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Anabela Mota Ribeiro

José Gabriel Trindade Santos

02.11.21

José Gabriel Trindade Santos é filósofo. “Não há nada mais espantoso do que estarmos aqui a conversar, do que haver um sentido para isto. Tenho quase 70 anos, a única coisa constante na minha vida foi ter sido professor.” A entrevista são três horas de pé, em movimento, como os peripatéticos, à procura das passagens exactas que exprimem o que quer dizer. A mais bela citação: “Que inútil fardo seria eu, caminhando entre as naus, se não lutasse?”. Ouvi-lo é encontrar algumas respostas para a pergunta “para que serve a Filosofia?”.

Doutorou-se em Platão. “Li dezenas de milhares de páginas, tirei muitas páginas de notas. Se vir a minha tese, são duas. A tese propriamente dita, e a bibliografia, as notas críticas. São 900 páginas feitas em quatro anos e meio.” Em 1988 estudou em Oxford. A orientadora, Maria Helena Rocha Pereira, tinha-lhe dito: “Agora tem que viajar, precisa de explicar porque é que isto é uma tese”. Antes disso, no pós-revolução, começou a ensinar. No liceu Passos Manuel, no Pedro Nunes e no Camões. Depois no departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O seu primeiro livro foi Filosofia no Liceu (“que ainda hoje é citado, para dizer bem e para dizer mal, como todos”). Tem uma obra extensa, traduções do grego, análise crítica. Ainda este ano deve ser publicada uma tradução do Sofista de Platão, de cujo projecto é o coordenador geral.

Desde 1998 que se transformou “cada vez mais num investigador, e cada vez menos num professor”. Mas o que faz no Brasil, onde vive desde 2003, é ensinar na Universidade Federal da Paraíba. O Saber é o tema da sua vida.

  

Comecemos por um verso da Antígona: “O homem nada sabe até queimar os pés no fogo ardente”. Sendo um dos temas da sua vida o Saber, mesmo enquanto estudioso dos clássicos, como é que lê esta frase?

[Procura na estante a Antígona ] É muito difícil responder sem saber do contexto. Não gosto da tradução, não estou a reconhecer o grego por baixo. Entendo a vida como uma luta. “Queimar os pés no fogo ardente”: acontece-me constantemente. A todo o momento, e aqui vem a lição de Sófocles, o sofrimento é aprendizagem. O sofrimento pode manifestar-se das mais variadas formas, nomeadamente na ignorância, e na presença da estupidez, que é o maior inimigo.

 

O que entende por estupidez, neste contexto?

A estupidez é a incapacidade de distinguir o essencial do acessório, a incapacidade de estabelecer uma prioridade, de perceber o que está em causa num problema. É o caso da Antígona. Creonte põe a sua prioridade à frente das outras. Não vê os sinais, não ouve os avisos; vai em frente, fiel apenas ao desígnio que traçou. A consequência é a morte, primeiro, da mulher e, depois, do filho.

 

Antígona é um texto ao qual regressa no seu estudo. As leituras que vem fazendo divergem muito umas das outras?

O primeiro texto que escrevi foi entregue em homenagem à Prof. [Maria Helena] Rocha Pereira, em 1995, cinco anos depois do doutoramento. A minha última interpretação da Antígona diverge das anteriores, e é uma interpretação ritualista. O drama da peça é o conflito entre dois rituais. Creonte percebe que tem de atender aos desígnios dos deuses olímpicos, mas não pode infringir os decretos dos deuses infernais. Não pode deixar mortos ao cimo da terra, e não pode sepultar vivos. A única forma de compreender que não pode misturar os reinos é ver partir dois entes queridos, pela sua própria mão.

A maioria dos comentadores da Antígona, até 1990, insistia em análises psicológicas ou políticas do conflito, a partir das personalidades dos protagonistas. Antígona é obstinada, Creonte é obstinado; mas a obstinação não é a causa do comportamento, é a qualificação que se dá ao comportamento. Há um antecedente e um consequente.

