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Anabela Mota Ribeiro

John Malkovich

01.04.14

Numa manhã de calor, quase por acaso, conheci John Malkovich. Ele estava à entrada de um centro comercial acompanhado pelo produtor Paulo Branco. Assistimos juntos a uma projecção privada de «O Tempo Reencontrado», o filme de Ruiz inspirado na obra magna de Proust, cujo elenco integra.

Usava um fato alinhado, de tom claro. E uma mala debaixo do braço, que não abandonaria o dia todo. Uma espécie de valise en carton, sem ser de carton, é claro, mas sem a sofisticação de uma Vuitton ou coisa parecida. Era uma mala usada, que ele abraçou o dia todo.

Ao almoço falámos da paixão que tem por Portugal, do interesse pela arquitectura. John, John Malkovich conhecia a improvável Ponte de Lima, comeu no melhor dos restaurantes do Porto, ficou siderado com a descrição que fiz do Café Majestic. Falou com à vontade de Siza e Souto Moura; houve mesmo um momento em que perguntou «Qual é o seu jornal?», o Diário de Notícias é aquele cujo edifício fica junto ao Marquês?».

A entrevista aconteceu na varanda do Lux, (do qual é sócio), e coincidiu com o cair da tarde. 

 

O que é que traz na mala?

- Ando sempre com cadernos para fazer desenhos, e canetas. Às vezes também trago romances.

 

Além de desenhar, escreve?

- Escrevo teatro. E ando com dois pequenos cavalos que os meus filhos me deram.

 

Amuletos?

- Sim.

 

Porque é que decidiu viver em França?

- Vivo na Provence não há muito tempo, há quase seis anos. Não sei dizer exactamente porquê. A vida é muito tranquila e muito fácil no campo. Mesmo que seja um pouco conhecido, muito conhecido, em França todos têm os mesmos direitos. E parece-me interessante habitar um país que não conhecemos, que não sabemos como é.

 

Como é que as pessoas da aldeia reagem à sua presença? Falam consigo como se fosse mais um dos seus anónimos habitantes?

- Creio que sim. Talvez de tempos em tempos me olhem como o John Malkovich; mas não exactamente na aldeia, que é, de facto, muito simples. Fazemos festas de aniversário às crianças, levo-as à escola e perguntam-me «Como está?». Às vezes até comemos juntos, nada de muito especial.

 

Na escola os professores perguntam aos seus filhos a profissão do pai?

- A minha filha, antes de ter completado cinco, seis anos, pensava que eu trabalhava no jardim com o nosso jardineiro. Neste momento, julgo que sabem que faço filmes, peças de teatro, que faço muitas coisas. Interessam-se, mas não fantasticamente. Não são obcecados com a ideia do que sou e do que faço.

 

Simultaneamente você incarna o herói que eles vêem no cinema e o pai que eles têm em casa.

- Seja como for, sou o pai deles. De longe a longe, vêem o que faço, especialmente no teatro, que é do que gostam mais; no cinema quase não me vêem.

 

É uma família parecida com aquela que teve?

- Somos cinco: um irmão e quatro irmãs. Uma família numerosa, mas não católica; creio que somos agnósticos. A minha mulher é italiana, mas de origem francesa. Por causa disso, também, decidimos viver em França.

 

Enquanto actor, a sua composição é mais europeia e menos americana. Os seus filmes dos últimos anos têm correspondido gradativamente à tipologia europeia. É uma opção clara para si?

- Não há nenhuma razão verdadeiramente para que seja assim.

 

Concede em fazer filmes tipicamente americanos para repôs ordem nas finanças? Quando aceita fazer filmes como o «Con Air» é para ganhar dinheiro?

- Claro. É preciso fazer alguns desses para que as coisas funcionem. Se não os fizer torna-se muito difícil fazer os outros.

 

Concessões?

- Sim. A vida é um conjunto de concessões. Há filmes americanos verdadeiramente bem feitos, verdadeiramente inteligentes, verdadeiramente originais, verdadeiramente engraçados, verdadeiramente verdadeiros. Mas não é muito fácil encontrar filmes assim, nem no cinema americano nem no cinema europeu.

 

Ocorreu-me um filme americano que talvez preencha esses requisitos e que é um dos mais significativos na sua carreira: «Na Linha de Fogo», de Clint Eastwood. Interpreta um personagem verdadeiramente diabólico. Uma diabolização que, exposta de maneira diferente, surge também no Visconde das «Ligações Perigosas». Porque é que o chamam tanto para a perversidade?

- Não sei. Não é uma questão para mim.

 

Não?

- Não. Interpreto um papel como ele é. Não sou eu que decido o que vou ser.

