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Anabela Mota Ribeiro

João Rendeiro

18.01.15

João Rendeiro tem os dentes demasiado certos, os sapatos demasiado engraxados, o sorriso demasiado cuidado. Ele mesmo diz que quer fazer boa figura, e não se coibe de posar no seu melhor ângulo. Demoro tempo até encontrar o que alguns podem considerar imperfeições. Ranhuras. Fissuras. Fragilidades do caminho. E essas são tão irremediavelmente trágicas, pungentes, e a revelação tão inopinada, que causam um efeito extraordinário. Como quando diz que não crê que alguém possa estar incondicionalmente ao seu lado. Ou que tem o sentido da urgência porque pode morrer no instante a seguir, atropelado.

Rendeiro, o provocador, cita Dostoievski, que não leu, ou leu mal, que falava dos “homens burros de acção”. E discorda, discorda. Ainda que saiba que o seu talento seja a obstinação, a acção, e não a equação exaustiva das possibilidades. Explica-me o significado da palavra tecnoestrutura, graceja que tinha de encontrar uma palavra que eu não conhecesse, eheheh. Em todo o caso, eu não me deixo convencer pela sua (aparente) esfuziante felicidade. Demasiado ostentatória. E digo-lhe que não parece muito feliz. E discorda, discorda. Que não o vi a dançar forró entre a multidão. E eu, eu sou feliz? Rendeiro sabe: a melhor defesa é o ataque.

Mas talvez seja feliz. Ele já experimentou outra vida, uma vida de tostões contados, e agora gosta muito desta – por que carga de água é que quereria mudar? É imensamente rico, mas confessa que no fundo, no fundo é um homem simples. Recorda que o pai o levava ao circo quando era pequeno e que temia o barulho dos leões. Mas são tópicos não desenvolvidos. O tópico mais desenvolvido é o que dá sentido à sua vida: ter conseguido.

Ele nunca seria um “loser”. Arrisco dizer que preferia morrer a ser um “loser”. A vida é um jogo, e não faz sentido se não for jogada. É incompreensível não ir a jogo. É um orgulhoso “self made man” que preside o Banco Privado Português.

  

O ponto de partida é saber o que fez de si aquilo que é hoje. Quer começar por Inglaterra?

Se quiser começar por aí... Vou para Inglaterra em 1976, 77. Não conheço melhor no mundo do que a cultura constitucional inglesa, a maneira como está estruturada, a representação dos eleitos e a sua responsabilidade perante os eleitores, a vivência democrática, a civilização.

 

Foi fazer um doutoramento para Sussex.

Os doutoramentos americanos são feitos por disciplinas às quais se tem exames específicos; em Inglaterra é dominante a linha tradicional de Oxford e Cambridge, que é “by research”, [ou seja], por investigação. O facto de ter feito um doutoramento deste tipo obrigou-me a um certo autodidatismo. O meu inglês era razoável, mas insuficiente, e tive alguma dificuldade nos primeiros momentos. Viver num país diferente e estudar “by research” foi ser lançado aos bichos e aguentar esse embate.

 

Alguma vez pensou desistir?

A palavra desistir não faz parte do meu vocabulário. Foi muito duro. Mas a persistência, a determinação fazem parte do ADN.

 

Por que é que foi para Inglaterra num período tão instingante quanto o pós-revolucionário em Portugal?

Era daquelas situações em que as pessoas têm pouco a perder. O período pós-revolucionário, e até pré-revolucionário, foi de caos e de falta de perspectivas. E no meu caso particular, de grande insatisfação em relação à formação que tinha tido na universidade.

 

Acabou o curso e não se empregou imediatamente?

Não, não, empreguei-me imediatamente. Aliás, empreguei-me antes de tirar o curso. Além de ter feito aqueles pequenos biscates que todos os estudantes fazem. Fiz entrevistas na rua, trabalhei no sindicato dos metalúrgicos, de onde fui demitido. Era demasiado rebelde para estar lá.

 

Foi a única vez que foi despedido?

Despedido a sério, foi.

 

É uma coisa muito estigmatizante, ser despedido.

