este governo.

 

Retomo a pergunta com uma variação: o descalabro dos números revela a incapacidade destes políticos na execução da política neo-liberal?, revela a conjuntura?

O governo não é liberal, nem neoliberal, nem coisa nenhuma de substancialmente ideológico, ao contrário do que pensam alguns histéricos. É um governo que encontrou uma casa em chamas e tentou apagar o incêndio como pôde, aos trambolhões, desse por onde desse e às ordens do capataz. É tão simples e tão dramático quanto isso.

 

E de quem é a culpa?

Repito: não é do dr. Passos Coelho. É nossa: dos políticos que elegemos, da vida que fomos fazendo, do total alheamento com os destinos da coisa pública.

 

Apesar do que foi anunciado, foi de facto uma reforma profunda o que aqui se passou? Ou tudo se limitou a um emagrecimento à bruta, com serviços – o Estado de um modo geral – a pão e água?

Uma reforma não é coisa que se faça sob pressão e em três ou quatro anos. Pelo menos, uma “reforma” no sentido próprio da palavra. Porque a “reforma” implica estudo e reflexão: saber que Estado podemos ter; que funções ele deve executar; que funções ele deve delegar; e etc. Essa reforma não existiu, é duvidoso que exista para 2015 e essa é uma crítica legítima a um governo que se apresentou aos portugueses com um plano para “transformar” o mastodonte. O que sobrou? Sim, cortes à bruta. E uma situação fiscal próxima do confisco. São os típicos expedientes de governos impreparados que recebem o país de tanga, como dizia o outro. Não há milagres. Nem inocentes.

 

O que é que devíamos ter mudado mesmo, e como? Sistema eleitoral?, modo de funcionamento da justiça?, redistribuição de riqueza?

A reforma do sistema eleitoral já devia ter sido feita para acabar com o “voto de cabresto”, uma expressão brasileira que eu adoro, e que existe nos partidos com representação parlamentar. Consiste em enchouriçar listas de deputados com nulidades avulsas que depois fazem figura de corpo presente no hemiciclo e, mesmo em matérias que não são estruturais para o partido, votam de acordo com os mandos do chefe. Um sistema eleitoral decente devia começar por responsabilizar cada deputado perante os seus eleitores, que deviam ter a possibilidade de o premiar ou punir na eleição seguinte.

Sobre a justiça, enfim, nem temos espaço. Basta olhar para a punição da grande criminalidade económica: não existe. Não conheço. De duas, uma: ou temos uma justiça incompetente; ou somos o único país do mundo civilizado onde a grande criminalidade económica não existe, o que devia merecer uma referência no Livro do Guinness.

 

Se tivermos um governo socialista no próximo ano, será fácil voltar ao estado anterior, ou há uma reconfiguração fundante que tem de ser feita, e que vai levar tempo?

Não voltaremos mais ao mundo que tivemos. Quem disser o contrário, mente. E não voltaremos porque, com a crise, o país perdeu soberania orçamental, ou seja, e trocado por miúdos, rédea solta para as loucuras do costume. A partir de agora, e com a assinatura dos três partidos do regime (é importante lembrar isto, porque o dr. António Costa anda com problemas de memória), as nossas contas passarão a ser vigiadas por Bruxelas. Uma vergonha? Com certeza. Uma tristeza? Talvez. Mas para citar o sr. Burke, essa é uma lição clássica da política: quando não há tino vindo de dentro, alguém acaba por nos impor tino de fora. Claro que estas coisas costumam acabar mal: alimentam extremismos, nacionalismos, etc.

 

Como já acontece na Europa.

Sim. E podem, no limite, conduzir à ruína da União Europeia. Mas duvido que isso aconteça em Portugal. Entre nós, está tudo bem desde que alguém passe o cheque. Se o outro dizia que Paris vale bem uma missa, nós dizemos que o cheque vale bem a “soberania”.  

 

Como viu o caso BES? Como é que a bomba só explodiu agora, depois da saída da troika? Borrou a pintura ao Governo, à Europa, à troika – para não falar do dano aos accionistas? Quem se saiu pior? Há alguém que se tenha saído bem?

