Joaquim Pires de Lima
Joaquim Pires de Lima, advogado. O filho de um homem do Regime que virou à esquerda e tresmalhou. O estóico que venceu as limitações do físico e não limitou a vida a uma cadeira de rodas. A incrível história de um homem que viveu de perto a História portuguesa das últimas décadas.
A casa: um rés-do-chão em Cascais. O trinco abre-se e ele está à secretária. A sala está mergulhada numa quase penumbra. O seu piano preto está à esquerda, quem entra – fácil de alcançar. A secretária onde nos sentamos, como quem se senta num sofá, amontoa papéis, livros, remédios. Os comandos estão por perto. Tiger Woods na televisão.
Em volta. As paredes estão revestidas a quadros. Um desenho a lápis que o amigo Pomar fez de Quiqui – Joaquim sempre foi Quiqui. Um corpo de criança, uma cabeça de gente adulta. Os auto-retratos: bolachudo, como todos são na família. Igual à mãe, num quadro à esquerda, num desenho à direita. O cabelo em desalinho.
Passa o dia neste rectângulo, apesar da escada e do dispositivo para a cadeira de rodas.
E entre os livros há os seus álbuns. Onde estão condensados retratos que fez dos amigos: Vera Jardim, Manuel da Fonseca, João Lobo Antunes. Jorge Sampaio, Jorge Sampaio, o amigo e o presidente. Também há os não amigos, o Papa e a Madre Teresa, Arafat, Saddam, Santana Lopes com a cara verde.
Há nisto uma amostra de mundo. Arte, música, cultura. A família omnipresente. A política e o tempo em que esse foi um modo de vida. As memórias, os nomes, o conviver com este e com aquele, o tempo em que ele era ouvido. O tempo em que foi advogado de Luandino Vieira, em que o Crespo o chamava a Moçambique, em que acusava o Estado português de violar os direitos humanos em Estrasburgo.
É o segundo de oito irmãos. É uma figura iconoclasta. Não fica nada por dizer.
É um Pires de Lima diferente dos outros. Essa originalidade começa por ser uma afirmação em relação ao físico e às limitações que o físico lhe trouxe?
Queria deixar vincado que é espontâneo e fruto de uma visão do mundo que toda a família seja de direita e eu de esquerda. É uma família que tem imensos problemas entre os seus membros, havendo mesmo irmãos que não se falam. Sou talvez o tio mais estimado pelos meus 19 sobrinhos. Todos me confidenciam coisas inimagináveis. O que se verifica também com os três filhos da minha ex-mulher, que me falam como a um pai. Não sou de esquerda por alinhar com um partido político – nunca fui do PC. Politicamente sou pouco activo.
Agora.
Agora. Mas quando era, era fora dos carris. Sempre tive a ideia de não pertencer a nenhuma carneirada. Na minha família, os núcleos familiares são vistos como rebanhos. Há um pai e uma mãe, os filhos, que depois casam e têm mais filhos; Natal já se sabe com quem é que se passa, o Ano Novo também. E constituem grandes dramas viver um homem com uma mulher, casar fora da Igreja e coisas assim. Passei por tudo isso. Foi contra isso que lutei.
Como compreender a originalidade com que, nesse meio, vê o mundo?
No fundo, é uma tentativa de recuperar uma liberdade que me foi amputada aos dois anos. A partir dos dois anos tive dificuldade em dizer “Não” a alguém que me compreendesse bem, a alguém que dissesse “sim”, que me desse uma ordem com amor, com compreensão. Durante os dois anos e meio em que estive internado no sanatório, se queria obedecer, tinha que obedecer às enfermeiras. A minha mãe e o meu pai estavam a 300 quilómetros de distância.
Como é que resumiria a sua história?
Durante dois anos e meio fui uma criança feliz. Sou o segundo filho.
Alguma recordação desse período?
Não me recordo. Mas há fotografias. Resulta das fotografias que eu era maior e mais forte do que o meu irmão mais velho. Aos dois anos e meio, de repente, comecei a andar de gatas. Doenças não faltavam, e não se sabia a origem. Tive uma tuberculose óssea, que me atingiu as vértebras. Se fossem as cervicais seria dramático: corresponderia a uma tetraplégia, e assim foi uma paraplégia. Fiquei imobilizado; era a única maneira que se conhecia de não ficar com uma malformação para toda a vida. A chamada corcunda. Fui internado.