 

Mas você tem um tipo. Talvez a sua marca mais forte enquanto actor seja esta duplicidade no carácter.

- Insisto, é só um papel. E nós não somos exactamente só uma coisa. Não há um mas muitos lados. Normalmente as histórias que têm apenas um lado são desinteressantes. As mais complexas são as mais estimulantes. Mesmo quando pegamos em filmes simples e clássicos, como os da América dos anos 40/50, em westerns, em filmes com o Gary Cooper, com polícias e uma pequena aldeia; se o herói tem medo, pode ser interessante, se não há medo ou não se pode mostrar o medo, pode ser uma estupidez. Como nos filmes dos anos 90 em que qualquer um com pistola fuzila quem tem pela frente.

 

Tem medo de quê?

- Medo?

 

Medo da guerra nuclear, das pessoas, da morte, da doença?

- Não sou especialmente medroso. Mesmo assim, creio que temos medo disso tudo. É normal.

 

Imagino que para se defender, neste momento represente um personagem: o do actor John Malkovich em sessão de entrevistas e não o homem Malkovich que tem medo.

- Não exactamente. Mas não digo coisas demasiado pessoais quando dou entrevistas. Devo resguardar a minha vida privada, devo resguardar o que penso. [pausa] Também não posso perguntar aos outros...; donde, não é justo que me perguntem a mim!

 

Invertamos as posições e pergunte.

- Não vale a pena; não o poria na entrevista.

 

Se tiver vontade de levantar alguma questão, colocá-la-ei na entrevista. Quer perguntar o quê?

- [chegando-se sobre a mesa] De que é que tem medo?

 

De cães, que metaforicamente encobrem outros medos.

- Sim, sim.

 

 Agora é a sua vez.

- [pausa] Tenho medo sobretudo pelos meus filhos: que fiquem doentes ou turbulentos. Tenho medo de morrer antes que sejam capazes ou estejam preparados para viverem sozinhos. E é tudo, é o medo principal. Até porque, realmente, eu não tenho medo. [sorriso]. Como sou calmo, é difícil sentir medo.

 

Os actores que perfilham o método do Actor’s Studio trabalham muito sobre os seus medos e as suas partes mais sombrias. No seu caso, onde procura, como compõe os seus personagens?

- Penso no que eles querem. O truque inicial, aquela que é mesmo a primeira coisa, é perceber como vêem o mundo, o mundo inteiro. Se quando sonham vêem o mundo como um lugar bonito, ou tranquilo, ou sólido, ou calmo. Há pessoas, por exemplo, que têm medo de andar de avião. Podem ter medo de qualquer coisa que vá aparecer atrás de si, que os mande para o cemitério. Não vejo o mundo assim, mas quando faço um filme ou uma peça de teatro não de trata de mim ou do que sou. Eu não sou aquele homem, não recebi a mesma educação, não tenho o mesmo estilo, a mesma sensibilidade, a mesma filosofia.

 

Faz uma composição a partir da observação das outras pessoas?

- De vez em quando sim. Quando quem escreve é bom, não temos necessidade, porque isso está no texto, no argumento, no romance. É uma questão de escrita, de boa escrita.

 

Tem uma pessoa que lhe faz a triagem dos argumentos?

- Mandam-me muitas coisas. Às vezes não leio. Mas normalmente leio, com alguma rapidez, e digo sim ou não com alguma rapidez, também.

 

Como é que funciona a máquina, a empresa John Malkovich?

- Depende. Há uns anos experimentei fazer coisas como produtor, e, como tal, foi preciso arranjar dinheiro para pagar toda a estrutura, obter direitos, etc, etc. Talvez tenha feito coisas que de outra forma não faria, para ganhar dinheiro e poder ter o luxo de me dedicar a outras de que gosto. Como restaurantes. Há ainda as coisas de que gosto simplesmente porque são bem feitas. Por exemplo, este filme do Paulo [Branco] e do Raoul [Ruiz], que fiz apesar de não ser um grande fã do Proust. Aceitei pelo desafio de fazer pela primeira vez um personagem em francês. Depois gosto muito do Paulo, somos próximos desde há anos.

 

O seu personagem nesse filme, «O Tempo Reencontrado», é um masoquista. Quando o vi pensei no Marquês de Sade, no Apollinaire, no Bataille, libertinos que entrelaçam a poesia com o erotismo.

- Era também a época. Eram obrigados a descobrir a sua sexualidade de uma forma, não castrada, mas escondida. Penso até que havia muito menos castração.

 

E contudo o sexo é hoje uma coisa quase pública, e permanentemente exaltado.