Não ficou estigma para mim. Até achei divertido.


Sim, passados 30 anos é um pormenor engraçado a figurar no currículo. Mas quando as pessoas são jovens e imaginam uma carreira promissora, é estigmatizante.

A mim, o que me parece é que as pessoas têm sempre que tirar o lado positivo das situações. E ser despedido também pode ser visto como uma oportunidade. É certamente um trauma, é um fenómeno de rejeição. Mas se uma pessoa não é produtiva, não funciona, não me choca nada que seja despedida. Espero que seja um incentivo à melhoria.

 

Na cultura americana as pessoas são muito facilmente admitidas e despedidas. Isso não quer dizer que sejam incapazes; podem, simplesmente, ser desadequadas, e nesse sentido é uma oportunidade.

E vão funcionar melhor noutros enquadramentos. Conheço alguns casos de pessoas que eram disfuncionais e que, quando saíram desses enquadramentos, transformaram-se em pessoas motivadas e com outras perspectivas. O pior cenário é o do imobilismo, da falta de perspectivas, da desmotivação. De que é que serve ter emprego, desmotivado e pouco produtivo?

 

Desistir não consta do seu dicionário. Ser um “loser”, ser um derrotado, nunca foi um fantasma para si?

Mais do que perder ou ganhar, o que não admito é não tentar. Não ir a jogo é inaceitável. Depois, todos preferimos ganhar, como é óbvio. Mas perder, tendo tentado tudo o que podia, também faz parte do jogo.

 

Quantas vezes perdeu, já agora?

Ao basquetebol, perdi dezenas de vezes.

 

Também fica bem no currículo dizer que o mais importante é participar.

Mas eu estou aqui a querer fazer boa figura... Essa é a minha característica principal: ir a jogo, e aprender com o que corre menos bem ou mal, e tentar melhor e seguir em frente. Isso é que é importante.

 

Quando é que passou a não hesitar ir a jogo? Que é um modo de perguntar quando é que deixou de ter medo e passou a ter confiança em si.

Sim, é preciso ter auto-estima. Em termos históricos não lhe sei dizer. O facto de ser filho único e de ter tido dificuldades de relacionamento pelo facto de ser filho único...

 

Que idade tinham os seus pais quando nasceu?

Trinta e tal. Nessa altura era tarde. A minha mãe teve grandes dificuldades para me produzir, fez vários tratamentos. Fui jogador de basquetebol e era o capitão da equipa. Sempre houve uma certa tendência, diria que natural, já nascida, para liderar.

 

Então o basquete serviu para socializar este menino sozinho, filho de pais tardios. Não o consigo imaginar em criança.

Fui um menino mimado, filho único, muito mimado mesmo. Dava para dar uns beijinhos... Era gordinho, bem comportado. Mais ou menos isso.

 

Que projecto tinham os seus pais para si? Acontece com os filhos únicos e tardios haver uma expectativa enorme em relação ao seu futuro.

Os meus pais deixaram-me fazer o que quis. Não houve assim um pré-determinismo. Houve uma trajectória natural: fiz o liceu e depois a universidade. Quem escolheu o curso fui eu. Foi através dos livros dos meus colegas mais velhos [espalhados pelas mesas de café], que acabei por escolher. Achei que podia ter piada.

 

Um curso é uma ferramenta. Outra coisa é a vida que imaginava para si.

Uma vida burguesa. Uma vida de fazer vida, de trabalhar, ganhar dinheiro e ser uma pessoa normal.

 

Não acredito que tenha ambicionado tão pouco.

Sou ambicioso, isso pode pôr no currículo. As minhas ambições são “step by step”. Não são ambições que me pareçam irrealizáveis. Sobretudo o que me dá gosto é realizar projectos, sou um homem de acção. Como diria o Dostoievski, um “homem burro de acção”. Sou um daqueles burros que gostam de acção. Com toda a franqueza, até aos 30 anos, não tive empresas. Até aos 30 anos, nunca imaginei que pudesse ser o que sou hoje. As coisas acontecem por etapas, por ciclos.