Como reagiu a criança que foi?
Sei que reagia mal. Contaram-me episódios: como arrancar à dentada um dedo a uma enfermeira. Atirar um bloco de madeira a um outro doente na enfermaria. Dizer os piores palavrões de que me lembrava. Aos cinco levantei-me, meteram-me num colete de gesso até ao pescoço. Comecei a aprender a andar a pé. Os meus pais foram buscar-me a Francelos, Vila Nova de Gaia.
Os seus pais ainda viviam em Barcelos? A família é do norte.
Os meus pais tinham vivido em Barcelos. O meu pai tinha exercido funções na Câmara de Barcelos, depois Aveiro, depois Setúbal, depois Braga. Foi sempre autarca. Ser autarca era ser político. Hoje também é, mais era mais. Era um eleito, não direi da União Nacional, mas de Salazar e das relações de Salazar.
Sentia-se um eleito?
Sim, e eu testemunhei várias vezes que ele era. Quando já estava na Faculdade de Direito, ele mandava buscar-me às oito da noite e [a seguir] passávamos pela Estrela, pela casa de Salazar. Várias vezes vi o Presidente do Concelho, com a sua manta aos pés, que se levantava para me falar; e o meu pai levantava-se para sair, para irmos para a Parede, onde vivíamos. Quando o meu pai saiu de Setúbal foi para Director Geral do Ministério do Interior; era uma espécie de sub-Ministro do Interior. O que dava para controlar toda a administração pública. Tinha uma relação particular com o Prof. Marcelo Caetano.
E o senhor, que relação tinha com Marcelo, com esse mundo?
Tinha com Marcelo uma relação íntima. Por simpatia. Ele vivia em Carcavelos. Sofria muito porque a mulher era deficiente. Humanamente era uma pessoa sensível. Preocupava-se com a minha tendência para alinhar com a esquerda política, dando a mão a pessoas revolucionárias. Tenho várias cartas dele, de fim de vida, dizendo que gostaria que eu não pisasse…, que eu não tomasse actividades de natureza política perigosa. O que ele menos desejaria era que me acontecesse alguma coisa, pela amizade para com o meu pai e para comigo.
Fale-me da relação directa com ele.
Depois de ser advogado trabalhei com ele num processo. Nunca fui aluno dele, fui aluno do Marques Guedes. Marcelo estava no Governo quando fui aluno de Direito. Fui dirigente académico. Foi uma fase em que o movimento académico foi notável. Os nomes dos senhores que hoje estão na política, no PS, são os dos líderes do movimento estudantil dessa época. E outros, como Jaime Gama e Medeiros Ferreira, também estavam nesse movimento. Sofreram a prisão e a perseguição da PIDE. Eu, nem tanto.
Porquê?
Por causa da posição do meu pai.
Não era vexatório, para si?
Não. Evitava expor-me demasiadamente. E tinha acesso, para efeitos de diálogo e para evitar a repressão, a pessoas que estavam acima do meu pai. Por exemplo, ao Ministro do Interior, o Arnaldo Schultz. Eu pegava no telefone e ligava ao Schultz quando havia bronca. Pedia-lhe para não fazer isto, para fazer aquilo. Na grande revolta académica que houve no Campo Grande, fui metido numa cabine telefónica pelos estudantes a falar com o Schultz, e evitei grandes sarilhos. A PIDE ainda não estava totalmente autónoma do Ministro do Interior. O meu pai é que já não tinha mão em nada. Se eles me quisessem prender, prendiam. E prenderam, por duas vezes.
Pergunto se era vexatório porque parecia fazer um certo jogo duplo. Por um lado era de esquerda e militava com os outros. Por outro, tinha as costas quentes.
Tinha favor. Mas isso nunca se traduziu para mim numa diminuição. Comportava-me com isenção. Nunca aproveitei o facto de ter o parentesco que tinha para me proteger. Pelo contrário. Quando o meu pai me foi buscar a Caxias, no dia seguinte, todos os que estavam presos comigo estavam cá fora. Quando fomos presos no Forte de Elvas, cinco ou seis, na tentativa de assistir à autópsia do General Humberto Delgado, viemos numa carrinha para Caxias, onde passei a noite. No dia seguinte estavam todos cá fora, oito dias depois estava o Mário Soares.
Como foi a sua estada prisão?
