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Anabela Mota Ribeiro

Joaquim Pais de Brito

07.05.15

O que fazer quando tudo arde? Joaquim Pais de Brito fala de coisas simples e essenciais. Dos enchidos, da doçaria conventual, do vinho, da cortiça. Da relação com a natureza, que é urgente redescobrir. Dos caminhos, da relação com a terra, de que não nos podemos perder. Dos protagonistas que nos ajudam a identificar que coisa é esta de ser português.

O que é que Portugal tem? Tem morcela, Fernando Pessoa, uma arquitectura esplendorosa, a matança do porco. Tem uma expressão musical que é património imaterial da Humanidade. Tem o Zé Povinho. Tem uma língua que é uma pátria. Joaquim Pais de Brito fala de todos eles, de diferentes imagens e de diferentes produtos que nos aparecem quando nos olhamos ao espelho.

É director do Museu Nacional de Etnologia. Licenciou-se em Etnologia em Paris, doutorou-se em Antropologia no ISCTE.

Não tem dúvida de que o que é nacional é bom.

 

 

Vemo-nos ao espelho?

A sociedade rural não tem espelhos. As pessoas vêem-se fugazmente no reflexo da água (antes de mexer nela), de um rio, de um tanque. Isto tem consequências na percepção do próprio corpo, na avaliação da passagem do tempo no corpo, na ideia de beleza. Quando se elege algo como símbolo de um património procuramos um espelho. Um espelho é a superfície que permite o reflexo. Tem uma forma, é emoldurado. Ornamentamos esse lugar onde nos revemos com coisas que não têm que ver com a imagem em si mesma. Quero com isto dizer que o património tem sempre uma fantasia que lhe está associado. É a maneira como queremos que o outro nos olhe.

 

O português, como é que se olha? Que imagem aparece reflectida no espelho?

Sinto a necessidade de fazer um preâmbulo que nos ajude a compreender como é que em Portugal se andou à procura de Portugal. E que protagonistas houve. E o que é que andaram a identificar. O Leite de Vasconcelos, no último quartel do século XIX, faz a síntese de várias disciplinas o olhares sobre o que somos, o que é que aqui há. O território, o modo de habitar, os repertórios que as pessoas traziam. Que palavras, que saberes, que práticas. O Orlando Ribeiro, marcante para uma geração a seguir, pondo o mesmo tipo de perguntas, já está a formular outras. Não era apenas a soma das coisas a reunir. A sua preocupação, nos anos 40, era tentar vencer a opacidade do regime. Que tinha uma velatura que cobria Portugal, embelezado, sem grandes fracturas, que eram perturbadoras se fossem identificadas como tal. Jorge Dias, que criou este museu, soma a este trabalho outras coisas: novas tecnologias, conhecimentos mais sólidos, e distanciado do procedimento mais corriqueiro, retórico e inerte do discurso do regime. Nos anos 60, outra personagem marcante, Lindley Cintra, que identifica a língua como coisa específica e de uma valia imensa.

 

Na cartografia que todos eles traçam, procura-se uma narrativa singular? Acima de tudo, o que nos distingue e diferencia.

Uma narrativa singular, que seja geral ao país, mas que o perceba na sua diferenciação. Ainda nos anos 60, dá-se um movimento de intelectuais do país exteriores às disciplinas. São cineastas, literatos, das artes plásticas. Vão à procura de um país que querem revelar.

 

Revelar através da ficção, da produção artística, e não da observação e das ferramentas de disciplinas como a antropologia?

Exactamente. Começam-se a descobrir criadores. A [ceramista] Rosa Ramalho. O Franklin Vilas Boas, que o Ernesto de Sousa descobre, escultor de Esposende, engraxador, analfabeto. Os escultores populares têm nome. Uma festa como a que Manoel de Oliveira filma em Curalha [Acto da Primavera, 1962] tem personagens e nomes.

 

Muito lá atrás, Bordalo Pinheiro cria uma figura, que volta a estar na moda, e que traduz quem somos: o Zé Povinho.

Quando o Bordalo cria o Zé Povinho cria uma personagem interpelativa, que subsume as manhas, a indolência, a subserviência e a revolta, a marotice, a constatação da dependência e a capacidade de se desviar do poder que o manieta. Há nele um olhar irónico sobre o que somos. Bordalo propõe um ícone, uma figura catalisadora. Dá uma plástica à matéria do que supomos que somos.

