José António Pinto Ribeiro
A história desta entrevista começa num almoço em frente ao rio Tejo. A intenção era conhecer os seus percursos. Deixar ainda o gravador em silêncio e reter apenas as cintilações do caminho. Verdadeiramente a história desta entrevista começa há meses, quando fomos apresentados por amigos comuns e eu o ouvi falar de amor e de morte. De não haver mais nada senão amor e morte.
O almoço alimentou a minha curiosidade, a minha expectativa. Queria conhecer a espessura deste homem que por vezes aparece na televisão a falar de Direitos Humanos. Deste homem que se afirma de esquerda e se movimenta no mundo da alta finança.
A entrevista propriamente, tal como foi registada pelo gravador, aconteceu sobre a mesa de trabalho, no escritório. Prosseguiu em vésperas da publicação da mesma porque ficara entretanto desfasado o que fora dito sobre a guerra no Iraque.
José António Pinto Ribeiro é advogado. Tem 56 anos. Nasceu em Moçambique. Tem uma inteligência superior. Mas o que faz dele uma pessoa particular é comover-se, ainda, com o outro. É a sua definição de bondade. É o que diz acerca do amor e do engrandecimento que ele nos provoca.
Disse-me que, se lhe fosse dado um talento à escolha, seria o da irresponsabilidade. O que é que isto quer dizer?
Por razões várias, carrego comigo um grande sentimento de culpa. Isso prende-se – suponho – com coisas da minha infância. Com o facto de a minha mãe ter adoecido quando eu tinha cinco, seis anos – uma doença progressiva, auto-imune. Por outro lado, senti uma hiper-responsabilização de parte do meu pai sobre o meu futuro, sobre o de cada um de nós. Vivi esse tempo com o peso de não poder perder tempo. Não poder fazer mal as coisas para não ter de as fazer segunda vez.
Uma sofreguidão em relação ao tempo?
Não era sofreguidão. Era ter de ser adulto depressa. A infância e a adolescência eram-me formuladas como etapas para chegar à autonomia, à autarcia. Para não depender da existência do pai e da mãe.
Na prática, como é que isso era passado?
Numa prestação de contas, mais ou menos quotidiana. À hora das refeições, o meu pai perguntava o que se tinha passado na escola, queria saber de aproveitamento e notas. Queria ir tendo provas de que seríamos autónomos, auto-suficientes. Sinto hoje que ele tinha medo de nos faltar. De que a morte lhe sobreviesse inopinadamente.
E os afectos, ficavam para quem? No meio desse prestar contas, perguntava também por outras coisas?
Os afectos foram muito racionais. Muito masculinos. Diria que o afecto era sobretudo percebido como ser-se inteligente, articulado, argumentativo, ter razão, ganhar.
Mas isso é admiração. Não é amor.
Talvez, mas quando se tem o centro de afeição, de protecção, de estima quase só no pai, esses outros afectos, os afectos, não se vivem, aprendem e desenvolvem da mesma maneira. Até porque, em casa dos meus pais, uma grande moradia na Foz, no Porto, não havia permanentemente muita gente. A doença da minha mãe, e não só, determinou algum fechamento.
As famílias tradicionais não costumavam fechar-se sobre si, adstritas ao núcleo duro. Além disso, há uma teia social que costuma ser alargada.
Ainda houve uma outra perturbação, que é uma perturbação muito portuguesa. Mais ou menos na mesma altura [da doença], tiveram de se fazer partilhas na família da minha mãe, que tinha muitos irmãos. Zangaram-se.
Parece que o Shakespeare já escreveu sobre isso...
Conta-se uma história, daquelas histórias que se atribuem ao Salazar, que seria expressão de certas qualidades escondidas (porque qualidades públicas ele não tinha). Diz-se que estava a remodelar autocraticamente um daqueles governos e que o secretário lhe sugeriu uma determinada pessoa para ministro: «É um homem muito competente». O Salazar continuou a escrever. E o secretário disse: «É um homem muito sério». E ele continuou a escrever. A certa altura, o secretário disse: «É um homem de muito boas famílias». Reza a história que o Salazar terá parado, terá tirado os óculos, terá olhado para ele e terá dito: «Já fizeram partilhas? Já fizeram partilhas?».
Há uma agudeza, uma certa sagacidade, consensualmente atribuída a Salazar.