 

Mas aos 40 anos já estava próximo de ser quem é hoje. Digamos que esta aventura tem...

No banco, em concreto, tem dez anos. Mas a minha vida empresarial tem 20 anos.

 

Há pouco estávamos a falar de Londres...

Fiz-lhe uma provocação pelo meio e você não reagiu. De eu me considerar burro.

 

Porque, ao ouvi-lo, estava a pensar que quem me falou dos “homens burros de acção” pela primeira vez foi Agustina Bessa-Luís. Agustina contou-me que citou Dostoievski num jantar para provocar o homem poderoso que tinha ao lado. Perguntou-lhe: “Se não fosse rico como é, se não fosse poderoso como é, acha que os outros, os seus filhos para começar, gostariam de si da mesma maneira?”. Por que é que essa frase o impressiona?

Impressiona por ser completamente errada. O que vejo, na maior parte dos homens de acção, não é nenhuma burrice, é uma inteligência prática, uma inteligência obstinada. Há uma obstinação na consecução de um objectivo, que pode parecer falta de inteligência. Mas é esse excesso de focalização que permite a obtenção de resultados. É a diferença entre um homem de acção e um intelectual. Um intelectual é um homem que não tem palas. Consegue ver todas as implicações, a multiplicidade de equações, de variáveis. O homem de acção fecha-se, a multiplicidade de equações passa a três ou quatro, as variáveis a duas ou três, e consegue ter uma solução. Pode não ser uma óptima solução, mas é uma solução.

 

Leu o Dostoievski?

Mal, mal. Isso foi mesmo só para a provocar.

 

Eu não tenho o seu talento para me concentrar em duas ou três coisas e fazer fortunas. Mas também é verdade que não gosto o suficiente de dinheiro e, por isso, provavelmente, nunca serei rica.

Você acha que os ricos gostam assim tanto de dinheiro?


Acho que gostam do que o dinheiro pode trazer, sim.

Mais como um instrumento. É uma forma de atingir certos objectivos. Para mim, não é certamente um objectivo em si mesmo. É um “benchmark”: as pessoas atingem certa posição financeira e isso significa que as coisas que fizeram foram bem-feitas. É o resultado de um percurso e uma forma de se poderem fazer outras coisas a seguir. É isso que é o dinheiro.

 

Para que é que lhe serve ter tanto dinheiro?

Serve-me para fazer coisas boas.

 

Para levar uma vida boa?

Evidentemente.

 

Quando falo em vida boa, não estou a pensar estritamente no conforto material. Mais que tudo, o dinheiro permite escolher.

O dinheiro permite escolher, mas não permite a variável mais crítica de todas estas, que é o tempo. Muitas vezes, as pessoas são escravas do dinheiro, no sentido em que não fazem aquilo que é mais importante na vida. A minha vida hoje não é só trabalhar para ganhar dinheiro, é também ajudar vários projectos, como a Fundação Luso-Brasileira, os Amigos do Museu do Chiado, a Fundação Ellipse, ou esta iniciativa mais recente dos Empresários pela Inclusão Social.

 

Esse trabalho permite uma nobilitação social, sem dúvida. As vias mais assertivas da nobilitação social são a beneficiência e a arte.

Isso era pensar que eu precisava dessa nobilitação social. Penso que já a tinha. E as pessoas que estão nos Empresários pela Inclusão Social, muitos deles prefeririam nem sequer aparecer. Fazem-no porque sentem que é um objectivo patriótico. Fazem-no porque sentem que estamos diante de um problema de gravidade nacional e é fundamental ir a jogo. Baixar os braços, ter uma perspectiva nihilista sobre o país, é o mais fácil. O mais fácil é ler o Vasco Pulido Valente todos os sábados e pronto.

 

Sextas, sábados e domingos. Lê?

Claro que leio, com muito gosto. É uma pessoa de uma inteligência apuradíssima e que escreve muito bem. Aqueles textos não fazem bem à auto-estima nacional. Pensar nessas actividades como uma nobilitação social, é legítimo, mas é extremamente redutor.