 

Estas figuras marginais tinham a caução dos intelectuais. Mas culturalmente há durante toda a ditadura e nos anos subsequentes uma reserva em relação ao fado. Amália sofreu isso na pele.

Foi um problema para todos intelectuais, de esquerda e direita – aquilo estava associado ao regime. Há críticas virulentas, como a do Lopes Graça, ou outras mais comprometidas, como a do António Ferro. Mas quem procura mais, percebe que não.

 

Desde os anos 60, as vagas de emigração permitem uma abertura ao exterior. Novas cores surgem para pintar e identificar o que somos.

Sim, há uma recomposição das populações. Portugal estava a ser outra coisa. O olhar sobre o património permite reencontrarmo-nos com aquilo que já não praticamos.

 

Já não usamos o arado. Mas ele diz-nos quem éramos quando o usávamos?

Sim. Penduramo-lo para ser visto. Quando, num museu de instrumentos agrícolas, o avô vem com o neto, para o neto aquilo é um território de alteridade. Não é um território de identidade.

 

Essa é a relação entre o avô e o neto. De permeio há o filho. Não raro, a geração seguinte tem uma profunda recusa desse lugar de onde vem, sobretudo se a imagem é pobre, suja.

Se é evocativa da miséria e do esforço. Mais tarde, quando é recuperado, quando se dá esse redescobrimento, nalguns casos serve de pouco. O património é a maneira como pegamos em algo que foi e o pensamos como futuro.

 

Volto ao Zé Povinho: durante décadas não quisemos ser aquilo. É preciso uma reconciliação com características que são nossas?

O Zé Povinho era uma figura boçal, que fazia o manguito, na prateleira de uma taberna. Foi ficando para trás. Mas frequentemente criando relações afectivas com as pessoas. Claro, pela via mais intelectual do pensamento sobre o país. Porque os seus protagonistas não corriam o risco de ser confundidos com uma ideia passadista. Esses elementos antigos começaram a ser recuperados nos anos 80 e a produzir auto-estima. Por mais que vejamos um efeito de repetição e monotonia nos museus rurais, porque se encontra o mesmo tipo de objectos em todos eles, àquela escala produz um efeito de auto-estima, de reconhecimento, e de descoberta de um lugar importante que as pessoas não atribuíam a si próprias. Porque era um tempo de coisas que não eram valoradas.

 

Há recriações a partir disso. Sobretudo nas artes plásticas e no cinema, e nos anos posteriores à revolução. A identificação e valoração acontecem logo aí.

Na obra da Graça Morais, por exemplo. A aldeia transmontana, os animais, os processos de trabalho, as crenças, os medos. No cinema, há os que vão para o norte à procura das raízes profundas, [filmam] o sortilégio da terra – o António Reis [Trás-os-Montes, 1976, com Margarida Cordeiro]. Vão buscar o passado. E depois vão para o sul, para a reforma agrária, à procura do futuro. Essa diversidade de Portugal é muito interessante. Os ciclos são curtos. Ciclos curtos de produção de ideias.

 

A partir dos anos 80, o país muda significativamente. A televisão e as estradas produziram, senão uma uniformidade nos modos de ser, uma uniformidade nos modos como nos reconhecemos. A televisão funcionou como um espelho onde todos se podiam mirar e onde podiam espreitar a casa do vizinho.

Sim. Mas criou um isolamento. Se cada um tem a sua [televisão], ficou mais confluído na sua casa. Os espaços de sociabilidade tradicionais alteraram-se. Até a circulação da palavra. Deixou de se falar, comenta-se eventualmente o que aparece no ecrã. As estradas foram um processo diferente. As estradas no interior [provocam] durante um período uma diminuição do isolamento. Vinham mais visitantes.

 

Além da alteração na paisagem, muda o quotidiano das pessoas que são servidas por essas estradas. As suas rotinas, o modo como se deslocam e interagem.

Notei em Bragança: a estrada alcatroada estava feita, havia transportes públicos, ninguém tinha carro, e já não fazia sentido andar a pé. Temos de reencontrar os caminhos, a fruição da Natureza, reabitá-la. Os caminhos públicos, os atalhos, em muito deste país estão a ser cobertos pelo mato ou a ser apropriados individualmente. No Alentejo frequentemente encontra um caminho de fruição pública com uma cancela. A dada altura a cancela é continuada pelas cercas de uma propriedade. É importante aprender o que é o território, reencontrar o prazer da actividade pedestre (o que os espanhóis fazem muito bem, com guias lindíssimos de percursos pedestres, atravessando serras…).