Esperteza. Uma esperteza florentina na gestão das qualidades e no aproveitamento dos defeitos humanos. Existem muitas formas de inteligência. Existe uma inteligência sobre as coisas e existe uma inteligência relativamente às pessoas. É muito difícil governar bem e democraticamente. É muito mais fácil governar com uma polícia, com uma censura, com proibição de liberdade alheia. É mais fácil ser autoritário do que ser democrático. Não me convenço de que tenha sido muito inteligente. Senão, teria feito coisas muito diferentes para o país. Para as pessoas, para o bem estar das pessoas, para a felicidade das pessoas. Não teve inteligência sequer para perceber isso. O poder autocrático é um desrespeito pelos outros, é uma falta de inteligência que decorre e gera uma extrema insegurança na relação com o mundo.
Então duvidamos da inteligência e conferimos-lhe pelo menos esperteza.
Sobretudo esperteza para perceber a fragilidade e a fraqueza do outro. Para falar com o outro, não como um igual melhor, mas como confessor. Acho que ele tinha uma mentalidade de confessor, percebia as fraquezas e os medos das pessoas. E aproveitava-se politicamente disso.
Falávamos disto a propósito das partilhas.
Essa zanga familiar afastou o convívio com aquilo que é a unidade de socialização essencial no Porto, a família. Nasci em Moçambique de onde vim com três anos. A zanga deu-se pouco tempo depois. A minha família ficou reduzida a uma pequena parte. O facto de a zanga se ter dado e de a minha avó e os meus tios terem deixado de aparecer, (isto é, não terem conseguido separar as relações pessoais das patrimoniais), o facto de a minha mãe ter atravessado doente e sozinha muitos anos da vida dela, foi uma coisa que me magoou profundamente. Agora já não me interessa saber quem tinha razão, se é que alguém tem razão em partilhas...
Porque é que nas partilhas o património se sobrepõe quase sempre aos afectos?
Porque o património, o dinheiro, é instrumento de muita coisa. Diria, em primeiro lugar, que a fortuna dá respeitabilidade. Em segundo lugar, dá liberdade – poder fazer isto ou aquilo, escolher isto ou aquilo. Também dá servidão a quem não a sabe usar. Mas dá margem de escolha. É um instrumento de poder, de liberdade.
E felicidade, como se diz, não dá mas ajuda muito...
É mais fácil ser-se feliz quando se é livre do que quando se é escravo de um quotidiano esmagador. É mais fácil ser-se feliz quando os outros têm comportamentos que correspondem, aparentemente, a gostar de nós e a respeitar-nos. É mais fácil ser-se feliz quando temos condições para escolher, para fazer, para acontecer. Não quer dizer que se seja necessariamente feliz. Não quer dizer que se encontre o amor. E é o essencial na vida, encontrar o amor.
O grosso das pessoas sabe isso, ou pelo menos apregoa isso. É por isso difícil compreender que as questões patrimoniais interfiram com as relações íntimas. Às vezes por valores não tão significativos quanto isso. É a questão do território, que é preciso marcar?
Não sei se é uma questão de território. Há sempre muitas contas a ajustar com o passado, entre parentes e sobretudo entre irmãos, em função da sucessão. As partilhas fazem-se geralmente quando se está perto dos 50 anos, numa situação um pouco dramática de balanço de vida. De repente, para a generalidade das pessoas, é o momento em que, se têm capacidade e coragem para o fazer, verificam que não alcançaram nada do que queriam alcançar nem do que sonharam alcançar. Vivem muitas vezes com um homem ou uma mulher de quem já não gostam, mas de quem não conseguem separar-se. Mesmo quando não pensaram verdadeiramente em etapas, mesmo quando não fizeram um projecto de vida, verificam que vivem mal. Vivem vidas más.
Conhece muitas pessoas para as quais existe uma correspondência entre a vida sonhada e a vida vivida?
Não sei se é possível dizer isso assim. Porque as coisas vão mudando. Quando temos 20 anos, altura em que formulamos expectativas, «the sky is the limit». E a verdade é que nunca atingimos o céu. Só depois da morte. E mesmo esse céu, duvido que exista. Há pessoas que têm 40, 50 anos que estão satisfeitas, tranquilas com a vida que têm. Mas a generalidade das pessoas não está. Esta sociedade errada em que vivemos é essencialmente denegadora da felicidade. O mal-estar na civilização, a que o Freud se refere, de algum sítio vem. Não temos a gratificação, nem a instintiva nem a sucedânea, correspondente à nossa capacidade de ter prazer, de gostar, de ser feliz. De gostar de ser feliz. Normalmente, isso é tudo frustrado.
