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Anabela Mota Ribeiro

José Eduardo Moniz

29.05.14

A biografia pode resumir-se a isto: açoriano, casado com Manuela Moura Guedes, três filhos. Outra nota biográfica: o rapaz reservado que queria escrever sobre o amor e a perda, a solidão e o medo. O jovem que abandonou uma terra onde não havia muito para fazer. Que sonhou com o outro lado. Aquele que teve filhos e que quer que eles digam: “O meu pai é um homem que faz coisas”; ou: “O meu pai era um companheiro que estava sempre à mão”. 

Outra biografia ainda: patrão da TVI desde há dez anos, antigo director geral da RTP, produtor de televisão, jornalista. Um homem de poder. Um general que decide sozinho e que não se permite desestabilizar as suas tropas. Insecurizá-las. Mesmo que as tropas achem que ele tem um cancro e que pode ir desta para melhor. Não chegam a verbalizá-lo – o que é sintomático desta distância, deste pânico. E ele a topar a cena e a agarrar-se à ideia de que eles precisam dele para se sentirem confiantes. Com tanta decisão quotidiana para tomar, Moniz, o general, ia deixar-se apanhar pela doença? Pela morte? Ora vamos lá fintá-la com a vida de todos dias. Com aquilo que mais importa. A TVI, a família. Xeque-mate.

José Eduardo Moniz tem 56 anos. Comeu peixe, perguntou que legumes acompanhavam. Falámos do quinto canal, dos Morangos com Açúcar, do dossiê Casa Pia. Mais que tudo falámos de quem ele é e do que o fez ser como é. Esteve com gravata e sem ela. Institucional, confessional.

 

 

Tinha a intenção de começar pelos seus dez anos à frente da TVI, mas depois de o ver impressiona-me a sua magreza.

Há quatro anos, por força de um comprimido que tomei para umas arritmias que tenho, arranjei uma situação aborrecida – um hipertiroidismo e uma hepatite tóxica. É um comprimido muito bom, mas dez a 15 por cento das pessoas fazem uma rejeição. Eu tive duas, em simultâneo, e perdi muito peso.


Quantos quilos perdeu?

Quinze, num mês e meio. Entretanto recuperei três. Tive pessoas fantásticas que me ajudaram no dia-a-dia, nomeadamente dois médicos que iam para fora e telefonavam-me a saber como é que eu estava. Mais tarde contaram-me que chegaram a considerar a hipótese de fazer um transplante de fígado.

 

Normalmente os médicos são mais transparentes na relação com o paciente…

Achei graça quando um deles disse: “O seu caso está a ser discutido na Áustria, nunca houve uma situação como a sua”. Não me podia deixar vencer por uma coisa destas. São experiências que nos dão uma grande endurance. Humanizam-nos muito. Sempre andei a 200 à hora e senti necessidade de me aproximar dos miúdos, de me aproximar da Manuela, de estar mais com os amigos. Ficamos com a noção de que a vida é, de facto, precária.

 

Teve medo de morrer?

Não é o medo de morrer. É a preocupação por quem fica. Sou muito protector em relação às pessoas de quem gosto e fiquei um pouco aflito. Logo a seguir caí do cavalo, parti a perna, a vértebra, tudo num período de tempo muito curto. Parecia que um conjunto de azares estava a acontecer.  

 

É comum fazer-se uma reavaliação de tudo quando se vivem grandes provações.

Há a tentação de se passar em revista o que se fez e o que ficou por fazer. Chega-se à conclusão de que há muita coisa que falta fazer. Mas como os médicos não me transmitiram essa noção de gravidade, eu só aflorava o assunto... Nunca deixei de trabalhar.

 

Isso, sim, seria catastrófico? Seria uma confirmação da debilidade?

Talvez. Não é tanto deixar de trabalhar, é deixar de fazer coisas.

 

Qual é a diferença?