 

Em tempo de crise temos de recentrar-nos em quem somos e no que temos. Concorda?

Sou completamente dessa opinião. Sou da Beira Alta, onde vou com frequência, e tenho constatado que zonas que estavam ao abandono neste momento estão a ser cultivadas, sob a pressão da situação de crise. Pequenos talhões para fazer hortícolas, batatas, para consumo doméstico e eventualmente para vender os excedentes. Nos anos 80, por causa da subida brusca do gás, viam-se as mulheres, de novo, a ir às matas apanhar ramos para reactivar as lareiras.

 

Porém, esse regresso à terra parece uma tentativa desesperada, mas não amorosa.

Não. É preciso perceber que [a crise] pode ser um estímulo à criação de novas fórmulas de uso da terra, de cativar gente para essa actividade que, numa sociedade tradicional, era desqualificada, e que hoje pode ser retomada de outras maneiras. Nem sequer estou a falar da grande escala (isso sabemos que está a acontecer, nas grandes explorações de monocultura, da oliveira, da vinha, de frutícolas).

 

Pode dar exemplos de coisas que cada um de nós, à sua medida, pode fazer? Em relação à alimentação, por exemplo, que é uma área que tem estudado. As pessoas fazem passeios para comer uma especialidade, celebram a mesa e os seus rituais.  

Apesar de o programa, criado em decreto, da gastronomia como património nacional ter ficado dormente, tem havido coisas interessantes. Em geral com uma componente comercial – que é o que torna esta recuperação possível, por via dos restaurantes e da promoção dos pratos regionais. Recomendo um levantamento dessa sabedoria e práticas tradicionais, ligadas à sazonalidade do calendário, às culturas e aos modos de conservação dos alimentos. Dá vontade de ir saborear o gosto de uma terra, do que é local. Qual é o paladar que dali trago?

Com os alunos do ISCTE, durante anos trabalhámos as especialidades locais. Estão muito ligadas ao desenvolvimento dos transportes públicos, às linhas de caminho de ferro e camionagem.

 

Porquê?

Porque havia pessoas que vinham. E que queriam levar uma recordação. Normalmente as especialidades locais têm açúcar, porque é auto-conservante. As especialidades locais começam por não ter embalagem, depois embalam-se em papel cortado com tesouras em casa, às vezes em madeira ou em lata. A gastronomia é um campo fertilíssimo e estão a aparecer microempresas, às vezes de duas pessoas, um casal, que se associam para fazer compotas, conservas, licores.

 

Nesses casos, é o que é artesanal, caseiro – expressão que passou a usar-se com uma conotação muito positiva –, é essa quase exclusividade, que resulta de a produção ser limitada, que é valorizado?

É. E, se são cumpridos os preceitos devidos, a qualidade dos produtos originários com que é feito o preparado. Claro que há constrangimentos ao nível da legislação. O caso dos enchidos é para mim o mais emblemático. Um fabricante que tem um talho e que quer vender no talho enchidos produzidos em moldes tradicionais não pode fazê-lo. Tem de cumprir certo tipo de exigências, de equipamento e higiene, para cada tipo de enchido. Para morcelas, para chouriços, para alheiras. O que é incomportável numa produção de pequena escala. Tenho na cabeça um enchido que é o melhor do país (não é possível encontrar melhor…): tem de ser vendido discretamente. Porque não são cumpridos os critérios exigidos. Tudo o que possa ser feito para manter e valorizar estas pequenas produções deve ser feito.

 

Muito do que faz parte do nosso património gastronómico é calórico e eventualmente nocivo para a saúde. Vivemos num tempo em que se faz o culto da juventude e da beleza. Comer de modo desregrado deixou de ser socialmente aceitável.

Tive um professor em Paris que estudava a população de uma aldeia do sul de França. Pesava-os no Inverno e no clímax do trabalho no Verão. Havia uma variação, nalguns casos, de 20 quilos. No inverno, era a letargia, com os animais. Nas aldeias que visitei, os homens quase dobraram o peso. Porque deixou de haver actividade agrícola, o esforço diário.

Um dos grandes prazeres da comida é inscrever dias excepcionais e elementos de transgressão. Os enchidos transformaram-se num objecto precioso, que se come de vez em quando. Essa revisitação do sabor, que é tão marcante para a nossa identidade afectiva, que é tão importante pela maneira como a partilhamos com outros – essa comida sápida, que sabemos que só comemos em determinados momentos – cria elos de sociabilidade. Acontece com os enchidos como acontece com os fritos do Natal. Não podem ser eliminados. Seria um crime.  