Estive dois dias preso. Quando saí a primeira coisa que fiz foi dirigir-se ao presidente da Ordem dos Advogados, procurei gente ligada ao Governo que me parecia que podia influenciar. Gente como o Antunes Varela, o Ministro da Justiça.
Aí, interveio o filho do seu pai, e não o esquerdista Pires de Lima. Falava a pessoas que tinham relações de amizade com a sua família.
Havia uma cisão na família, entre o meu primo Fernando, que tinha sido Ministro e era professor em Coimbra, e o resto da família. Eu era amigo do Fernando. (E o Varela dependia muito do Fernando. Foi o Fernando que deu a mão ao Varela. O Varela era filho de um sapateiro). No período em que tive o primeiro balanço político e os problemas com a PIDE, recorri a pessoas do Governo. Fi-lo com o conhecimento dos mais directos amigos, que eram de esquerda. Essa esquerda a que estava mais ligado era católica, progressista, como o João Bénard e o Alçada [Baptista]. Convivíamos muito. O meu escritório era perto da Livraria Morais, onde levava a vida.
Como era quando o seu pai o ia buscar à prisão?
Da primeira vez que estive preso foi buscar-me à António Maria Cardoso. Para me torturarem, bastava que não me pusessem uma cadeira…, não me aguentava nas pernas.
Nessa altura andava.
Com muletas. Recordo-me da viagem que fiz de carro: eu vinha à frente e todos os outros vinham no chão, atrás. O [inspector] Sachetti veio à sala buscar-me, invocando a sua amizade pela família, o ter andado comigo ao colo, e o desgosto que eu tinha dado ao meu pai por ter-me metido em política. O ser advogado no caso [Humberto] Delgado, para ele, era política. Vim então a uma sala onde estava o [director da PIDE] Silva Pais e o meu pai. Penso que não cumprimentei nem um nem outro.
Não falavam?
Conforme. Se estivesse sozinho com ele, falava. Se estivesse com gente daquela natureza, não o cumprimentava sequer. Ele não se aproximava e eu também não. Não era o filho que se aproximava do pai para dar um beijinho.
Quando é que a vossa relação começou a degenerar?
Oscilou muito, sempre. Estive muitos anos sem falar com o meu pai. Quando me casei sem ser pela igreja, em 1967. Depois divorciei-me e logo a seguir veio o 25 de Abril. Eu tinha tido duas participações terríveis em plenários – o caso da [Revolta de] Beja e o dos Estudantes, em 1965; nessa altura ainda estava em casa dos meus pais. Em 1967 saí, vim para esta mesma casa onde vivo hoje. Voltámos a falar em 78, 80. Por isso estive uns bons 10 anos sem falar com o meu pai. Também não falava com a minha mãe.
Temos à nossa volta desenhos que fez da sua mãe. São iguais. Sou levada e pensar que tinham uma relação especialmente forte, identificativa.
Eles eram totalmente diferentes um do outro. Tinha uma relação mais fácil com a minha mãe, mas a relação difícil que tinha com o meu pai era compreendida por mim – eu mantinha-a, apesar de tudo. O meu pai sofria com o meu problema e sacrificou-se muito para que nada me faltasse enquanto eu estava paralisado. Depois dos sete anos, estive mais sete ou oito anos na cama. E foi aí que estudei, com professores particulares. Caríssimos. Numa altura em que a economia familiar não era pêra doce. O meu pai subordinou a comodidade e as facilidades materiais à minha cultura. A primeira vez que fui ao estrangeiro foi com ele.
Que idade tinha?
Dezassete anos ou 18. Foi um Congresso de Ciências Administrativas, onde esteve o Marcelo, em Madrid. Enfrentava o meu pai. Os meus irmãos praticamente não se sentavam à mesa com ele. Eu esperava e sentava-me com ele à mesa.
Nunca lhe teve medo?
Nunca. Nem pouco mais ou menos.
Ele tratou-o com especial deferência por causa da deficiência física?
Não.
O seu petit nom é Quiqui. Quiqui por ser um menino especial?
Fui tratado assim sempre, pelos meus irmãos e pelos meus pais. QuimQuim, Quiqui. O pai sempre me tratou assim. Nos últimos anos, já nos dávamos.
Mesmo que estivesse envolvido politicamente.