 

Deixe-me voltar à pergunta de Agustina ao homem do lado: «Se não fosse rico e poderoso, os seus filhos gostariam de si da mesma maneira?».

Se não fosse rico e poderoso? Não faço a mínima ideia. Eu não tenho filhos. É uma questão que não me coloco: como é que seria, se não fosse o que sou.

 

A questão é por que é que os outros estão ao seu lado. Por que é que é bom, num contexto não-profissional, estar consigo a jantar.

Não tenho a menor dúvida de que há muitas pessoas que gostam de estar ao pé de mim para usarem seja o que for. Estar perto de alguém que conhece muitas pessoas. Estar perto de alguém que pague o jantar. Estar perto de alguém que até pode contar umas anedotas.

 

E esses, reconhece-os logo? Sabe sempre ao que o outro vem?

Para mim, é fundamental ter uma perspectiva optimista sobre a natureza humana, embora já tenha visto o suficiente para perceber por que é que há outras perspectivas bem mais negativas.

 

Não há almoços grátis...

Não há almoços grátis, sem dúvida. Essa noção do “poderoso” diverte-me um bocado. Já não é a primeira pessoa que me diz que sou um homem poderoso.

 

Acha que não é?

Vamos lá a ver: o que é poder? Ainda não fiz uma reflexão para escrever um artigo, muito menos uma tese de doutoramento, sobre o que é o poder.

 

Vai fazendo as perguntas à própria vida?

Sim. O poder hierárquico certamente é um poder. O presidente manda no vice-presidente, o vice-presidente manda no não sei quantos. Outras fontes de poder: a influência. Uma jornalista é uma pessoa que tem o seu poder. A fonte de poder mais interessante, e aquela de que gosto mais, é a do poder das ideias. O poder dos conceitos.

 

O que é que isso quer dizer?

Tudo passa, a única coisa que fica são as ideias. Os presidentes passam, os presidentes das empresas passam, e o que é fica? Fica um quadro. O modelo de negócio numa empresa é algo que não passa. Os artistas, e de certa maneira os empresários, partilham o mesmo “common ground”, que é a importância do poder das ideias. É por isso que um grande número de empresários que conheço gostam de arte, de uma maneira pouco estruturada, pouco universitária. Instintivamente, as pessoas sentem uma proximidade e identificação.

 

Porque gostam do que fica?

Gostam do que fica, do que tem poder.

 

E do que não é efémero. O poder pode exercer-se sobre um subordinado, e é uma coisa que desaparece se a pessoa morre ou cai em desgraça. Uma obra de arte fica.

A obra de arte fica e as ideias que são boas ficam. São essas que são o verdadeiro poder. Vou dar-lhe um exemplo: empresários pela inclusão social. É uma ideia fortíssima, acho eu, tão simples, tão óbvia, mas simultaneamente tão poderosa: empresários, que são supostamente os homens que só se preocupam com o dinheiro, que se estão nas tintas para o social, para a esquerda, para os trabalhadores, estes senhores, de repente, deu-lhes na veneta e vão preocupar-se com os estudantes em abandono escolar. Aqui tem uma ideia extremamente poderosa. E revela um poder em si mesmo.

 

A ideia é poderosa, mas a questão é como ela é posta em prática. E aí estamos novamente no domínio fazer.

Mas ela vai ser posta em prática, realmente. Como o vamos fazer, neste momento, não sabemos. A única certeza que temos é que vamos encontrar os caminhos.

 

Quando foram apresentar o projecto ao Professor Cavaco Silva, a pessoa que mais apareceu, ainda que dele fizesse parte Eduardo Catroga, muito próximo do presidente, foi o senhor. Quando o vi na televisão a encabeçar o grupo já sabia que o ia entrevistar. E interroguei-me se era importante para si, porque era sinal de um inequívoco poder, ser o interlocutor daquele grupo, o veículo daquela ideia.

Não vejo isso como manifestação de poder em relação ao grupo. Certas circunstâncias (vai-me desculpar, mas não falo delas) fizeram com que fosse eu a pessoa a fazer aquilo.

 

Não lhe faria espécie nenhuma não se destacar no grupo?