- É a razão suficiente, quanto a mim, para que haja coisas privadas. Se continuarem assim, talvez as coisas fiquem progressivamente menos interessantes. Devemos guardar coisas de dentro, guardar o pudor.

 

Sente-se desconfortável quando se sente um sex-symbol?

- Eu? Mas isso é ridículo!

 

Ora.

- Não penso na minha vida pública, não penso mesmo se ela existe. É um divórcio que estabeleço muito facilmente.

 

Passaram muitos anos, é isso?

- Sim. E esta vida aconteceu-me quando tinha já 30 anos.

 

Posso saber que idade tem agora?

- 45, prazer!

 

Está a ver, uma estrela de cinema não revela desta maneira a idade, mantém uma aura à sua volta e faz ginástica para manter a forma! E você?

- Faço dieta o tempo todo.

 

Ao almoço comeu um bolo.

- Um pouco, apenas. O que se passa é que não preciso de muita comida. É o meu metabolismo, alimento-me como um passarinho. Mas gosto muito de comer, de comer bem.

 

Que relação mantém com o seu corpo, você mesmo, não a estrela de cinema?

- Absolutamente normal. Há pessoas que são muito narcisistas, sim. Sou mais como os outros que pensam que seriam mais bonitos se o nariz fosse mais pequeno, o cabelo fosse mais não sei o quê. Praticamente não me olho ao espelho. Mas se faço um filme, posso sentir-me bem se me vejo magro. É apenas uma questão estética, que pode ser fútil, que pode ser nada. Se estiver demasiado preocupado com isso não posso tornar-me outro.

 

Nas «Ligações Perigosas» era o sedutor. A sedução é uma emanação física?

- Nesse filme estava muito confiante, no trabalho do guarda roupa, da maquilhagem, do cabelo. E estava muito ocupado com isso. O mesmo com as mulheres.

 

Com as mulheres tudo deve piorar...

- Nem sempre. Há mulheres que não se ocupam assim tanto de si. Por exemplo, a Michelle, a Michelle Pfeiffer. Lembro-me de uma vez em que se olhava no espelho...

 

Contemplando-se? Porque é inacreditavelmente bela.

- É. Mas se lho perguntarmos não tenho a certeza que diga ou pense isso. Não se tortura com o assunto. E conheci outras que se torturavam. O mais importante é sabermos como somos. Quando era jovem, um jovem comediante, [longa pausa], comecei a perder o cabelo. Fiquei muito preocupado. Por quatro meses. Depois deixou de ter importância e não penso nisso senão de longe a longe. A questão resume-se a: «O que é que tu queres para este papel, um cabelo, um bigode?».

 

A versatilidade é outra das suas marcas enquanto actor.

- Voilá, excepto nas coisas físicas. As «Ligações» talvez sejam um bom exemplo do que vem de dentro, do que há e do que falta. Vem tudo a propósito do que me perguntou sobre a relação com o corpo. Penso que o público que assistiu ao filme, assistiu ao cortejo interior.

 

Foi um filme fundamental na sua carreira. Quais foram os seus grandes momentos? Começou por fazer teatro, depois seguiu o clássico percurso pelos filmes menos conhecidos e as «Ligações» catapultaram-no definitivamente para o sucesso.

- Tinha começado numa pequena companhia de comédia, em Chicago. Era uma outra vida.

 

Imagino que aprecie o anonimato agora que é muito conhecido; mas houve com certeza um tempo em que ambicionou o que está a viver.

- Não é bem assim. Fico absolutamente feliz de ser reconhecido, agora, também.

 

Hoje de manhã, quando estava na entrada do centro comercial, ninguém reparava em si. Talvez pensassem na imensa improbabilidade daquela pessoa, eventualmente parecida com o John Malkovich, ser mesmo o John Malkovich. Se o esperassem a reacção seria diferente.

- Sim, sim. Independentemente disso, tenho sempre uma vida privada.

 

Não tem um guarda costa a acompanhá-lo, mais essa parafernália hollywoodiana?

- Não, eu sou o guarda costas! Não tenho necessidade. Bom, não tenho necessidade aqui. Tive uma experiência desagradabilíssima certa vez, em Cannes, com fotógrafos a espreitarem-nos nos elevadores, nos corredores, nos acessos ao hotel.

 

A sua equipa é constituída por quem? Uma baby sitter, uma secretária?

- [sorriso]

 

Ninguém? É você, a sua mulher e duas crianças, uma família normal?

