José Eduardo Agualusa
José Eduardo Agualusa é escritor. Angolano, vive no Atlântico, entre Portugal, África e Brasil. “O Livro dos Camaleões”, uma colecção de contos, é o seu livro mais recente.
“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo” – Fernando Pessoa. Pode falar-me de alguns dos sonhos do seu mundo? De certo modo estou a perguntar pelo que o faz seguir um caminho, investir num sonho, promessas e decepções.
Se é para sonhar, é melhor sonhar em grande. Sonhos grandiosos custam o mesmo que os medíocres. Quanto a mim, sonho com um mundo sem fronteiras, sem exércitos e sem religiões. Um mundo liberto da estupidez e da violência.
O que se aprende nos livros, no cinema, na arte é muito diferente do que se aprende na vida? O que é que aprendeu num livro (por exemplo) que o ensinou a compreender a realidade de outra maneira?
Livros, cinema, arte, são parte da vida. São a vida condensada. A pergunta é um pouco absurda porque, evidentemente, quase tudo o que aprendemos, aprendemos lendo. Tanto os livros técnicos quanto os livros de ficção são territórios de pensamento. Também poderia aprender o mesmo com a vida, é claro, conversando com todos esses autores, cientistas ou romancistas, mas seria muitíssimo mais complicado e dispendioso, e ainda por cima teria de ressuscitar um monte deles.
Quando José Saramago recebeu o prémio Nobel da literatura, isso coincidiu com os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O discurso do escritor português reflectiu essa coincidência. Que direito lhe parece mais ameaçado, posto em causa, que urge fazer cumprir?
O direito à irreverência, à insubordinação, à rebeldia. O direito de pensar diferente, de agir diferente, de não seguir a maioria.
Se pudesse escrever uma carta a alguém, gritar alguma coisa (um insulto, uma advertência, um conselho, uma declaração) seria o quê e a quem? Pode ser a um político. Pode ser ao mundo. Pode ser mesmo a quem quiser.
Ao senhor Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos: “Senhor Presidente, está na hora de se afastar. Crie as condições para o início de uma transição democrática, pacífica, e depois vá-se embora. Vá para Portugal onde tem tantos amigos. Praticamente todos os políticos portugueses, com excepção do pessoal do Bloco de Esquerda, gostam de si, respeitam-no – diria mais, veneram-no. Basta escutar os elogios que lhe faz o Dr. Paulo Portas. Então vá para Portugal, onde tem tanto património, e deixe Angola em paz.”
Como é que explicaria a um jovem que vai votar pela primeira vez, e que quer perceber o essencial, as diferenças entre a esquerda e a direita? O eixo que as divide está onde? Ou, na prática, não o vê e tudo conflui no centrão?
O problema dos partidos tradicionais na maior parte dos países é que perderam a ética. Perderam a ideologia e a ética. Então, na prática, já não há partidos com uma ética de esquerda ou uma ética de direita. São todos iguais. Gente cínica, oportunista, sem valores. O caso português, e a miserável submissão de Portugal aos interesses da cleptocracia instalada em Luanda, é exemplar do que acabo de dizer. O que conta são os negócios, as oportunidades de negócios, não se pensa nos interesses das populações, não se pensa em ética ou em valores. Penso que este sistema faliu. Este modelo de democracia não está a funcionar. Acredito que nos próximos anos iremos assistir a movimentos novos, inteiramente novos, e ao afastamento do modelo actual.
“Caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento, no sol de quase Dezembro, eu vou...”, canta Caetano Veloso. Já não vamos sem lenço, sem documento. Levamos atrás o quê?
Lenços nunca levei. Mas cada vez é mais difícil viajar sem documentos. Uma pena, porque a canção está certa – a melhor viagem é aquela para a qual partimos libertos de tudo. Gostaria de poder partir um dia assim, sem lenço nem documento, nada nos bolsos ou nas mãos. É verdade que já podemos partir hoje sem um saco de livros atrás, sem um saco de discos, basta-nos um IPad. Gosto do livro de papel mas gosto ainda mais de poder ler sem ter de transportar os livros.
O futuro passou a ser uma ameaça, evitar o perigo uma divisa. É mesmo assim? Quando foi a última vez que usou a palavra esperança?
Esperança está longe de ser a minha palavra preferida. Não vejo o futuro como uma ameaça, pelo contrário. Anseio por esse futuro, porque, olhando para trás, sei que a humanidade viveu tempos infinitamente mais estúpidos e mais cruéis. Por vezes parece que recuamos, há instantes de recuo, mas no conjunto acredito que temos vindo sempre a melhorar. Estamos talvez numa crise de crescimento, no limiar de um tempo novo, que irá ser convulso, mas nos trará dias melhores. Os grandes líderes, criadores e pensadores emergem das grandes crises. O tédio é um viveiro de imbecis.
Matilde Campilho disse que a poesia não salva a vida, mas que pode salvar o instante. O que é que salva o seu instante?
Não se atiram versos a um tipo que se esteja a afogar. Atira-se uma bóia. A poesia até pode, eventualmente, salvar vidas, da mesma forma que pode ajudar a fazer bolos, mas não é a sua principal vocação. A mim, melhora os meus dias, todos eles. Além disso a poesia ajuda-me a escrever. Quando me falta o fôlego leio poesia, como quem vai dar um passeio, e depois volto a escrever.
Férias de Verão: dê-me uma recordação das férias de quando era criança. São um dos seus maiores tesouros?
Pular de um baloiço, preso aos altíssimos ramos de uma casuarina – para o mar. Restinga do Lobito. Sol. Banhos de mangueira no quintal. Jantares no Hotel Terminus. Mergulhar entre rochas, na Caotinha. Intermináveis viagens de comboio. Acordar com o ritmo do comboio e espreitar pela janela e ver a savana a desenrolar-se até a horizonte, capim verde e acácias. O meu pai a erguer um écran no meio da paisagem imensa e a passar filmes antigos. Ler. Lia-se muito nas férias grandes.
Pode fazer um curto auto-retrato?
Ninguém repara em mim nos retratos, não sei dançar, não sei cantar, então escrevo romances.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2015