 

Mas hoje comem-se sonhos e rabanadas de Novembro a Janeiro. Qualquer café de esquina os tem.

Mas em casa, não. Em casa não abre três bolo-rei. Abre um. A marcação do tempo, dos dias, pela gastronomia, é central. E é aqui que surgem diferenças fundamentais com os nossos vizinhos. Podem ser os mesmos produtos, mas os modos de preparar são diferentes. E o que aqui se come no dia de Natal, em Espanha come-se no dia de Reis. A produção de identidade pelo palato é das matérias mais ricas que nos põem em diálogo uns com os outros. Entre todas as classes sociais.

Em relação aos enchidos é diferente. A prática é muito condicionada pela ASAE e pelas leis da União Europeia – como seja a matança do porco em casa – e houve alterações profundas desde que se inventou a arca frigorífica. O desmanchar do porco e a conserva das carnes já não passa pelos processos do fumo e do sal, do frio e da pimenta (os quatro grandes princípios da conservação com recurso ao que havia disponível). O enchido era uma forma de conservar e comia-se ao longo do ano.

 

Apesar da festa que é estarmos à mesa, não somos um povo alegre. O fado é expressão disso.

Não acho que sejamos um povo alegre. Acho que somos um povo que não chegou a descobrir-se completamente. Não nos encontrámos ainda. Há uma dimensão de incompletude em nós. Estamos agarrados a coisas do passado de que não gostamos totalmente, mesmo que lá encontremos elementos de auto-complacência, eventualmente de heroicidade. Vivemos como se não nos conseguíssemos completar.

 

Ocorre-me novamente a relação entre o avô e o neto; é o filho que tem dificuldade em completar, em lidar com o passado?

Claro. A armadilha do discurso do património é esta: é importante pegar nas coisas que tivemos para as transmitir às gerações futuras. Mas fica sempre o interregno daqueles que somos nós, e que estamos a fazer o processo. E o presente? E nós? Anda sempre alguém no presente a fazer recados, a transportar do passado para o futuro? Como é que se sai disso? Com mais ironia, com mais crítica, com mais distanciamento. E pensando o futuro connosco lá dentro, estando a fabricá-lo – estando a fabricá-lo no presente. O futuro fica indissociável disso como projecto.

 

Pode elencar produtos distintivos do que Portugal é?

No campo da gastronomia, destacaria a doçaria portuguesa. Pelo que tem da história social e política do país, relacionada com a extinção dos conventos, com o que resultou da fartura do açúcar e dos ovos. É uma especificidade clara do que conheço das doçarias no contexto europeu e é algo em que nos reconhecemos (numa montra de uma confeitaria, em casa, quando visitamos familiares ou amigos e vamos encontrar as mesmas coisas, talvez feitas de outra maneira).

Acho que devíamos dar uma dimensão mais visível (já acontece nos supermercados, por exemplo) aos enchidos e ao modo de os preparar.

 

Fala amiúde da matança do porco, dos enchidos como marca da nossa cultura. Porquê?

Porque nos cruza com um tempo relativamente próximo, de relação com o animal, que é central para pensar a sociedade tradicional. Esta relação permite reflectir sobre as religiões, sobre o que nos separa do judaísmo, dos muçulmanos. Este animal, de repente, configura um território cultural e civilizacional. Permite pensar a família, a economia doméstica, a cultura rural – assim como a doçaria está ligada a uma história sofisticada, de uma outra classe social, das instituições.

 

A terra e o mar: elementos nos quais nos devemos concentrar? Depois do muito que foi destruído.

Se nos separamos do solo, do chão, não nos percebemos mais. Perdemo-nos. E o montado e o sobreiro distinguem-nos a nível económico de uma forma poderosíssima.

 

A cortiça é uma matéria-prima de grande importância. Fala disso?

Sim. Houve uma hesitação a nível internacional – talvez o plástico resolva a questão das rolhas das garrafas… E agora pondera-se voltar à cortiça.

O montado tem enfermidades, perigos. De todo o tipo. Da expansão urbanista, especulativa, que o derruba. Ou de pragas, doenças que o ameaçam.

 

O vinho e o azeite são produtos essenciais se se pensar numa aposta no que é nacional?

Acho que sim. Em relação ao azeite há uma informação alarmante: a de que está a ser levado para fora e vendido como azeite de outro país. O vinho foi talvez o produto onde se foi mais longe, onde mais se inovou.

 

Existia já uma tradição, uma porta para o exterior, com o vinho do Porto.