E isso não é pessimismo? É só lucidez?
Acho que é só olhar à nossa volta. Não sou nada pessimista nem em relação à sociedade nem em relação à vida, pelo contrário. Acho que tudo isto é alterável, é possível fazer de outra maneira, é possível mudar as coisas. Mesmo sabendo que as pessoas tendem a repetir as erradas e bloqueadas soluções que dão aos problemas. Mas, colectivamente, a caminhada que o Homem tem feito é uma caminhada extraordinária para criar condições efectivas de maior bem-estar. As condições de abolição de servidão e sofrimento são cada vez maiores. Se eu tivesse nascido há mil anos não podia exercer nenhuma actividade que pressupusesse ver bem. Vejo mal. E há mil anos não havia óculos.
Desde quando é que usa óculos?
Desde os meus 15, 16 anos. Queixava-me de dores de cabeça.
Estávamos no ajuste de contas com os outros, que é feito aos 40, 50 anos.
Pela oportunidade de ultrapassar o destino recebendo uma herança..., é preciso esgadanhar o irmão, o primo, a tia. Ainda por cima, somos um país de poucas grandes heranças.
Os seus dois irmãos são médicos. Já tinha a intenção de não ser médico?
Não tinha nenhuma intenção.
Porque é que decidiu ser advogado?
Acho que o meu pai é que decidiu. O meu avô queria que ele fosse advogado e ele quis ser e foi médico. Ele achava que eu daria um bom advogado, achava que eu era muito articulado, pensava bem, argumentava bem. Durante as férias grandes, no fim do Colégio Alemão, enquanto esperava pela equivalência do Ministério da Educação para me matricular, convenceu-me da grandeza que era merecer a confiança que os outros em nós depositam para os representar e defender. Verdadeiramente – na altura não tinha disso consciência – o que gostaria de ter sido era arquitecto.
Porquê?
Gosto de não depender senão de mim. Daí a preferência por uma profissão liberal. Mas a arquitectura é ainda criação, é fazer surgir uma coisa nova, no seu sentido físico e corpóreo.
E a advocacia?
A advocacia é, no seu melhor, rigor e imaginação na formulação de soluções para problemas. Mas não é criação de novas realidades. Faço Direito Comercial – contratos, sociedades, banca, sobretudo a parte financeira. É muito criativo, mas muito abstracto. Depois tenho uma esquizofrenia benigna e à noite, às vezes, faço Direitos Humanos. Mas não é a minha actividade profissional. Não faço Penal, recuso-me, dado o sistema processual penal que temos, que não é adversarial, que não é um processo de partes e limita extraordinariamente as garantias da defesa. É injusto.
Familiar nunca faria, pois não?
Já fiz talvez uma vintena de divórcios e não me saí mal a evitar que as pessoas se agridam.
O que é preciso observar para que as pessoas não se destruam?
A primeira coisa a prevenir são os gestos que inexoravelmente se fazem, as atitudes que se tomam para exprimir a zanga que se tem, e que levam a uma espiral de destruição recíproca, absolutamente trágica. As pessoas quase sempre imputam aos outros a culpa do que sentem.
Mas esse não é o seu tipo de Direito.
O Direito Comercial é um tipo de advocacia por um lado tensa, por outro puramente racional. Lido muito pouco com pessoas, no sentido de que lido pouco com afectos e sofrimentos pessoais. Não quer dizer que no âmbito dos contratos e das sociedades comerciais não haja muitas vezes pessoas muito zangadas. Mas tudo é muito mais amortecido. Em última análise é só uma questão de dinheiro. Não se jogam tão directamente a liberdade e as paixões como no crime e na família. Preferia fazer coisas mais físicas, em que a obra crescesse, em que não fosse só papel e solução de conflitos – daí a arquitectura.
A arquitectura pode ser comovente para si, nesse fazer obra, vê-la erguida? António Damásio dizia numa conferência que algumas obras de Mies van der Rohe lhe poderiam suscitar a mesma comoção que uma obra de arte. Para si há essa comoção na ligação à arte ou é a coisa da obra feita, tangível?