A gente tem que passar pela vida deixando qualquer coisa, fazendo coisas. Escrevendo, ou construindo, não sei. Só ao fim da segunda semana é que tive a noção de que qualquer coisa se passava. As pessoas olhavam para mim e eu estava mais magro e branco; tentava manter o entusiasmo, e entrar nas reuniões e intervir do mesmo modo. Embora fosse notando progressivamente uma fraqueza maior, um cansaço acentuado.

 

Como é que olhavam para si?

Nunca ninguém me disse isso, mas acho que eles achavam que eu tinha um cancro.

 

Um líder não pode ter um cancro…

Não pode. A minha preocupação era transmitir às pessoas em casa e àqueles que trabalhavam comigo que isto era uma coisa passageira. Não me pergunte se fiz isso de forma premeditada. Foi automático.

 

Quando é que aceitou que qualquer coisa se passava?

Quando fui provar um smoking para uma gala da TVI, numa sexta-feira, e na quinta-feira seguinte sentir que o casaco estava gingão, que as calças estavam largas…

 

Com quem é que teria intimidade para confessar a sua aflição? Pergunto de outro modo: a quem é que é capaz de revelar a sua vulnerabilidade?

A pessoa a quem melhor posso dizer isso é a Manela. Embora não tenha dito. Procurei que nem o meu irmão, nem a minha mãe nos Estados Unidos, nem as minhas irmãs soubessem. Eles vieram a aperceber-se de que tinha caído do cavalo por uma revista que chegou aos Estados Unidos. Não vale a pena. A gente ultrapassa estes problemas.

 

É o general sozinho no seu labirinto.

Há coisas que temos de enfrentar sozinhos. E se agimos de forma diferente, vamos transmitir a terceiros uma noção de fragilidade. Pior do que isso, podemos introduzir situações de insegurança. E elas, para estarem bem com a vida precisam de se sentir seguras. Se nós lhes transmitirmos essa segurança, para quê perturbar essa lógica?


Na sua história de vida, quando é que percebeu que estava por sua conta, que eram os outros que dependiam emocionalmente ou materialmente de si?

Eu sou muito dependente emocionalmente.

 

Ah sim? É até comovente assistir à paixão que tem pela sua mulher, mas parece sempre de uma enorme auto-suficiência.
Ninguém admitiria que eu tivesse outra imagem.

 

Avancemos, então, para aquele que eu pensava ser o ponto de partida: os dez anos à frente da TVI. Usando uma das suas armas, que é a provocação, pergunto-lhe se está entediado com o sucesso?

Não. É muito confortável ter sucesso. Mas o sucesso pode ser uma armadilha. As pessoas correm o risco de se deslumbrarem com elas próprias e entram num círculo vicioso, não sendo capazes de perceber que as circunstâncias que as conduziram a determinada situação não são eternas. (Hesitei entre vir com gravata ou vir sem gravata, não sabia que tipo de coisa é que íamos fazer. Ia sair sem gravata, depois voltei atrás.

 

Esclareço: estou a entrevistar o patrão da TVI, mas também o José Eduardo, e nesse sentido pode tirar a gravata se se sentir mais confortável.

Agora já cá está. Desde que vim de férias, é a terceira vez que ponho a gravata). Falando de monotonia, não se pode estar eternamente a fazer a mesma coisa. A gente precisa de se provocar a si próprio, precisa de se incentivar a si próprio. No dia em que entrei na TVI tive vontade de desistir. As caras das pessoas não emitiam sinais de credibilidade, confiança, esperança. Você hoje entra na TVI e não é nada do que era. Sem querer fugir à pergunta: não sofro propriamente de tédio, confesso que às vezes me apetece fazer outras coisas.

 

É uma forma eufemística de dizer que está entediado?

Não diria isso. O nível de responsabilidade que tenho hoje aumentou muito relativamente àquele que tinha na altura. Eu divirto-me a entrar na sala da redacção para discutir os alinhamentos dos jornais, e fico chateado porque não tenho tempo para lá estar. Gosto de participar na criação das várias histórias que vão servir de base às novelas e às séries.