- Não tenho um assistente pessoal porque verdadeiramente não tenho necessidade. É claro que tenho um escritório onde trabalham duas ou três pessoas e se preciso de alguma coisa, providenciam-na. Mas normalmente trato de tudo sozinho. Quando as crianças eram muitas pequenas tínhamos uma empregada que ficava lá em casa, uma empregada interna. Nascerem muito perto uma da outra e a minha mulher estava muito cansada. Na época eu tinha muito trabalho. Trabalhava doze horas em qualquer coisa, mas depois de chegar a casa sentia imediatamente que entrava no mundo das crianças e desatava a desenhar com elas.

 

Num ano normal faz um, dois, três, quatro filmes? Vive um ou dois meses entre os Estados Unidos, Portugal, França?

- Há anos em que estou o tempo todo com a minha família. Já aconteceu fazer quatro filmes em quatro semanas! Vou agora fazer uma peça em Chicago, mas a minha família vai comigo. Os miúdos frequentam a Escola Francesa e é muito fácil ajustá-los localmente . Depois vou ao Chile com um produtor espanhol fazer repérage para um filme, depois ao Canadá fazer um outro filme, depois a França para um outro filme, e depois passo em Portugal e na América do Sul para preparar a produção do meu filme.

 

Como é que Portugal aparece na sua vida?

- É uma descoberta recente, que aconteceu depois d’ «O Convento», de Manoel de Oliveira. Há muitos sítios que tinha vontade de visitar, mas não tinha tido oportunidade por estar ocupado com outras coisas. Quando cheguei aqui achei que era um país incrivelmente belo, incrivelmente triste. As pessoas não são exactamente tristes, mesmo que haja uma tristeza nelas.

 

Está a referir-se àquilo a que chamamos Fado?

- Sim. E gosto muito do país na sua essência mais física. O Porto é a mais romântica das cidades europeias.

 

Tome nota que isto será lido por...

- Pelos «Lisboas», normalmente digo «Lisboas»! Mas eu adoro Lisboa! O Porto é que é um pouco mais difícil de amar. É uma questão de romantismo. Não é uma cidade mediterrânica, de sol; é mais dura. Lisboa é mais vivante. [Abre a mala e procura qualquer coisa]

 

Posso ajudar?

- Não porque você não fuma. E eu não posso fumar à frente da minha família. Está a ver?, tenho medo disso, de fumar à frente deles! Mas o Porto. Sobretudo o Bairro da Ribeira, é extraordinário.

 

Dizia-se que para o seu projecto, o seu filme em Portugal, ia usar o Porto como pano de fundo.

- Será sobre o chefe do Sendero Luminoso. Ainda não sei onde será filmado, ainda vamos fazer a repérage, no Chile e no Uruguai. Talvez possa filmar no Porto e em Lisboa porque gosto muito das duas. 

 

É bizarro que o seu filme seja sobre o Sendero Luminoso. Para si imaginaria uma outra temática, menos guerrilheira, menos revolucionária!

- Não é uma história revolucionária. Creio que há um outro homem, além do revolucionário.

 

O que é que aprecia nos actores e nas actrizes?

- Aprecio o talento. Mas nos filmes não é preciso ter talento. Há uma cara de que se gosta, de que não se gosta, disfarça-se com o guarda roupa, fim da história. No cinema actual há pouco a fazer com o talento. Apesar disso, para mim o talento é absolutamente necessário. Gosto muito de comediantes e de pessoas que fazem coisas boas.

 

Quais são as suas referências?

- Oh, é difícil dizer. Como realizador, gosto muito de um britânico, o Carol Reed. E gosto muito de comédia.

 

Como os Irmãos Marx, por exemplo, o non sense puro?

- Sim, muito, rio com toda a família! Gosto do Benigni, do Sean Penn, do Robert Duvall, do William Hurt.

 

Quando era um menino, o seu sonho era ser uma estrela de cinema?

- Queria ser jogador de basebol.

 

O Joe DiMaggio tinha a Marilyn. Também sonhava com belas mulheres?

- Sempre tive muita sorte. Nunca tive mulheres ruins ou desinteressantes; são sempre mais interessantes que eu, e são inteligentes.

 

Notei que a sua mulher usa uma pulseira igual a esta que traz no pulso.

- Foi a nossa filha que no-la deu. É uma falsa tatuagem.

 

Imaginei que pudesse ser um código, uma história amorosa entre si e a sua mulher.

- Mas é, de uma certa maneira é. Somos muito felizes, a nossa família é muito próxima. Não podemos saber o que nos espera o futuro, mas penso que é uma relação para toda a vida.

 

Ela tem ciúmes de si?

- Não. Ela é muito especial. Sou muito afortunado por ter uma mulher interessante.

 

 

Publicada no DNa do Diário de Notícias em 2000