O meu pai sabia que eu estava metido em política. Veio no jornal a minha ida a Moçambique, [depois do 25 de Abril]; o [Victor] Crespo chamou-me lá, depois chamou o [Jorge] Sampaio. Quando havia boa disposição, o meu pai tinha a sua ironia. “Então, estás satisfeito? Isto agora está melhor!”. Quando estava mal. Eu não lhe respondia. Nem ele esperava que eu lhe respondesse.
Estavam sempre nessas ferroadas.
Frequentes vezes. As injustiças que se cometeram depois do 25 de Abril, mesmo em relação a pessoas que não tinham funções políticas, não as nego. Foi um mal desnecessário. O meu pai sofreu isso. Teve uma reforma muito baixa. Não posso dizer que me sentisse bem estando a ganhar três ou quatro vezes mais do que ele numa profissão liberal. Ofereci-lhes a primeira televisão a cores.
Explique melhor o ritmo da relação com o seu pai.
Durante a adolescência, o meu pai foi o meu companheiro de solidão. Para o mal e para o bem, era a pessoa que estava perto de mim. Quando chegava, mudava-se para o meu quarto, e era ali que trabalhava. Quando recebia amigos, eu tinha categoria para assistir às conversas. Tudo isto até aos 15, 16 anos, quando dei os primeiros passos.
O que motivou essa melhoria?
Uma reconstituição dos ossos e o aparecimento de antibióticos.
Como era a sua vida interior nos anos que passou na cama?
Tinha o maior interesse em estudar. Tinha à minha volta os meus irmãos, que me distraíam e irritavam sempre que podiam. Fora disso, não havia grandes alterações. Quando estava na cama, em tratamento, frequentava uma praia entre a Praia Grande e a zona de S. Pedro. Sujeitava-me ao solário, a horas certas de banhos de sol. Ali ficava, no tabuleiro.
Tabuleiro?
Umas macas, com rodas. Os meus irmãos andavam na areia, na praia. Recordo esse tempo como um tempo em que não sofri especialmente. Comia na cama, davam-me de comer. Tinha condições para viver bem, tinha apoio do pessoal. A minha mãe sempre teve empregadas domésticas em quantidade; vinham raparigas do Minho, que ganhavam mal e porcamente, e que a minha mãe conhecia de toda a vida. Educava-as, tratava-as como família.
Era falador?
Sempre fui muito falador, brincalhão, tocava gaita de beiços, acordeão. A minha mãe procurava que me distraísse o mais possível. Tive uma professora de violino que foi uma desgraça. Quando me levantei e pude optar comecei a ter aulas de piano. Somos todos bolachudos e parecidos com a minha mãe; o mais parecido com o meu pai é o meu irmão Zé; o mais parecido com a minha mãe é o meu irmão António. De feitio também.
Como era o feitio da sua mãe?
Muito bem disposta. Sempre a rir ou a chorar. Era uma pessoa melodramática. Preenchia o espaço. Era 50% espanhola. Era uma casa cheia, com a avó, as tias. Tinham uma quinta no centro de Barcelos.
É temperamental como a sua mãe?
Penso que não. Não sei se por pudor. As crises de gritos, de nervos são menos frequentes nos homens que nas mulheres. A minha mãe tinha crises muito grandes. Passavam por desmaios. O que a deixava neste estado? Um acumular de preocupações, problemas. Porventura o drama maior era eu estar imobilizado. Admito que tenha sido o problema mais grave que teve em toda a vida dela. Nunca deixei de dar esse desconto, ao meu pai e à minha mãe. O meu pai quando estava a morrer disse-me que compreendia então o que eu passei, o que eu tinha sofrido.
Mas já se tinham reconciliado, quando lhe disse isso.
Eu não era castigado. Não tinha razões para cortar com a família. Cortei porque o ambiente familiar não era propício à minha liberdade. O que eu queria fazer cá fora – tocar, conviver com raparigas, juntar-me – com os meus pais não se admitia. “Se tens respeito por essa senhora vais à igreja e casas-te com ela…”. Quer dizer, o respeito pela senhora equivalia a ter de lhe dar o tratamento de esposa, asseado, passando pelo padre. Outra coisa era ir à missa ou não ir à missa. Fui à igreja da Parede até ao dia em que pude deixar de ir. A partir dos 16 deixei de ir sem dar satisfações. Não ia, não me confessava, não comungava. Todos os meus irmãos e irmãs eram de comunhão semanal, pelo menos.
Disse que talvez fosse a grande preocupação da sua mãe. Isso constituiu um peso, que carregou a vida toda? E uma certa culpabilidade.