Só posso falar do que leio nos jornais: ou a coisa foi má gestão de proporções homéricas ou então é um caso de polícia. Deixemos a apuração dos factos às autoridades competentes. O problema é saber se elas são mesmo competentes, porque a novela GES parece mostrar, de forma quase cómica, que governos, reguladores, órgãos de comunicação, a troika e sei lá quem mais, ao nunca terem dado por nada, foram de um incompetência atroz. Desconfio que se a ruína do Grupo não tivesse começado a ser investigada lá fora, continuava tudo cá dentro no sono dos justos.

 

Não há-de ser por acaso que desde a queda do Lehman Brothers tombaram, de maneiras diferentes e por diferentes razões, BPN, BPP, BES (para não falar da situação de pré-falência de outros bancos, como o Banif). Que explicação dá?

As razões são distintas mas partem de um mesmo problema: falta de supervisão. Porque é preciso fazer uma distinção importante entre os abusos e a vigilância deles. Abusos sempre existirão e não têm nada de especial: como se costuma dizer, acontece nas melhores famílias. O que é grave é a incapacidade de os travar e punir no momento certo. O Banco de Portugal, com Vítor Constâncio, saiu pessimamente da pintura do BPN. Mas, cuidado, Carlos Costa não sai melhor agora.

 

Não acha estranho que Ulrich e os outros não tenham aparecido a barafustar “ai não aguentamos, não aguentamos”? E não acha estranho que os bancos, que nada têm que ver com o que se passou no BES, sejam chamados a pagar a factura (e não me refiro às taxas, que só daqui a cem anos permitiriam pagar o que agora se adiantou)? Como olha para as repercussões internacionais desta medida (falo da fuga de investidores)?

Essa é a parte que verdadeiramente devia preocupar qualquer português: saber se os quatro anos de sacrifícios podem ser postos em causa por uma maçã podre que assusta os mercados e nos fazem regressar para trás. Passos Coelho esteve bem quando não aceitou a demissão de Paulo Portas no Verão passado; se não o tivesse feito, a saída do programa teria sido à grega, e não à irlandesa, mesmo com todas as incertezas orçamentais que pairam sobre o país no futuro próximo. Com o GES, este é o seu segundo momento decisivo e até agora o primeiro-ministro tem agido com prudência, vigilância e recato, como convém. Ter separado as águas com o Novo Banco, resguardando os clientes, está a anos-luz da aventura lunática da nacionalização do BPN.

 

Olhe para Portugal como uma família. De doidos? Quem se safa? Ou vai tudo directo para o manicómio?

Não, não olho como um manicómio. Olho da mesma forma que um pai para um filho: com exigência e amor. Há 16 anos ininterruptos que escrevo sobre Portugal. Acha que isso seria possível se não me importasse com o que somos e fazemos? Digo-lhe desde já: não seria possível. Portugal é uma obsessão e só nos tornamos obsessivos com aquilo que é significativo para nós. O contrário disto é a indiferença, que é bem pior do que a crítica excessiva. Não me confunda com o típico escriba queirosiano, que acha isto tudo uma pocilga mas, ironicamente, só a pocilga é que o aceita e reconhece. Eu vivo cá porque escolhi viver: se quisesse, já teria feito as malas para São Paulo, por exemplo, onde sou muitíssimo bem tratado e onde até teria vantagens materiais consideráveis. Mas Portugal é o meu país, a minha língua, a minha gente. Sem ressentimentos.

 

Quando é que vamos dar o salto e ser aquele país do caraças que almejamos ser há pelos menos umas décadas? Pergunto de outra maneira: quando é que vamos deixar de ser os cafres da Europa (Padre António Vieira dixit) que somos há pelo menos uns séculos?

Ah, se eu soubesse! Infelizmente, e com a matéria disponível, não me parece que seja para a minha geração, nem para a próxima, nem para a seguinte. Um amigo brasileiro, infelizmente já desaparecido, dizia-me uma coisa com piada: “Vocês, portugueses, já tiveram África, o Brasil, Bruxelas. Agora é só encontrarem a letra C.” Verdade: a nossa história, para além dos mitos grandiloquentes sobre “mares nunca dantes navegados”, é uma história de pobreza e fome. Sair daqui, procurar territórios que não fossem tão exíguos e infecundos como o nosso, foi uma necessidade vital. Por isso veio África, Brasil.

 

E Bruxelas? Tivemos Bruxelas de que maneira?