É a obra feita, também é muito a estética. Mas não é emoção ou comoção. A emoção e a comoção é o outro. E não é sequer o outro abstracto. É o outro concreto, nas suas formas todas. O sofrimento alheio. O prazer alheio. A felicidade estampada num rosto.
Pode comover-se por ver alguém ganhar uma corrida na televisão? Ou celebrar com júbilo imenso uma vitória?
Na televisão menos. Mas ao vivo sim. A companhia encurta a caminhada, mas dobra a caminhada quando se trata de prazer. Descobrir um outro com o qual se atravessa a vida, envelhecer com alguém deve ser extraordinariamente agradável.
Caminhos paralelos.
São caminhos próprios, nem paralelos nem divergentes. É um quadro de cumplicidade, entendimento, compreensão, e de valor acrescentado. Cada um se faz melhor por via do outro. Dão-se uma dimensão que não existiria ou não se manifestaria se não fosse a oportunidade que o outro dá.
Então o melhor do amor é engrandecer o outro? Fazer do outro uma melhor pessoa?
Não, não. Não é fazer ao outro. Nem fazer do outro. É fazermo-nos de graça e por graça do outro um ser humano melhor.
Quando é que se tomou em ombros?
Tomar-me em ombros, desde sempre. Como disse, para isso fui educado. Mas fazer-me a mim mesmo, só à medida e cada vez que me fui apaixonando. Só então me fui descobrindo e refazendo.
Alguma vez foi refém de uma paixão? Digo paixão e não amor. A paixão, pensando que é um sentimento fulgurante, deixa-nos enfeitiçados.
Não se pode estar apaixonado sem se ser simultaneamente absolutamente livre e totalmente refém. Isto é, não se é refém. A paixão é paixão, é o absoluto. Ou então não é paixão.
Há diferentes gradações...
Não, não há. Ou é paixão ou não é paixão. Pode ser uma paixoneta, uma brincadeira, um amor. Estou a falar de paixão.
Dessas de caixão à cova, existem quantas na vida?
Não sei. Nem sei se se repetem. Não sei se é preciso inocência para as ter. E não sei se, tendo-as, podemos repetir e se as comparamos ou não. Ou se nos reapaixonamos.
Porque é que falou de inocência? Até pensei que não tinha tido um período de inocência. Quando penso em inocência, penso numa fase em que se está liberto. Dissolvido, então.
Não. Acho que inocência é o período que antecede o conhecimento. A revelação. A paixão é a revelação da vida. Todo o período que a antecede é de inocência.
Habitualmente estabelece-se uma correspondência directa entre a infância e a inocência.
Porque na infância ainda não se sabe, ainda não se esteve apaixonado.
O que é que muda tão drasticamente?
Descobrir o outro. Descobrir que somos o outro. Que somos, por via do outro, outro. É a descoberta.
É o sair de nós.
É, subitamente, o conhecimento. É a perda de nós por mais nós. É uma morte e uma ressurreição permanentes.
Tudo se resume a amor e morte.
Sim, o que distingue os homens dos animais é sermos capazes de amar. Mas não deixamos de ser animais e, mesmo quando nos vamos da lei da morte libertando, morremos.
No seu caso parece que houve uma primeira apresentação da morte, e depois do amor.
A da morte muito cedo. A ameaça da morte. Aquilo que mais me esgota, que mais me pesa, é a ameaça. Prefiro que as coisas se concretizem à tensão da ameaça. Vivi toda a minha infância sob a ameaça da morte daqueles que mais amava. Essa suspensão, essa espada, é um cansaço. Só a paixão me libertou dela.
Essa suspensão é aquela que cada um sente em relação à sua própria morte. É sempre o horizonte da morte.
Acho que nos sentimos imortais, pelo menos até aos 35 anos.
Quando é que voltou a pensar na morte, mas na sua morte? Tem 56 anos.
Não penso na minha morte.
Porque se recusa a pensar ou ela não aparece?
Não aparece. Não quer dizer que não seja hipocondríaco, como todos os homens são.
Todos os homens?
Todos os homens são hipocondríacos. As mulheres temem coisas específicas.
O que é que faz os homens serem homens?
A natureza e a sociedade. Nos anos 60 eu acreditava estar abolida a diferença de géneros, feminino e masculino. Mas é muito mais forte do que eu pensava essa diferença física e genética e social. Na sociedade de hoje, ainda é muito marcada essa diferença, apesar da liberdade conquistada pelas mulheres.