Sempre fiz, desde miúdo, e em graúdo também, as contas ao orçamento da casa dos meus pais colocando-me no meio. Procurando compreender a minha posição nesse orçamento. Aos 10, 12 anos tinha essas preocupações. “Quanto é que o pai ganha ali, quanto ganha acolá?”. Não era um sentimento de culpa. Mas sabia quanto é que os meus pais gastavam com o meu ensino. Gastavam o mesmo que gastavam com o ensino de quatro ou cinco irmãos.
Nos períodos de zanga teve vontade de ressarci-los disso?
Nunca chegámos a esse nível de zanga… Quando deixei de falar com o meu pai foi a propósito do casamento fora da igreja. Não vinha muito a propósito invocar os encargos que tinha tido comigo. Não podia insultá-los dessa maneira. Há limites para tudo.
Ter-se envolvido com a política, num lado oposto ao do seu pai, era para ele sentido como uma forma de insulto?
Não creio. No último momento de vida, em que me disse: “Agora é que te compreendo”, deu-me a impressão que percebia o meu grito de liberdade mesmo no meio da opressão política. O meu pai nunca considerou um insulto ter-me dedicado a certos processos políticos. Eu estava no julgamento do Assalto ao Quartel de Beja, no julgamento dos Estudantes, no princípio dos anos 60, e ia a casa. Era advogado de um jovem conhecido, o Salgado de Matos. [Outros jovens desse processo]: o Fernando Rosas, a Antonieta Alves, o filho do Mário Neves, o Alfredo Caldeira. Teriam menos seis, sete anos do que eu. O Salgado de Matos era aquele de quem tinha preocupação.
Salgado de Matos era um católico progressista.
Foi ele que arrastou aquele bloco de testemunhas, que serviram para outros. Como dirigente da JUC, teve o privilégio de lançar no seu rol de testemunhas membros do clero, Bénard da Costa, Alçada Baptista, Sophia de Mello Breyner.
Nessa altura andava com muletas. Como era em julgamento?
Sempre falei sentado. Ter cadeira de rodas ou não, era indiferente. Ia até ao lugar, acompanhado ou não, com quem me levasse a toga e os livros.
A sua atitude era provocadora. Olhavam para si como “o maluco”?
Estou convencido de que sim. Os juízes quando falavam comigo não me davam desconto porque me consideravam privilegiado intelectualmente. Não sei se era um elogio para me compensar, se era para preparar a conversa. Eu comportava-me bem, de uma maneira geral, nos tribunais. E justificava a razão por que estava a falar sentado. Eles sabiam. Conheciam mais de mim do que eu. Tive alguns episódios humorísticos… Em Beja, um magistrado perguntou-me o que é que eu preferia: pedir ao notário que dispusesse de uma sala cá em baixo ou chamar os bombeiros para subir de maca ao terceiro andar, onde funcionava o tribunal. Respondi-lhe que me era indiferente; se o juiz fosse também de maca ao meu lado, que podia ser lá em cima!
Nunca quis que olhassem para si como um coitadinho.
O que quis dizer ao juiz foi que tivesse juízo. Ele riu-se, levou aquilo para a brincadeira. Não eram pessoas destituídas de senso.
Investiu na componente intelectual, numa afirmação a esse nível. Como se essa fosse a coluna principal da sua vida e desviasse, ou apagasse, o peso da diminuição física.
É legítimo que me acusem de fazer show off com as minhas qualidades intelectuais ou artísticas (estas não são tão notáveis assim, embora para mim sejam mais notáveis que as intelectuais). Se quis desviar a atenção das deficiências físicas e colocar-me em pé de igualdade, ou mesmo acima, das pessoas com quem me estava a relacionar? Não penso. Tirando o caso do ceguinho que toca bem violino, o que sei de música não tem que ver com estar numa cadeira de rodas. É certo que quando estava amarrado a uma cama e obrigado a tratamentos – e ainda hoje assim é, acabei por cair no mesmo buraco – procuro ultrapassar esses limites com a arte, com a cultura. O que sei da música, verdadeiramente, foi sozinho que aprendi. O que aprendi com o professor foi a sentar-me no piano e a não pôr os dedos uns em cima dos outros.
Foi um aluno de excepção?