 

Gosta de participar? Tanto quanto sei decide as intrigas, os títulos, os actores...

Eu não decido tudo, participo.   

 

Está a ser delicado para com aqueles que assumem a coordenação dos projectos.

Eu participo nas coisas. Se há coisa que posso ter feito bem na TVI foi a criação desse espírito de corpo e de partilha. Mas para voltar atrás: dá-me gozo entrar nesses processos criativos, mais do que acompanhar a execução dos projectos. Por exemplo, no caso de “Ninguém como tu”, que foi a novela que coincidiu com a fase dos azares…

 

Curioso chamar-lhe a fase dos azares e não a doença...

Recordo-me de me terem mostrado as imagens e ter apanhado uma fúria: “Não me metam esta coisa no ar. Isto parece aquilo que antigamente se fazia para a RTP.” Voltaram atrás e fizeram uma grande novela. Onde me sinto melhor é na redacção. Tenho imensas saudades de fazer um programa de informação. [Jornalista] é aquilo que genuinamente sou; nada me daria mais prazer do que despir estas vestes de director-geral e voltar a ser uma pessoa que faz coisas [na informação].

 

Deve ser tramado uma pessoa descobrir que aquilo em que é muito bom ou se distingue não é aquilo que mais gosta de fazer.

Vai perdoar-me a vaidade, mas acho que sou bom a fazer as duas coisas. Eu não planeei isto. Isto foi acontecendo. Foi acontecendo na RTP, foi acontecendo aqui. As circunstâncias em que vim para a TVI são extremamente curiosas: foi um convite do Eng.º Belmiro de Azevedo e da Lusomundo. Eles deixaram-me na TVI e saíram dois meses depois. Imagina a orfandade em que fiquei, com gente que mal conhecia.

 

Significa que não é tão estratégico e pré-determinado? Consigo perceber que um miúdo de 18 anos diga que quer ser jornalista e não diga quer ser patrão de uma televisão. Mas a partir do momento em que assume a direcção da RTP, fica claro que nunca será apenas um jornalista.

Fiz sempre um esforço, quando estive na RTP, e consegui, para manter um programa no ar. Fazia um jornal ao sábado.

 

Porque é que isso era tão importante para si?

Porque sou jornalista. Gosto que as pessoas me percepcionem como jornalista.


Como é que se dá o jornalista com os programas mais emblemáticos destes dez anos, o Big Brother e os Morangos com Açúcar? Por muito orgulho que sinta por ter feito da TVI uma estação de sucesso, isso não fez dela uma estação de referência – como um jornalista que faz jornais diria que aquela estação é uma estação de referência.

Uma coisa é a discussão intelectual, e podemos conduzi-la para onde quiser, outra coisa é quando se lida com a realidade e temos de ver qual é o quadro e como é que vamos agir. Se eu estivesse na RTP estava a fazer uma estação de televisão diferente da que tenho na TVI. A RTP tem obrigações que uma estação de televisão privada não tem. Mais, a TVI se quer fazer alguma coisa tem de arranjar dinheiro onde ele existe – no mercado. As pessoas que compraram a estação puseram lá o seu dinheiro e precisam de ser ressarcidas disso. Se olhar para a TVI de hoje verificará que tem uma informação que é ágil; pode ser muito criticada por isto, por aquele ou por aqueloutro, mas deu passos muito grandes relativamente ao que era. Não só é respeitada como é receada. Diria mesmo que no panorama das televisões, é a única.

 

Ser temido ou receado é uma coisa, ser respeitado é outra.

Não, não. Só se receia quem se respeita.

 

No período Casa Pia, por exemplo, foi feito um jornalismo que abraçava uma causa. A TVI era temida, não sei se respeitada.