O que é que hoje imputa imediatamente ao masculino e ao feminino?
Ter filhos, ser mãe e pai. A maternidade e a paternidade são totalmente diferentes. Fisicamente só há maternidade. A paternidade é uma construção social.
O que é constitutivamente o papel de mãe e de pai? O que é constitutivamente o feminino e o masculino?
O que estou a dizer é que fisicamente, biologicamente o papel da mãe é ser portador da criança durante 9 meses. Não quer dizer que depois seja necessário amamentá-la. Pode dar-lhe biberão ou pode ser o pai a dar-lhe biberão. A partir daqui, o papel da sociedade é fazer com que tudo o que esteja para além da necessidade biológica não exista. A liberdade é o reconhecimento da necessidade. É preciso alargar o campo da liberdade e restringir o campo da necessidade. Existem dois caminhos que se interpenetram: o da liberdade e o da igualdade. Um é o caminho da nossa condição de seres humanos, isto é, seres físicos. A nossa esperança é sermos totalmente livres, imortais, não ter corpo, ser só espírito. Ou, se quiser, ser só informação, ser só memória.
A memória é o nosso último reduto.
Se calhar é o nosso único. Por acaso temos um corpo concreto; mas se é possível fazer uma clonagem integral do corpo, o que me diferencia do meu clone é aquilo que está na minha cabeça, aquilo que retive, que aprendi. Provavelmente daqui a 50 anos vai ser possível pegar nesta informação toda e passá-la para outro cérebro. Ou mesmo, como diz o Hanif Kureishi, ser possível fazer um transplante do cérebro. Significa que nos libertaremos da nossa condição física. Não ficar grávida quando se tem relações porque se toma a pílula é liberdade. Tudo o que supera sujeições alarga a liberdade.
Ou seja, libertarmo-nos na nossa condição física é liberdade.
O ser mais livre e absoluto que concebemos? Deus. Não tem corpo. Eterno, infinito. Mas a liberdade da morte declina-se antes em muitas liberdades anteriores, como a liberdade da fome, da doença, da ignorância, do medo, etc. E nesta luta pela liberdade, põe-se um problema de distribuição das conquistas. Distribuição que normalmente não é homogénea. Há uns que aproveitam mais essas conquistas do que outros. Há uns que alcançam essas conquistas à custa dos outros. É uma segunda luta. Entre homens e mulheres, ricos e pobres, poderosos e não poderosos, brancos e pretos. É a luta pela igualdade, pela democracia. Dentro da luta pela liberdade há uma luta pela igualdade.
O que é que nos põe em conflito?
Absolutamente, a vontade de sermos absolutos, de não termos limites. Relativamente, a desigualdade na distribuição da liberdade.
É um dos fundadores do Fórum Justiça e Liberdades. Pode apresentá-lo sumariamente?
O Fórum Justiça e Liberdades tem por objecto a defesa das liberdades cívicas da primeira geração. Das liberdades que, face ao Estado, nos permitem afirmar o indivíduo. O direito à vida, à integridade física e moral, à liberdade. O direito e os meios de defender estes direitos, o direito à Justiça. Não tratamos nem dos direitos políticos, nem dos direitos sociais. Em qualquer caso, o Fórum, estatutariamente, não pode tomar posição sobre uma coisa onde não vigore a Constituição portuguesa. É uma luta mais pequenina, mais reformista, pela criação de um Estado de Direito. Fazer com que as pessoas tenham instrumentos para exercer rápida e eficazmente os seus direitos e defender as suas liberdades.
Porque é que se empenhou?
Hans Rau, alemão, jurista, dirigente do FDP, veio cá em 1978 fazer um relatório para a Amnistia Internacional sobre o processo penal português depois do 25 de Abril. Eu falava alemão, tinha contactos com a Amnistia Internacional, fui buscá-lo ao aeroporto. Estabeleceu-se uma grande empatia, fui com ele aos tribunais algumas vezes e comecei a perceber que aquilo que para mim eram coisas inquestionadas, eram para ele surpreendentes. «Porque é que o Ministério Público se senta lá em cima?». Porque é Ministério Público, é Estado, é acusador. «Ah, era assim na Alemanha. No nazismo fizeram isso. Mas acabou em 45». Depois perguntava: «Porque é que as pessoas se levantam quando entra o Ministério Público e não se levantam quando entra o advogado de defesa? Isso era assim na Alemanha até 45». Comecei a ver como o processo penal português era – e é – tributário de uma lógica autoritária e fascizante. Juntei-me com a Ana Prata, o João Nabais, o José Santos Carvalho, o António Almeida Simões, o José Manuel Sampaio Cabral e decidimos fazer o Fórum. Achámos que era inaceitável o estado do Estado de Direito em Portugal. Uma vergonha.