Na faculdade, não. Era aluno voluntário, não ia às aulas. No primeiro ano tive 14, no segundo 16, no terceiro tive dificuldade porque começava a meter-me na política. Acabei com média de 15 ou 16. O meu curso foi o melhor daqueles anos. Era o Miguel Galvão Teles, o Vera Jardim, o Brás Teixeira (que, coitadinho, já foi…); o Sampaio era mais fraco, tinha média de 12, 13.
Desse grupo, Jorge Sampaio é o seu amigo mais próximo? Tem expostas fotografias e pintou retratos dele.
Agora, talvez seja. O meu amigo mais próximo é o Vera Jardim. A última vez que o Vera Jardim esteve aqui em casa fui para o piano tocar Haydn. Ele comoveu-se. Eu estava comovido de ele estar comovido.
Teve uma educação religiosa. Quando é que descreu?
Não deixei de acreditar quando deixei de praticar. Achei que a prática não era necessária para cumprir com a minha parte e ter um lugar no Céu. Com o tempo, comecei a descrer. Embora reconheça a necessidade de acreditar numa coisa qualquer que preencha esse espaço. Ainda não consegui encontrar nada. Continuo a não achar lógico que tudo isto não tenha uma ordem, uma regra, não tenha ninguém a comandar. Mas não sei qual.
Recentemente pintou uma Última Ceia. Algo debochada.
Já é a gozação… Neste momento sou um ateu puro. O medo da morte é relativo. Isso alterou muito a minha vida.
Essa amarra, quando foi cortada, deixou-o ainda mais livre.
Sim, mas é um problema. A liberdade total não é um bem em si. Temos que ter um caminho que nos leve a algum lado. Temos de ter uma motivação para estar neste mundo. Os sacrifícios, as chatices são de tal ordem que a gente sente-se no direito de pôr termo a isto. Suicidando-se.
Quando é que pensou suicidar-se?
Várias vezes, em momentos diferentes, e por razões diferentes. Desde os 15, 16 anos. Todas as limitações me apontavam isso. A prática de deporto, viajar sozinho, auto-determinar-me. Consegui ultrapassar algumas barreiras e com isso adiei o problema. As pessoas à minha volta conseguiram convencer-me de que não estou tão longe da liberdade de escolha. Não estamos tão longe uns dos outros quanto eu possa pensar.
A cada um a sua cruz, os seus constrangimentos?
Sim, sim. Isso ajudou-me a viver. “Onde é que tu vais, com essa falta de Fé?”. Não foram os meus pais que me interrogaram assim; a religiosidade deles era relativamente fácil de responder. Nem nunca acreditaram que a minha falta de Fé fosse tão profunda.
Era também a pergunta que se fazia – para onde vou?, o que é que justifica isto?” –, com ou sem Fé.
Pois. Para todas estas coisas era suposto haver uma compensação. Mas vivo com gosto e de momento não se me põe a necessidade de pôr termo à vida. O que é que queria da minha vida? Foi uma pergunta que fiz cedo. Quis deixar de ser um peso para a família. Quando fui para a faculdade, e com o sucesso que tive, pensei: isto serve. Tinha necessidade de me afirmar como jurista. Na família havia um grande número de juristas.
Começou a trabalhar, a ganhar dinheiro, a gozar a vida. Uma compensação?
Eu tinha uma grande atracção pelo que a vida me pudesse trazer. Era uma compensação para aquilo que não tinha vivido. Conhecia pessoas que tinham uma raiz em Paris, por razões políticas, como o Júlio Pomar, o Fernando Echevarría, o José Augusto Seabra. Mal acabei o curso comecei a viajar, a ir a Paris duas e três vezes por ano. Não para estar três ou quatro dias e gastar as reservas, mas para fazer um esbanjamento de dinheiro escandaloso. Ganhava bem cá e gastava melhor lá fora.
Gosta de carros e de velocidade. É uma urgência em viver? A excitação do risco?
Não era bem isso. No fim, era a liberdade, o despenteado, o cabelo comprido. Uso cabelo comprido desde cedo. Descurei o cortar o cabelo. E no tribunal juízes amigos faziam-me assim [gesto de cortar]… Para ver a que ponto vai a amizade e a compreensão. Havia uma certa ternura na nossa relação. Nos julgamentos políticos, às vezes, extremavam-se posições, mas havia por detrás uma relação de respeito. Senão, não me tinha aguentado. A maior parte da velhada do plenário era gente de sensibilidade.