Não concordo com a sua afirmação. O jornalismo tem uma causa, que é a causa da verdade. Em relação ao dossiê Casa Pia, como em relação a qualquer outro, a nossa procura é a da verdade. Eu não tenho nem inimigos nem amigos nestas situações, não tenho preferências nem antipatias. Aquilo que peço aos meus jornalistas é que sejam sérios e trabalhem com o máximo de rigor possível. Admito que quando se dá uma notícia de uma determinada maneira, as pessoas em casa possam dizer que estão a insistir em fazer isto ou aquilo...

 

Manipular – é a palavra usada.

Manipular é coisa que não fazemos.

 

A acusação era essa.

É o mesmo com os comentadores de futebol. O tipo do Benfica acha que o comentador de futebol é um vendido ao Sporting, o do Sporting diz que está vendido ao Benfica. Depende da palavra que usa.

 

Ou do ângulo.

Ou do ângulo de abordagem que tem. Aqui, se está à procura da verdade, vai, mais do que afrontar pessoas, enfrentar pessoas. Foi o que fizemos. Não procurámos agir como se houvesse um país dos ricos e dos poderosos e um país dos pobres e dos maltratados. O que fizemos foi: vamos tratar todos por igual. Se isto incomoda muita gente, e incomodou, paciência. Para ver o cuidado que pusemos nisto, fomos a primeira estação a ter na redacção apoio jurídico permanente. Temos um advogado disponível para todos os jornalistas e para acompanhar as matérias mais sensíveis. Para dizer: “Vocês não podem fazer isto”…

 

Ou: “Podem e o risco é este”.

Portanto, nós somos muito conscientes da nossa responsabilidade. Tomara que os outros fossem assim.

 

Houve acusações do tipo: “A TVI fez a defesa das vítimas e substituiu-se ao juiz, fazendo uma espécie de tribunal popular nos seus jornais”.

Não condenámos ninguém nem julgámos ninguém – isso compete aos tribunais. É normal que estivéssemos mais do lado de quem foi vitimizado do que do lado de quem não se sabe se é ou não é culpado. Não apontámos o dedo ao A, ao B, ao C, dizendo “é culpado, fez isto, fez aquilo”. Fazíamos questão de difundir antes de cada notícia um texto, sublinhando, precisamente, que todas as pessoas mencionadas como arguidas, ou suspeitas, tinham direito à presunção da inocência.

 

Sente-se orgulhoso do trabalho jornalístico que foi feito no canal que chefia?

Sinto-me globalmente satisfeito com o esforço que tem sido feito ao longo dos anos no sentido de melhorar a informação na TVI. A TVI não é perfeita, nunca foi perfeita, mas é uma informação que se esforça. Quando relançámos a TVI no ano 2000, utilizámos a expressão “Quem não tem cão, caça com gato”. Eu não tinha dinheiro para contratar jornalistas, não tinha dinheiro para nada. Trabalhámos com muitos estagiários e alguns amigos meus que decidiram arriscar – por serem meus amigos – e saíram dos sítios onde se encontravam para virem ganhar basicamente o mesmo. Em relação a essas pessoas, tenho uma dívida de gratidão que nunca saldarei.

 

Está a falar do Mário Moura?

Estou a falar do Mário Moura, do António Prata, da própria Manela, que não precisava nada disto.

 

Convenhamos que não seria muito fácil para ela estar a trabalhar noutro sítio, concorrendo consigo.

Admito que fosse uma situação complexa. Mas nós nunca deixámos de nos sítios certos, e muitas vezes nos sítios menos adequados, manifestar as posições que tínhamos sobre as coisas, e muitas delas discordantes. É evidente que eu sei que a decisão final é sempre minha. Mas isso não significa que as outras pessoas sejam demitidas de pensar ou de expressar os seus pontos de vista. Aprecio muito mais as pessoas que expressam os seus pontos de vista, e que o fazem com veemência, do que aqueles que me passam a vida a dizer que sim.

 

Dizendo a uma ou outra pessoa que o vinha entrevistar, quase sempre me falavam, a seguir, na sua mulher.