Sente mesmo vergonha quando vai lá fora e tem de falar do seu país nestes termos?
Não. Sinto vergonha quando ouço portugueses que se vêm queixar ao Fórum. Sinto vergonha do país em que vivo e do desinteresse das pessoas, dos políticos, dos juristas, dos advogados, dos delegados do Ministério Público, dos juízes pelo destino dessas outras pessoas e pelo que lhes acontece na procura de justiça. Estou a falar genericamente. Há belíssimas excepções. É verdade que nos preocupamos e elevamos a voz quando pessoas mais relevantes do ponto de vista da comunicação social são presas. E é verdade que fazemos isso para aproveitar uma oportunidade, porque durante todo o resto do ano, todos os restos dos anos, ninguém nos ouve ou quer saber de nada. O que se deve pensar, quando nos conseguimos fazer ouvir, é se essa denúncia tem ou não razão de ser e não a pessoa ou pessoas a propósito de cuja situação essa denúncia se faz.
E tem?
Posso dizer-lhe coisas tão ignominiosamente bárbaras como: no código 29, feito em Portugal na ditadura, o prazo de prisão preventiva sem culpa formada era de 5 dias, (excepcionalmente podia ser prorrogada por mais 15 dias). Andei na rua a protestar contra decretos-lei que permitiam que presos políticos estivessem presos preventivamente 6 meses sem culpa formada. Hoje, a prisão preventiva sem acusação pode ser de 6 mais 6 meses, pode ser de 12 meses. A pessoa pode estar presa 12 meses sem saber do que está acusada! Temos jovens de 18, 19, 20 anos que estão inconstitucionalmente presos preventivamente, que vão para as cadeias, onde existem doenças infecto-contagiosas em quantidade muito grande, e que são sistematicamente sodomizados. E eu ouvi um ministro dizer que se não se põem preservativos nas cadeias porque isso os ofenderia. Então transmitam-se à vontade as doenças. E depois os miúdos suicidam-se. Nunca se sabe porque é que se suicidam, mas suicidam-se. A reforma das cadeias é urgente.
Em relação à culpa e ao crime, propriamente, tem dificuldade em lidar com a comprovação daquela?
Nenhuma. O advogado é uma pessoa que aprofunda permanentemente a sua esquizofrenia. No sentido em que os seus sentimentos, as suas emoções, as suas escolhas pessoais não são chamados para a função que desempenha.
Nesse exercício deve estar o mais destituído de si próprio e investido apenas da função?
O mais destituído possível de tudo o que tem a ver com as minhas opiniões e os meus sentimentos naquela circunstância. O papel de um advogado em processo penal é o de defender o arguido o melhor possível, assim contribuindo para que com grande rigor se reconstitua o passado e se apure se ele fez ou não fez algo de que é acusado. E para assegurar isso, não posso estar senão imbuído da minha função. Se achar que é abjecto aquele crime e não conseguir, por isso, distância, não devo desempenhar a minha função. Tenho que estar em condições de o defender o melhor possível, o delegado da acusação tem que o acusar o melhor possível e, um júri, idealmente um júri, 12 pessoas escolhidas com grande rigor, devem concluir que ficou ou não provado, para além de qualquer dúvida razoável, que ele fez. Nessa altura, ele é condenado ou absolvido.
Quando começou a sua carreira já tinha a noção de que deveria estar demitido de si próprio?
Estava convencido de que devia pôr-me integralmente ao serviço do cliente. Mas não tinha nada a noção de que era para isso necessário despir-se dos meus sentimentos. Foi uma coisa que vim a adquirir progressivamente. Há uma coisa muito portuguesa e latina, que é as pessoas identificarem os clientes com os advogados e os advogados com os clientes. Não tem de ser assim. É como se se identificasse o psiquiatra com os doentes que ele tem.
Mas há um processo de reconhecimento. Em todas as relações inter-pessoais há.