Foi com esses que teve de lidar quando defendeu as vítimas do caso Ballet Rose?
Não. As vítimas do Ballet Rose não foram defendidas, nem os arguidos acusados, numa audiência pública. Tudo se manteve numa base secreta. Não foi feita prova de que, algum deles, alguma vez, tivesse violado uma rapariga. Todo o processo dos Ballet Rose é um contra-censo.
Porquê?
Tudo começou quando uma moça dos seus 16 anos me procurou, com a mãe e o namorado, porque estava a ser apertada na Polícia Judiciária para prestar declarações. Acerca das razões que a levavam a casa de uma senhora modista, que era tida como uma desencaminhadora de menores. E para identificar os indivíduos que estavam relacionados com essa senhora. Tinha receio que a levassem presa. Isso levou-me a telefonar ao director da Polícia Judiciária, com quem tinha boa relação, bem com ao Antunes Varela. Provoquei um grande escândalo dizendo que com a minha cliente, à PJ, ia eu! Não conhecia o instrutor do processo. Mais tarde detectei quem ele era; era um que estava ligado ao assassinato do [Humberto] Delgado, o agente Parente. Quando soube, denunciei-o. Obriguei a miúda a dizer os nomes de toda a gente. Ficou a saber-se que desde os nove anos andava a ser aproveitada por indivíduos como o Conde Monte Real, o Conde Caria, o Conde da Covilhã, uma data de gente da alta sociedade.
Com aproveitada quer dizer abusada sexualmente?
Sim. Se tinham relações completas, isso não averiguei. A PJ, o que queria, era que ela não dissesse os nomes. “Quero que ela dite para os autos o que ela me disse a mim”. Quando se soube a idade das meninas envolvidas, percebeu-se que isto não era um processo de Ballet Rose à maneira do caso Profumo [Inglaterra], cuja mais nova tinha 17 anos, mas um processo de corrupção de menores, com impúberes de nove anos. E miseráveis. Filhas de mulheres-a-dias. Eu queria que a PJ instaurasse um processo-crime contra os corruptores de menores e retirasse o nome Ballet Rose da história. Foi isso que o Mário Soares e o [Francisco] Sousa Tavares não perceberam. O caso veio em jornais estrangeiros.
Como é que acabou?
Para abafar o caso, uma vez que estavam metidos no assunto indivíduos como Correia de Oliveira, o Quintanilha Mendonça Dias (que era Ministro da Marinha), acharam que, se não era Ballet Rose, também não era nada de grave. Todos tentaram aliciar as meninas, mas não consumaram. Elas não eram susceptíveis de serem ofendidas. Não passou de uma tentativa de estupro e todos prestaram caução de boa conduta. Para que não houvesse punição dos arguidos. A rapariga [que desencadeou o processo], continuou por aí. Já depois do 25 de Abril perguntou-me se tinha direito a uma indemnização. Uma oportunista.
É como se o sistema ao qual o seu pai pertencia fosse posto em causa, de modo chocante?
Não estava preocupado. O meu pai era alérgico a tudo o que dissesse respeito a ofensas à honra de mulheres, de crianças. Não temi que houvesse uma dúvida. Mesmo à esquerda, era impossível que nos acusassem de colaborar numa corrupção de menores.
Porque é que a determinada altura se retirou e, para usar uma expressão sua, preferiu “sopas e descanso”? Concentrou-se na música e na pintura.
Corresponde a uma altura em que me desiludi com a política. Direi que foi quando o [Salgado] Zenha morreu. Foi o último membro da oposição que eu tinha como líder válido. Comecei a achar que a política não tinha mais nada para me dar, que a minha actividade na política não iria enriquecer o país. Devo dizer que isso coincidiu com a morte dos meus pais, sobretudo da minha mãe; e com dois grandes sustos que apanhei, principalmente o primeiro, um cancro na próstata em 2002. Vi entrar para o Parlamento e para o Conselho do Estado indivíduos que não me davam garantias nenhumas.
O mundo passou a ser outro e deixou de se entender com ele?
Sim. Fui chamado pelo [Victor] Crespo, pelo Conselho da Revolução. Era ouvido. No tempo do Vasco Gonçalves era ouvido frequentes vezes. Depois, nunca mais ninguém se lembrou de mim. Conforme fui chamado, fui dispensado. Portanto, não tenho mais a fazer politicamente. Entretanto estou velho e cansado.
Publicado originalmente no Público em 2009