E então?

 

Pensam, por vezes em público, divergentemente, mas socialmente, e são lidos como uma mesma entidade, fusional.

Se calhar porque procuramos a mesma coisa, no que diz respeito à nossa actividade jornalística. Isso não significa nem no meu caso nem no dela que não mantenhamos as nossas identidades. Há questões que nos aproximam muito, há questões que nos separam. Temos feitios diferentes: um é mais expansivo, o outro é menos, um é mais reflexivo, o outro é menos. Mas nem ela com o seu comportamento me inibe de tomar as decisões que eu entenda que devo tomar, nem ela vai mudar de opinião porque eu não concordo ou decidi contrariamente àquilo que era a vontade dela.

 

Façamos uma pausa no assunto TVI para falar da vossa dinâmica de casal. Essa tensão é uma pedra essencial para entender a vossa relação?

É capaz de ser.

 

É como se um tentasse sempre vencer o outro num braço de ferro. Deixa ver quem manda mais.

Não, isso não. Isso é uma extrapolação que você está a fazer e que acho que não faz sentido nenhum.

 

Então, como é que é?

Se há coisa que procuramos, é que nunca se sinta aquilo que você expressou. Sabemos onde é que é o limite. A gente percebe o que é que o outro pensa. Não vale a pena esticar a corda quando cada um sabe exactamente o caminho que as coisas devem tomar. Nós temos tanta energia e tanta vontade de fazer coisas, projectar-nos nas coisas, em coisas úteis… Outras coisas só servem para degradar relações. Não estou interessado nisso.

 

O temperamento dela é parecido com o da sua mãe?

Não. São muito diferentes. Muito diferentes.

 

As figuras que habitualmente referencia são o seu irmão Milton e o seu pai. É um quadro masculino, insular e reservado; com um grau de aventura, também, que fez os seus pais emigrarem para os Estados Unidos, e o seu irmão construir uma carreira de sucesso. Mas é tudo cerebral. Nunca é a coisa expansiva e carnal que a Manuela incarna.

É uma interpretação como outra qualquer. Não sou das pessoas que acham que o sítio onde se nasce não tem influência. Claro que os Açores moldaram o meu carácter. A lógica da reserva, da resistência, a capacidade de imaginar outras coisas e criar outras coisas, nasceu lá.


Sonhar com o que está do outro lado?

Com o que está do outro lado.

 

A sua paixão pelos livros e a decisão de se licenciar em Germânicas têm que ver com isso?

Sim. Era uma sociedade muito fechada. Controlávamos comportamentos, instintos, as nossas vidas todas. Gosto muito dos Açores. Levei lá os meus filhos mais novos pela primeira vez no ano passado.

 

Pela primeira vez? Como entender isso?

Foi um conjunto de circunstâncias. Mostrei-lhes a minha terra, refizemos os meus percursos...

 

Passaram muitos anos, o que havia ali para doer, já não dói…

Fez-me impressão passar à porta da minha casa. Vivem lá umas pessoas. É óbvio que não bati à porta. Mostrei-lhes o campo de S. Francisco onde eu ia às festas do Santo Cristo e onde passava a maior parte do tempo, porque a escola primária era aí. E era um ponto de encontro. Como aquele local na matriz onde os estudantes de Ponta Delgada se encostavam à parede, porque não havia muita coisa para fazer.

 

Chorou? É um homem que chora?

Sem problema nenhum. Aliás, o meu filho mais novo ficou muito impressionado quando morreu o meu grande amigo Adriano Cerqueira e me viu completamente desolado. Coincidiu também com a fase em que eu estava mal. Ainda hoje me fala nisso.

 

É estranho que tão tarde tenha levado os seus filhos ao sítio onde nasceu. Faz-me perguntar pelo desejo de partir e não voltar atrás; pela vida nos Açores, em suma.