Sim, mas esse processo pode não ter a ver com o conteúdo da relação, mas com a maneira como se procede. Cada vez acredito mais que não são os fins que justificam os meios, mas os meios que legitimam os fins. Acredito em maneiras de fazer, em procedimentos. Se as coisas forem bem feitas, o resultado será bom, se forem mal feitas, o resultado será mau. Independentemente da intenção, do objectivo. É preciso, na sociedade em que vivemos, passarmos para lógicas procedimentais.
A intenção não é tudo?
Na sociedade, não. Na sociedade o processo é que é o essencial. Dito de outra maneira, acho que há cada vez menos amanhãs que cantam, e que não podemos ir atrás de amanhãs que cantam. Não sabemos o que é o destino, o futuro, e a maneira como se fazem as coisas é que determina a justeza daquilo a que se chega.
Há uma expressão popular que traduz isso: perdeu toda a razão por agir desta maneira.
Exactamente. Isto tem a ver com o que se passa neste momento no Iraque, com a guerra. É possível que seja devido e legítimo não respeitar a soberania de um Estado, que haja uma legitimação para intervir nos assuntos internos de outro Estado, sobretudo quando este Estado é ditatorial, gerador de infelicidade da população, quando pratica genocídios.
«Mas se viola o Direito Internacional...», é esse o seu argumento?
Se a maneira como isto é feito viola as regras de convivência, viola os princípios que fazem com que este resultado seja legitimamente atingido, é o próprio resultado que se torna ilegítimo. Acho que é o que está em causa. A Queda do Muro fez-nos perceber que o essencial é a maneira como vamos avançar. Se a sociedade for organizada de uma forma correspondente a um estado de direito, em que exista justiça, credível, séria e pronta, em que exista democracia, em que as pessoas sintam que participam nas decisões que a elas dizem respeito, em que não exista sensível discriminação entre poderosos e não poderosos, ricos e pobres, homens e mulheres... Se a equipagem do navio for boa e bem treinada, se o navio for bom, temos a certeza que vamos chegar bem, independentemente do porto. Não sabemos onde a viagem nos leva, mas a maneira como fazemos a viagem é determinante.
Muito se tem discutido esta violação do Direito Internacional. É possível avaliar já a dimensão disto?, a implicação deste precedente?
Julgo que ninguém sabe ainda o que vai decorrer para as regras de funcionamento das relações internacionais. Pode ser um precedente ou não. Pode ser a administração americana, esta administração americana, este George W. Bush, este Colin Powell. Ou pode ser o começo de uma intervenção a seguir no Irão, na Coreia do Norte, na Líbia...
Está tudo em aberto?
Está. Vamos ver como é que nos próximos 15 dias, três meses isto pára, para depois sermos capazes de fazer algum levantamento dos danos. Há uma outra coisa, muito ténue ainda: saber se existe alguma analogia entre o que se está a passar e aquilo que se passou na formação dos Estados. Os Estados foram unificados à força e criou-se um poder central. Nessa criação praticaram-se muitas guerras, barbaridades contra os senhores que foram sendo derrotados. Depois de unificado o Estado é que começou um processo de democratização interna que durou 100, 200, 500 anos. Quer dizer, no processo de formação dos Estados houve um momento de unificação autocrática. Será que estamos, agora que caiu o Muro e as duas potências deixaram de se anular, e há só uma, no início de um processo de unificação mundial, de criação de estado mundial?
Há uma aparente contradição na sua vida, a de ser um homem de Esquerda e um advogado da alta finança. Os seus clientes têm noção das suas convicções pessoais ou elas não lhes interessam de todo?
Estou convencido de que a única coisa que lhes interessa é saber como é que eu sou profissionalmente.
Não há uma dimensão pessoal que lhes interesse?
Há. De lealdade, sigilo profissional e competência.
É sócio da empresa de argumentistas Produções Fictícias, é advogado de vários artistas. Isso não é incompatível com o exercício do Direito Comercial, com o universo do Direito Comercial?
De todo.
Enquanto advogado de artistas, consigo encaixá-lo mais facilmente como o fundador do Fórum.
Não tem nada a ver. No Fórum exprimo o desejo de fazer um Estado de Direito. No fundo, trata-se de fazer com que todos sejamos iguais perante a lei. Iguais homens e mulheres, iguais brancos e pretos, iguais cristãos e islamistas. E depois, termos todos meios expeditos de exercer esses direitos. Ou seja, que eu seja dotado dos meios para ser uma pessoa, um indivíduo.