Não, não. Naquele grupo certamente que não. Qualquer uma daquelas dez pessoas podia ter tido o papel que tive. Se fosse outra pessoa a ser o porta-voz, sentir-me-ia igualmente satisfeito.

 

Há pouco não respondeu completamente, quando falava das razões pelas quais as pessoas estão consigo. Pergunta-se se as pessoas estão consigo incondicionalmente? Tem a paranóia de ser abandonado?

Não tenho essa paranóia. Já vivi muitas situações em que as outras pessoas deixaram de estar comigo. Em última instância, estamos em presença de um contrato não-escrito que tem por base um interesse específico. Um interesse recíproco. Além das regras de interesse económico, vigoram regras de uma certa ética, de uma certa moral. Desde que as coisas sejam feitas de uma maneira correcta, compreenderei que uma pessoa que esteve comigo, por razões várias, deixou de estar. Não tenho uma visão incondicional...

 

“Incondicional” é uma palavra importante no seu dicionário?

Não. Incondicional até é uma má palavra no meu dicionário. Acho que as pessoas têm que estar sempre com condição, e estão enquanto estiverem bem.


Isso é válido para tudo? Não me estou a referir exclusivamente à sua esfera profissional.

Acho que sim, é válido para tudo. Eu não esperaria de ninguém que estivesse incondicional comigo, fizesse eu as asneiras que fizesse. Acharia isso completamente pateta.

 

É muito forte, isso que diz. Obriga-o a medir sempre o que faz, o que diz, implica uma vigilância permanente.

Não sou polícia. Mas não posso fazer o que me apetece. Cada um de nós tem que actuar responsavelmente. E pensar que os outros estão em condição é uma boa forma de nos auto-limitarmos.

 

Estive a ler umas entrevistas suas e reparei que usa muito a palavra “catalisador”. Essa sim, faz parte do seu léxico.

Isso é por causa do meio automóvel.

 

Que significado é que lhe atribui?

Um catalisador é um motivador, um elemento dinamizador. Um empresário fundador de uma empresa é eminentemente um catalisador. Sou uma pessoa de energia alta, felizmente, e o catalisador é um utilizador de energias.

 

Nos anos em que estava em Inglaterra era menos um catalisador, imagino. Estava numa fase de aprendizagem, e nessa fase está-se sobretudo a receber energia. E a organizar a própria energia.

Em Inglaterra, além de estudar, trabalhava. E apresentava projectos e tinha que inventar trabalho, para poder financiar a minha estadia lá.

 

Começou por ir sozinho. A sua mulher só se juntou a si passado um ano.

Justamente porque não tínhamos condições financeiras para ir os dois juntos. A bolsa que tinha do British Council não era suficiente para vivermos uma vida razoável. E tive que fazer, aliás, fi-lo com muito gosto, vários trabalhos de consultoria.


O meio em que se inseriu era muito elitista?

Eu era um estudante que faz trabalhos eventuais para ganhar dinheiro e era um estrangeiro. Tenho ideia de que há umas esferas em que o crivo é mais apertado. Não as frequentei, só posso saber a partir dos filmes e dos livros.

 

Quantos anos é que viveu assim? A contar o dinheiro?

Mesmo quando era estudante, os meus pais davam-me algum dinheiro, mas não era uma enormidade. Depois casei-me muito cedo, e até regressar de Inglaterra vivia com os tostões contados. Não havia nenhuma abundância de dinheiro.

 

Isso foi marcante? Ajudou-o a valorizar o dinheiro?

Claro. É fundamental que as pessoas valorizem, não o dinheiro, mas as suas situações em cada momento.

 

A conquista.

A conquista, tirou-me a palavra que eu queria. A conquista do dia-a-dia. Todo esse lado é altamente formador. A pior coisa que se pode fazer a um filho é não ensinar o caminho da conquista e das dificuldades. Todo esse período foi positivo.

 

Temos falado de diferentes etapas da sua vida, e não houve ninguém que tivesse nomeado. Não me disse: “Aprendi especialmente com o meu pai, com este professor, com este gestor”. Tudo, ao contrário, parece feito à sua medida, e conquistado sozinho.