Foram as circunstâncias familiares, posteriores à minha vinda para o continente, que não propiciaram isso. Os meus pais saíram, as minhas irmãs saíram, tenho lá umas primas, umas tias. Por outro lado, fomos criando raízes aqui. Nos últimos sete ou oito anos, passámos a ir para o Alentejo. As viagens: tenho muitas para fazer todos os anos, em trabalho, se puder prescindir de algumas, prescindo.

 

Quer ser enterrado nos Açores? No Alentejo? Onde é que mais pertence?

Gostaria que lançassem as minhas cinzas no mar dos Açores.

 

Pensou nisso quando esteve doente?

Não, porque era um pensamento que queria afastar da cabeça. Eu nem sequer podia deixar transparecer que esse pensamento pudesse estar no meio de mim.

 

A sua família partiu dos Açores e preferiu vir estudar para Lisboa a seguir com eles. A sua biografia normalmente arruma-se em duas linhas. Açoriano, tem um irmão, e raramente se fala das suas irmãs.

Mas gosto muito delas e devo-lhes muito. Fizeram tudo para que eu fosse um menino metido dentro de uma redoma. A minha mãe é uma senhora adorável, muito pequenina, tem 92 anos e está cheia de força e vitalidade. Vive nos Estados Unidos e fica feliz cada vez que lá vou com os netos.

 

O seu irmão, que é 15 anos mais velho e que enriqueceu, era olhado como um exemplo de sucesso? Havia alguma competição na vossa procura pelo sucesso?

Não. Sempre gostei de ver o sucesso dele como um incentivo a que eu tentasse não ficar atrás. Não era uma competição.


Não? A palavra competição tem uma carga muito negativa. Mas pode ser um incentivo, justamente.

Era..., sei lá, era mais afirmação do que competição. O meu pai gostava que eu tivesse ido para Direito, o meu irmão gostava que eu tivesse sido economista. Não fui para uma coisa nem outra e não fui porque me pressionavam para ir.

 

E foi para um curso que era, na altura, um curso de meninas.

Eu era o único rapaz numa aula de Liceu em Ponta Delgada, no meio de 30 raparigas.

 

Por que é que queria ser escritor?

Acho, modestamente, que tenho capacidade para isso.

 

Escreve?

Não tenho tempo, mas gostaria.

 

Seriam sobre o quê, os seus livros?

Os melhores temas que a humanidade tem são os homens e as mulheres. Não têm de ser as relações amorosas.

 

Temas como a solidão, o medo, a coragem, a traição, a ambição?

Tudo isso que você lê nos livros do Steinbeck ou do Conrad.

 

Quando se reformar da televisão, pensa escrever?

Mais do que pensar, desejo fazê-lo. A gente tem sempre medo. Quem está ligado ao audiovisual durante muito tempo, a determinada altura pode começar a ter dúvidas sobre a sua própria capacidade. É evidente que tenho receio de como as pessoas olharão para aquilo, se por ventura me aventurar por aí. A forma como vão olhar será certamente muito mais exigente e crítica do que noutras circunstâncias.

 

Olhou para o “Equador” do Miguel Sousa Tavares como um incentivo? Apesar de terem percursos distintos, ambos são jornalistas a aventurar-se na escrita.

Acho que não escrevo mal as coisas que escrevo. Sou um bom analista das pessoas. E sou um razoável intérprete da realidade. Acho que tenho algumas condições para isso [escrever e publicar]. Tenho a impressão de que há uma gaveta que está fechada e que se pode abrir. Pode existir alguma coisa lá dentro –  se é boa ou má, não sei. Estávamos aqui para falar dos dez anos da TVI, não era?

 

Também. Mas antes de voltar à pasta televisão, quero saber se gostaria de ser recordado como jornalista, ou até como escritor. Ou como o homem que faz uma exemplar gestão de novelas e de programas consumidos por pessoas que não aquelas com quem imediatamente vive?