Acha que a impunidade, que é uma situação de injustiça, é um dos principais cancros de Portugal?
Acho que a justiça é essencial. Numa sociedade de mercado democrática as pessoas têm como prémio ter dinheiro, ter poder. Numa sociedade meritocrática, chega-se lá pelo mérito. O sistema de justiça é o que distingue o trigo do joio. Permite distinguir o que tem mérito do que não mérito. Uma sociedade sem justiça não é meritocrática. Em Portugal é melhor conhecer o primo do tio do cunhado do director geral do que ter razão. Em Portugal é mesmo mau ter razão.
Porque nos desgastamos?
Sim, vamos desgastar-nos numa luta para ter razão e incomodar toda a gente e as pessoas vão ficar muito mal dispostas... Devíamos ter um sistema em que seja simples, fácil, e económico mostrar que se tem razão. E se não se tem razão, ser punido rapidamente. Quanto mais cedo formos punidos, melhor é.
E aprende-se?
Aprende-se. Educar é criar um conjunto de reflexos condicionados. Todos gostaríamos, enquanto crianças, de eliminar tudo o que nos é desagradável. Um processo de socialização implica a aprendizagem e compreensão de que não é assim. Temos de aprender a lidar com as coisas sem ser eliminando-as, pura e simplesmente. O direito tem um papel essencial nisto. Pode fazer perceber que quem for bom, competente, empenhado tem prémio, e quem não for, não tem. Estes sinais são dados por um sistema de justiça. Se não funcionar, a sociedade é, como eu acho que em Portugal é, uma sociedade não meritocrática. Isso, por exemplo, é uma das coisas que faz com que o Fórum tenha grande dificuldade em se desenvolver. Só os desprovidos vêm ter connosco; os outros mobilizam os seus conhecimentos sociais para se safarem.
Começámos nesta conversa por falar de irresponsabilidade...
Gostava de ser irresponsável, mas tenho a noção de que socialmente não é possível. E em boa verdade não é a responsabilidade que me pesa. O que não suporto é a culpa. Mesmo que fosse possível viver numa situação em que nada justificasse sentir culpa, eu sentiria culpa à mesma. Como é que se trata disso? Porque é assim?
E a salvação? Agora vamos ao individual: a sua salvação.
A felicidade. A paz plena e a alegria: a felicidade.
São momentos? Ou caminha-se à procura dessa paz plena?
Caminha-se à procura desses momentos. Acho que às vezes se fazem e encontram bocados. Bocados desse bem-estar. Às vezes com coisas tão simples como fazer uma viagem e esquecer. E partir, e encontrar.
Eu encontro esse brilho quando fala da sua neta Rita. O amor de uma criança pode ser a mais redentora das coisas, não é?
Não sei. A Rita é um ser admirável. As crianças nascem Messias, mas tantas vezes não se conservam assim.
Então fica com medo...
Não fico com medo nenhum. Espero que seja melhor do que cada um de nós é e todos nós somos.
E no seu caso, que teve sempre uma aura de geniozinho?
Não acho que seja e nunca achei que fosse muito diferente dos outros. E cada vez acho menos.
Porquê?
Porque cada vez gosto mais dos outros. Das suas grandezas e fraquezas, do seu génio, das suas incapacidades. Da tentação, do bem e do mal. Cada vez gosto mais disto que é ser humano. Mesmo do ser humano que tropeça e cai. Mas zango-me com os que fazem pagar aos outros os seus tropeções e quedas.
Não assumindo a sua responsabilidade nessa queda e tropeção?
Não sei se é um problema de responsabilidade. É um problema de saber lidar com a dor que a queda causa. Não tenho muita complacência para as pessoas que são brutas, que projectam nos outros o seu mal-estar, a sua infelicidade. E acho que lutarei, farei o que souber, para que assim não seja.
E o que é uma pessoa boa?
É uma pessoa que nos faz, naturalmente, sem sequer disso ter especial consciência, melhores. É uma pessoa que tem o dom da alegria. Há pessoas que têm esse dom, essa graça, essa felicidade.
Isso não entronca na noção de amor de que falávamos há pouco?
Sim, é uma bela maneira de se chegar à alegria, à felicidade.
Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003