Não é necessariamente verdade. Em cada momento houve personalidades que foram importantes. Por exemplo, no período em que estive em Inglaterra, a minha supervisora, que já faleceu, uma professora de Cambridge, foi fundamental.

 

O que é que ela lhe ensinou, o que é que aprendeu com ela?

É díficil dizer coisas concretas, mas foi sobretudo o modo de estar na vida, de estar aberto em relação às coisas. Estávamos semanas sem contactar-nos e depois, numa sessão, ela aparecia com um livro e dizia: “Lê isto”. Incentivava-me a procurar a resposta.

 

E que outras figuras o marcaram?

Na universidade, o professor Ernâni Lopes, que me introduziu a um nome de sociologia económica, Schumpeter. É um autor da escola austríaca que muitos anos mais tarde vim a adoptar. Outra pessoa importante foi o professor Cavaco Silva. Impressionou-me não só pela autoridade científica, mas também por uma certa austeridade pessoal.

 

E por ser um “self made man”?

Claro. Há uma certa identificação de percursos. As pessoas que se fazem por si identificam-se bastante umas com as outras, em detrimento das pessoas que herdam dinheiro, que têm heranças do trabalho dos outros.

 

Lembra-se do momento em que ganhou o seu primeiro milhão? É um número mágico para os ricos...

Não sei se corresponde ao primeiro milhão, mas o momento crítico da minha independência económica foi a venda da Gestifund e a venda da Deca, em 1990, 89, ao Banco Totta e Açores.

 

Tinha 38 anos. Foi uma ascensão galopante. Percebeu que, se pôde fazer um milhão, podia fazer muitos mais?

A questão não foi essa. A questão foi, mais uma vez, ciclos: fez-se uma venda, da Gestifund e da Deca ao grupo Totta. Fiquei com um contrato de gestão de cinco anos, que fazia parte das condições da operação; um período de cinco anos por que tinha de passar, numa gaiola dourada. E terminado aquele período, começou-se outro ciclo, o do banco.

 

Nessa gaiola dourada, trabalhava para terceiros. Não estava ainda sozinho, a viver a sua aventura.

Aprendi que é muito mau estar numa gaiola dourada.

 

O que é que lhe é difícil? É ser subordinado? É cumprir directivas impostas por outros?

São dois problemas. Quando, sendo subordinado, você acha que pode fazer melhor do que a pessoa que está a mandar. E o peso da tecnoestrutura.

 

Não sei o que quer dizer esse palavrão.

Eu tinha que encontrar aqui uma palavra que você não conhecesse, se não não tinha piada nenhuma!

 

Fiquei esmagada!, não consigo imaginar o que possa ser a tecnoestrutura.

São as equipas de gestão de uma empresa, são os decisores e a burocracia que se estabelece na gestão das empresas e das organizações. Essa burocracia é virada mais para os jogos políticos internos do que propriamente para a criação de valor. Essas tecnoestruturas são extremamente castrantes da iniciativa e do desenvolvimento. Uma pessoa que está habituada a liderar projectos, a decidir e a avançar com as situações, quando se vê a combater perante os homens sem rosto da tecnoestrutura fica frustrada.

 

Se agora começasse do zero sabia exactamente como fazer fortuna e realizar-se?

Certamente não iria ficar de braços cruzados.

 

Não há mesmo nada que o fizesse desistir?

Desistir é morrer. Para quê desistir? Mais vale uma pessoa morrer. A pessoa estar viva e não tentar, não faz sentido. As pessoas podem reconfigurar-se, reagir à adversidade de múltiplas maneiras, não necessariamente repetindo os modelos anteriores. Pensa-se em mim e pensa-se em dinheiro, poder, casas, carros. Mas eu sou uma pessoa muito simples.

 

Em que é que se sente um homem simples?

Sou uma pessoa simples porque gosto das coisas simples da vida. Se me quiser ver satisfeito é a dançar forró no meio da multidão.

 

Por acaso, não me parece muito feliz, sabe? É como se não distinguisse um brilho extraordinário no seu olhar, apesar de tudo o que tem.