A pergunta, tal como a fórmula, está a implicar um juízo de valor relativamente aos destinatários do meu trabalho. Os consumidores de novelas, ou seja do que for, têm para mim o mesmo valor e os mesmos méritos do que aqueles que não gostam desse tipo de programas.

 

Voltemos lá à televisão. Como é que fez da TVI um canal de sucesso?

Em 98, quando entrei, sabia que a TVI tinha de crescer. Mas não sabia que caminho ia percorrer. Sabia que tínhamos de adoptar uma postura mais provocadora, até para que os outros nos reconhecessem importância. Em segundo lugar sabia que tinha de contar histórias, e tinha de as contar bem contadas. Há dois domínios onde se contam histórias: o da informação e o da ficção. Na informação sabia que ia ser um combate difícil, porque a RTP existia há muitos anos e a SIC tinha conseguido consolidar uma posição. No domínio da ficção também não ia ser fácil, mas tínhamos uma chance, porque a ficção estava dominada pelo idioma brasileiro. E, tendo a SIC impedido o acesso ao produto Globo, tínhamos de fazer uma aposta.

 

E começaram a produzir a vossa ficção.

Juntámos os nossos parcos recursos e conseguimos, com um homem que acabou por ter um papel importante, o António Parente, começar a produzir novelas de forma consistente. Eu olho para si e você não é consumidora de novela tradicional da TVI. Mas eu tenho de ter uma estação que seja capaz de falar consigo e com a minha empregada lá de casa, com o advogado ou com o homem da calçada, sem menosprezo por qualquer uma das pessoas. Procuramos que haja denominadores comuns. Que haja formas de aproximação. Eu não disse que queria fazer uma estação de televisão [para as classes] AB, eu disse que queria fazer uma estação de televisão que acolhesse os AB, mas que não corresse com os outros.

 

Mas é focada nos CD.

Não, não. A TVI é aquela que mais AB tem. As audiências no Big Brother foram uma surpresa fenomenal:era muito AB. Foi uma das razões para o nosso sucesso.

 

Não havia na minha pergunta qualquer discriminação. O que me interessa é saber da sua realização íntima. E parecia-me lícito presumir que preferirá ser lembrado como o jornalista ou o escritor e não como o responsável último pelos Morangos com Açúcar.

Sabe que não penso nisso? Por quem tenho de ser lembrado é pelos meus filhos. Eles têm de ter orgulho no pai. E têm de poder dizer: o meu pai fez coisas. Não sei como é que gostaria de ser lembrado, para lhe dizer com toda a honestidade.

 

Como é que acha que os seus filhos olham para si? “O meu pai é um homem que faz coisas?”

Acho que acham que é o Senhor TVI, primeiro ponto. E segundo, acham que sim, que é um homem que faz coisas.

 

O Senhor TVI? É a primeira coisa que os seus filhos pensam do pai?

Não, não é, mas no contexto profissional sim. Espero que olhem para mim como o companheiro que tinham à mão sempre que precisavam, sempre que queriam.

 

De momento, e desde há dez anos, é o Senhor TVI. Mas fala-se muito do seu nome para chefiar o quinto canal a emitir em sinal aberto, em 2009.

Se eu lhe contasse a quantidade de coisas para as quais o meu nome terá sido indigitado...

 

Diz-se que o projecto do quinto canal foi desenhado por si e que a sua relação de proximidade com o Joaquim Oliveira, o virtual vencedor, pode dar frutos.

Só há um ponto que corresponde à realidade. A minha relação com Joaquim Oliveira não é de proximidade, é de amizade. O Joaquim Oliveira faz parte dos meus bons amigos, daqueles que eu sei que se algum dia precisar de alguma coisa estarão lá. Ele sabe o mesmo. Quanto ao resto, nada tem fundamento. Admito que o meu nome seja falado para o quinto canal porque a vida não correu mal à TVI e o meu preço de mercado poderá ter subido.