Bruxelas deu uma ajuda preciosa na consolidação democrática. E agora? Falta-nos a letra C. Falta-nos o tradicional balão de oxigénio para não sufocarmos cá dentro. Ainda temos Bruxelas, sim, mas agora o oxigénio será mais racionado. Pela primeira vez na nossa história, e tal como escrevi há tempos na Folha, estamos condenados a regressar para casa. Talvez seja essa a letra C, o que não é necessariamente mau: arrumar a casa e torná-la sustentável é um desafio bem maior do que vencer o Adamastor.

 

Quando se fala da barreira (que ainda faz todo o sentido?) entre esquerda e direita, fala-se o centímetro em que o Estado intervém e regula as relações entre os cidadãos (para não acabarem todos à batatada?)?

Genericamente, sim, pelo menos desde o século XIX. A divisão entre “esquerda” e “direita” começou por ser uma divisão espacial: nos Estados Gerais da França pré-revolucionária, o Terceiro Estado sentou-se à esquerda do rei e as classes aristocráticas à direita. Mas essa divisão espacial entre os defensores dos privilégios da velha ordem não tem significado hoje. Historicamente, é possível citar vários exemplos de homens da direita que lutaram pelo fim dos privilégios da velha ordem.

 

Quem?

Benjamin Disraeli, o líder dos conservadores ingleses, alargou o direito de voto às classes trabalhadoras urbanas, legalizou os sindicatos, o direito à greve, etc.

Hoje em dia, creio que o filósofo Steven Lukes tem razão quando distingue a esquerda e a direita com aquilo que ele designa por “princípio de rectificação”. Para uma pessoa de esquerda, é função do Estado rectificar as desigualdades de rendimentos entre indivíduos. Para uma pessoa de direita, a função do Estado será mais modesta: garantir, sim, que ninguém caia abaixo de uma linha mínima de decência – mas respeitar a desigualdade que é inerente à condição humana, às diferenças de talento, mérito, etc. Tudo isto parte de uma visão mais optimista (para a esquerda) e mais pessimista (para a direita) da natureza humana. Porque o governo é composto por seres humanos e, nestas matérias, alguém de direita tenderá a relembrar Lord Acton de que o poder corrompe – e o poder absoluto corrompe absolutamente.

 

Na Folha de São Paulo disse que ser conservador em política é dizer ao Estado que não o quer para baby-sitter. Em que domínios precisa dele? Em que matérias somos sempre umas crianças a precisar que nos guiem pela mão?

Para retomar a metáfora da baby-sitter, precisamos do Estado quando nos sentimos tão vulneráveis como uma criança. Precisamos do Estado na justiça, na segurança, na pobreza, na doença. Algumas dessas funções são soberanas e inalienáveis (a justiça é um caso). Mas existem outras em que o importante é fornecer essa rede, independentemente de quem a produz (na saúde, por exemplo). Claro que quando se tenta discutir estes temas complexos, existe sempre um cavernícola que encerra o debate com tiradas guturais, do género: “Querem acabar com a saúde!”, “Querem matar os portugueses!”, “É o regresso do fascismo!”, etc. Em 2014, seria de esperar que este reductio ad hitlerum já estivesse enterrado. Mas a política portuguesa está sempre na vanguarda do atraso.

 

O que é que a geração a que pertence deve ao Estado, à democracia e aos que fizeram Abril?

A minha geração agradece a liberdade: poder ler, pensar, escrever sem o lápis da censura. E, como dizia Popper, agradece poder substituir os políticos incompetentes sem o expediente desagradável de ter que os matar. Isso é muito. Mas não chega. Também agradeceria que, pela incompetência ou pelo abuso, o país não estivesse hipotecado para o resto das nossas vidas úteis. Creio que era a sra. Gertrude Stein quem chamava aos jovens que participaram na Primeira Guerra a “geração perdida”. Fazer comparações com os infelizes de 1914-18 seria obsceno. Mas não são apenas as guerras que fazem gerações perdidas. As elites políticas que tivemos foram cavando a nossa perdição. A minha geração também é uma geração perdida à sua maneira.

 

O que é ser conservador hoje? Pode responder em forma de teaser, a ver se os leitores do Negócios ficam com vontade de comprar o seu livro.