E depois apostou-se nos vinhos de mesa. Em relação a outros produtos artesanais, sou mais comedido. É obvio que há coisas notáveis ao nível do têxtil, mas são produções fragmentadas.

 

Nos produtos que apontou, cortiça, azeite, vinho, a relação com a natureza é central.

Mas podemos falar de outros. Da nossa arquitectura, campo notável de há muito tempo. É de uma força, uma dimensão, uma diversidade… Há um campo que não associaria a Portugal: o da criação artística. O criador não tem de ser associado ao país, por mais que nos envaideça.

Se pensamos em Paula Rego, ainda que ela fale de Leite de Vasconcelos, como aconteceu numa determinada fase da sua carreira, como importante no seu discurso (porque recolheu um imaginário que lhe diz muito), não estamos a falar de uma artista portuguesa?

Estamos a falar de uma artista. Como podemos falar do Pomar ou de outro qualquer. Também não me atrai colocar nesse plano o cinema. O Manoel de Oliveira, esse protagonista, de um olhar atento, é uma referência no cinema mundial, como é no nosso cinema.

 

Está a dizer que não se confinam ao seu país. A língua portuguesa é um produto no qual devemos investir?

Totalmente. E agora, pelo facto de passarmos todos a usar aquilo que no tempo das descobertas se chamou a “língua geral” – aliás, o português foi uma língua geral de comunicação, às vezes misturada com línguas locais, como aconteceu no Brasil, com línguas indígenas, ou no sudeste asiático –, uma língua geral que por natureza se empobrece…É um risco. O acordo ortográfico tem implicações que vão, por homeostase, encontrar o seu acerto. Simplifica-se, perde-se, mas ganha-se a força de uma língua geral.

 

Está a pensar nos 200 milhões de brasileiros e nos 20 milhões de angolanos, falantes do português, quando fala do que se ganha? Na força numérica e económica que têm estes países emergentes.

É. A língua é central. Todo o investimento que possa ser feito é decisivo. O facto de haver grandes romancistas ou grandes poetas numa língua é um veículo importantíssimo na sua divulgação. Tive um professor em França que, por causa de Fernando Pessoa, andava intensamente a estudar português. E na altura já estava traduzido em França.

 

Acha que foi decisivo que Saramago tenha feito o discurso de aceitação do Nobel em português, ao contrário de Vargas Llosa, que o fez em inglês?

Aí é mais uma dimensão política e simbólica. Não dou muita importância. Dou mais importância ao facto de em certas instituições internacionais, como a Unesco ou a União Europeia, um político falar numa língua veicular e não no português.

 

Imagino que lhe perguntem no estrangeiro como é Portugal e os portugueses. O que é que responde?

Falo de um país que não teve a capacidade de desabrochar na sua totalidade. Um país que, sendo pequeno, foi marcado por fracturas sociais enormes. Bordalo teve a intuição certa ao caracteriza-lo: o Zé Povinho encontra a satisfação maior nas cumplicidades que, internamente, com o seu grupo, produz. Significa: identidades muito exclusivas, paroquiais. Não houve abertura nem capacidade de expansão de ideias e de partilha de ideias. Há um mecanismo de delegação nos outros. Nos que estão na cidade, nos que definem a política, nos que pensam, nos que escrevem nos jornais. Os outros. Esta figura perturbadora, perigosa, constante, de que ouvimos falar – eles. Esta palavra – eles – vai levar o país à miséria.

 

Quando é que usamos o nós?

Boa pergunta. Não sei. Talvez agora usemos mais vezes o nós porque temos uma referência à Europa. Uma referência a outros que estão pior ou quase tão mal como nós (os gregos…). O nós surge como uma tentativa de nos identificarmos como um todo nesse conjunto.

 

Demarcando-nos do conjunto.

Sim, é um nós que constata a nossa existência em perigo, em risco. A referência ao nós surge em momentos eufóricos, exaltantes. No futebol. Em relação a um jogador de futebol que é o melhor do mundo.

 

Somos um povo sempre à procura do seu messias?

Não é à procura: é um povo que se reencontra nesses messias que vão aparecendo. Ele não se encontra em instituições que sejam uma referência para todos – como a de que todos pagam impostos. Não é essa a cultura.

 

Pelo contrário. O Zé Povinho é o que tenta escapar disso e que se sente orgulhoso se o consegue.

Claro. Há um défice do político em cada cidadão, em cada pessoa. Quando isso existe, esse povo não se encontrou.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2011