Gostaria que me definisse a felicidade. Você é feliz, por exemplo?

 

Há uma expressão do Kundera em que me concentro cada vez mais, que é “uma súbita intensidade da vida”. Talvez a felicidade se aproxime disto. Para responder à sua pergunta, vou encontrando muitos momentos de súbita intensidade. E os seus?

Estou inteiramente de acordo com essa definição.

 

O que é que o faz correr? O que é que lhe provoca essa aceleração e súbita intensidade?

O que me faz correr é o exercício dos talentos. Para mim há sobretudo o sentido da urgência. Estou consciente de que posso morrer hoje. Há anos, uma pessoa por quem tinha uma grande admiração, o professor Alfredo Sousa, morreu atropelado. Quem iria dizer que aquele homem, na pujança da vida, iria ser atropelado de uma maneira tão estúpida, e morrer?

 

Pensa muito nesse episódio, que é um modo de pensar na precariedade da vida?

A precariedade das nossas vidas. Isso dá-me um sentido da urgência. E o que é o sentido da urgência? É achar que não posso fazer daqui uma semana, tenho que fazer hoje. O exercício dos talentos e o sentido da urgência são as duas motivações que levam a que as pessoas façam coisas. A minha experiência, aqui no banco, nas pessoas com quem lido, é que os limites das pessoas estão sempre muito, muito acima daquilo que elas pensam.

 

É mais frequente as pessoas subestimarem-se do que sobreestimarem-se?

Acho que sim.

 

Eu pensava que a maior parte das pessoas tem de si uma alta ideia...

Uma coisa é as pessoas terem de si uma alta ideia, outra coisa é o que conseguem concretizar. Na capacidade de concretização, subestimam-se permamentemente. Digo-lhe isto com toda a segurança porque para mim é uma evidência absoluta.

 

Descreveu-se como um homem simples. Num almoço de domingo em família, com os seus pais, fala de quê? E se está num almoço com amigos/clientes, de que é que fala?

Em família, falamos de tudo menos de negócios. E em negócios falamos de tudo menos de família. Não é verdade..., muitas vezes os clientes transformam-se em amigos. O meu pai é já um velhinho, tem 90 anos e fala sobretudo de quando me levava ao circo a comer cachorros. Já não temos grandes conversas.

 

Com as pessoas de negócios fala dos seus quadros, do prazer estético que é ter um Julião Sarmento, um Cabrita Reis no seu gabinete, ou fala do que isto vale?

Não falo do que isto vale, isso não tem grande piada. As pessoas sabem que é um prazer que eu tenho.

 

Encara a arte como um negócio?

Tenho uma resposta “standard” para isso: se pensar na arte como um negócio, normalmente não ganha dinheiro. A arte é sobretudo um bem de fruição e um estilo de vida; é uma maneira de estar num circo, de ir às feiras de arte, de ir a casa dos coleccionadores, de estar com os artistas.

 

Porque é que a arte muda a vida das pessoas?

Muda a vida das pessoas no sentido de lhes dar outras dimensões estéticas. Não tem necessariamente que mudar na sua dimensão empresarial. Não há uma substituição, há um alargamento, uma adição.

 

Nunca lhe apetece mudar completamente de vida? Por exemplo, mudar-se para o Brasil e ir para os forrós todas as noites.

Mas porquê é que havia de mudar de vida se gosto tanto desta? Isso está completamente fora de questão.

 

Este sofá é confortável.

É? Não adormeça.

 

Sabe quem é que o desenhou?

Sei, sei...

 

Este foi Corbusier, lá em baixo tem um cadeirão Charles Eames, e as cadeiras da outra sala são Mies van der Rohe. São peças de design fundamentais do século XX. São escolhidas por si ou tem uma equipa que escolhe?

Tenho equipas que trabalham comigo, quer no mobiliário, quer na arte contemporânea. Com excepção da Fundação Ellipse onde os curadores têm autonomia absoluta, as pessoas seleccionam várias hipóteses e sou eu que faço a escolha final.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2006