O conservadorismo é uma forma de estar no mundo e uma forma de estar na política. Como forma de estar no mundo, todos somos, em maior ou menor grau, conservadores. Só uma criatura doente, ou lobotomizada, não tem pessoas, coisas, lugares que deseja conservar para desfrutar. Em política, a atitude conservadora parte de uma visão céptica sobre o conhecimento humano para defender que a melhor forma de governar implica uma recusa do pensamento utópico e um compromisso com a realidade, com aquilo que é tangível e necessário, com as tradições que sobreviveram no tempo, sem nunca recusar as reformas necessárias para se salvaguardar aquilo que é precioso em qualquer sociedade. Mas o mais importante para um conservador é “viver e deixar viver”; é limitar o poder do Estado para que sejam as pessoas, como dizia o outro, a tentarem, a falharem e a falharem melhor.

 

O Miguel Esteves Cardoso chamou-lhe numa crónica do Público um golfinho num cardume de sardinhas. Quanto é que lhe pagou?, confesse. Agora falando sério, como cantava o Chico Buarque: em que sentido é um golfinho num cardume de sardinhas? Pela clarividência da análise? Voz isolada? Mas a direita não está cada vez mais confortável, acompanhada?

O Miguel é de uma generosidade excessiva. Sempre foi. Tenho coleccionado vastas cicatrizes nas costas de pretensos amigos. Exibo-as com orgulho. Mas não tenho nenhuma cicatriz dele, apesar de não nos vermos há séculos, com muita pena e saudade minhas. Agora, sobre o golfinho e as sardinhas, felizmente já há mais golfinhos na água. Nos tempos do Indy a solidão era maior. Os insultos também. Mas entretanto vieram os blogues, apareceram outras vozes, a coisa foi-se “normalizando”.

Eu, se me permite a derivação gastronómica, desenvolvi um gosto pantagruélico por sardinhas. No Verão, a coisa toma proporções alarmantes.

 

Fala da política de todos os dias aos seus alunos? Eles procuram o comentário, o bota abaixo o Sócrates (ainda?) ou o bota abaixo o Passos? (A propósito: enquanto politólogo, que explicação encontra para o ódio que Sócrates desencadeia?)

A política de todos os dias não entra na minha sala de aula. E o único Sócrates que lá tem lugar é o original. José Sócrates não me desperta nada. Nunca despertou, pessoalmente falando. Não o conheço e, por amor de Deus, nunca escrevi um texto com “ódio”. Devemos deixar esses sentimentos mais elevados para figuras mais elevadas. As minhas apreciações eram políticas e só políticas. Há pessoas que não conseguem fazer essa separação e acham que é tudo pessoal. O que escrevi, mantenho: foi um mau primeiro-ministro, teve responsabilidades directas na falência do país – mas a partir do momento em que saiu de cena, ou pelo menos passou aos bastidores, deixou de ocupar o meu espaço mental. Agora, se ele ainda desperta sentimentos fortes entre muitos portugueses, isso é compreensível: o país ruiu nas mãos dele, independentemente do contributo da “crise internacional”. E falir não é propriamente um feito que deixe saudades.

 

A rentrée promete ser animada, com primárias no PS e a possibilidade de legislativas antecipadas. Que cenário prevê?

Com novas eleições, prevejo um “empadão”: PS e PSD no mesmo governo, e talvez o CDS se o convidarem com jeitinho. Qualquer outra solução parece-me duvidosa, em vários sentidos da palavra: chegou-se a um ponto tal que até o “empadão” é um mal menor. E as reformas de que o país precisa exigem esse consenso. Resta é saber que nomes estarão no cozinhado.

 

O que é mais plausível?

O caso do PS, apesar do teatro, parece-me mais cristalino: Costa talvez ganhe folgado porque Seguro teve as piores vitórias eleitorais que um líder da oposição pode ter, sobretudo com um país sob austeridade: vitórias que cheiram a derrota. No CDS, duvido que Portas continue para um segundo round. Basta olhar para a cara de frete do homem para ver que ele tem um relógio privado em casa, em contagem decrescente até à sua própria libertação. O caso bicudo está no PSD: se Rui Rio pensa que a liderança social-democrata é um passeio no campo, alguém devia oferecer-lhe antes botas de alpinista.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014