 

É uma questão complexa. A primeira parte está exposta em cima; a segunda diz respeito às suas relações com a Prisa, que consta não serem as melhores, sobretudo depois de a Manuela Moura Guedes ter sido retirada do ar. É um daqueles momentos em que o profissional e o pessoal se imiscuem… Foi um sapo que engoliu mas que não perdoa à Prisa?

Eu vou apenas sorrir em relação à sua afirmação. Não gosto de falar sobre essa matéria e não quero alongar-me sobre ela. A única coisa que tenho de dizer é que a Manela está no ar, tem um programa que é uma referência da TVI e que traduz o espírito que quero que a informação tenha – frontal, irreverente, verdadeira. Prefiro responder desta forma do que perder tempo a regressar ao passado.

 

Por que é que não quer dar tempo, espaço e importância, a uma coisa que aparentemente tem uma grande importância? Não foi uma coisa de somenos o que aconteceu.

Desculpe lá, mas não quero perder tempo com isso.

 

Outra provocação: diz-se que está milionário. O que é que faz ao dinheiro?

O dinheiro tem na minha vida a importância que tem para a generalidade das pessoas: é para lhes dar conforto. Não quero ser milionário nem multimilionário. Quero viver bem. Quero ter hipótese de viver numa boa casa, viajar, visitar duas ou três vezes por ano a minha mãe aos Estados Unidos…, enfim, as coisas normais que as pessoas fazem.

 

A sua ambição não é focada no dinheiro. Mas é claramente ambicioso. Não estaria onde está se não o fosse.  

Eu acho que não. Se imaginasse a forma como encaro a precariedade disto, não faria esse tipo de juízos. O poder é uma coisa extremamente transitória. Ser director da TVI é uma função transitória. Aquilo que eu sou é jornalista.Tenho algum poder, no sentido em que posso determinar coisas que metemos no ar. Mas limita-se a isso. Da mesma maneira que o tenho hoje, amanhã posso deixar de ter. E convivo perfeitamente com isso.

 

Pensa muitas vezes no Emídio Rangel?

Não.

 

Houve um momento em que competiam, eram os patrões da televisão em Portugal. Rangel está no defeso há uns anos e eu pergunto-lhe se acha que isto também lhe pode acontecer.

Claro que me pode acontecer. Já aconteceu. Fui várias vezes para a prateleira na RTP – consoante mudavam os governos, ia para a prateleira. A piada era que os mesmos governos que me tinham posto da prateleira, passado dois meses, ou três, ou quatro ou cinco, me vinham convidar para voltar. Não tenho dúvidas sobre a transitoriedade das coisas. Se do meu trabalho os resultados visíveis tivessem sido outros, não estava nas funções em que me encontro hoje. Se calhar a pergunta que me estava a colocar seria esta: como é que agora lida com o facto de ter deixado de ter poder.

 

E nessa altura estaria ainda mais sozinho? Dava, na primeira parte da conversa, a ideia de um general sozinho – que não pode passar aos que o rodeiam qualquer vulnerabilidade. Olha para si como um homem só?

Sinceramente não sei que resposta dar. Como todas as pessoas, preciso de ter gente com quem desabafar, gente com quem partilhar. Fico extremamente desiludido quando a confiança que deposito em alguém, mais no pessoal do que no profissional, obviamente, não é correspondida.

 

Precisa de descansar da responsabilidade de ser um líder? Precisa de sentir-se one of them?

Tomara eu. Tomara eu que a empresa vá funcionando cada vez com mais rotinas.

 

Mas a empresa funciona à espera da sua decisão – até em coisas miúdas. Um exemplo: a sua secretária não quis marcar a hora da entrevista, mesmo depois de ter dado o seu assentimento, porque estava fora.

Sobre a minha vida, apesar de tudo, tenho de decidir.

 

Decide sozinho e é o homem que manda.
De que a decisão é um acto solitário, tenho bem a noção. Não há volta a dar-lhe.

 

 

Publicado originalmente no Público em Setembro de 2008