 

Há dois tipos de compreensão. Aquilo que só se sabe quando queimamos os pés no fogo ardente, e o saber livresco, distinto daquele.

A última palavra da Antígona é “aprendeu”. Não é saber, é aprender. Aprender é uma coisa que acontece a uma pessoa. Saber é uma coisa que acontece quando, em função do exercício de uma capacidade, algo é efectivamente sabido.

O acto da aprendizagem é um episódio na vida de uma pessoa. O saber é um estado: ou se sabe ou se ignora. Pode haver processos que medeiam entre estes dois estados – a opinião, a sensação. São falíveis. Nunca se sabe efectivamente.

 

“Só sei que nada sei”, parafraseando Sócrates. Na modernidade, fala-se de ignorância e de irresponsabilidade. Ouvimos pessoas dizer: “Não tenho culpa, não sabia”.

Mas têm. A noção de culpa não se aplica na Grécia antiga como se aplica hoje. O homem grego tem noção das suas limitações, e sabe que quando as excede, paga por isso.

 

Quando é que a noção de que a vida é uma luta, e de que o aprender e o saber são essenciais, aconteceu na sua vida?

Em momentos diferentes. A noção de que a vida é uma luta surgiu algures nos meus 17 anos, quando num jornal de estudantes, para o qual concorria, o director me encarregou de fazer uma entrevista ao Dr. Rogério de Freitas, que veio a ser secretário de Estado da cultura, muito depois do 25 de Abril. Uma das perguntas que me sugeriu que fizesse era “Porque luta?”. Achei uma pergunta estúpida. Naquele tempo, e para a minha formação, a minha cultura, a minha superficialidade, essa não era uma pergunta que se fizesse. Calcule que ela dizia que era do Partido Comunista…

 

O perigo era fazer perguntas inconvenientes?

Entendi-a como uma pergunta inconveniente. Disse ao Dr. Rogério de Freitas: “Instruíram-me para lhe fazer esta pergunta”; ele respondeu: “Excelente pergunta”. Pus-me imediatamente em causa. Mas tem que haver qualquer coisa que justifique a luta. Tem que haver um princípio, um fim, um ideal.

 

O que está em causa é a força das palavras. As palavras que se usam para interpelar o outro. Anos mais tarde, a questão da linguagem acabou por ser central no seu estudo.

As palavras sempre foram importantes na minha vida. A primeira palavra é “filósofo”. Filósofo era a minha alcunha no primeiro ano do liceu, em 1950. A minha ligação à Filosofia começou quando não fazia a mínima ideia do que isso era. Com 11 anos comecei a ler a História da Filosofia de August Messer, e não percebia rigorosamente nada. Se eu era o filósofo, se estava ali um membro da filosofia, chamado História da Filosofia, e se não entendia uma palavra, alguma coisa estava errada. Havia que lutar para enfrentar esse erro.

 

Livros em casa?

Nenhuns.

 

Quando é que se dá o encontro com essa construção do que era um filósofo?

O professor de Desenho pediu-me que desse provas de um trabalho, e respondi qualquer coisa como: “Ninguém consegue dar provas de um trabalho absolutamente realizado”. Ele, que se chamava Calado Lopes, voltou-se para mim, apertou-me no pescoço, e disse: “Sr. Trindade Santos, o senhor é um filósofo”.

 

Qual é a primeira memória que tem de si?

As primeiras memórias são fabricadas. A primeira memória segura que tenho de mim é do dia do meu 4º aniversário. A minha mãe deu-se um sobretudo creme, com muitos botões. É claro que essa memória é condensada numa fotografia tirada nesse dia, nos Restauradores.

 

A noção de memória está umbilicalmente ligada à de identidade, outro dos temas essenciais do seu estudo.

Quando alguém me chama filósofo, e reconheço essa qualificação, o que estou a fazer é tentar construir uma identidade, que não tenho. Não sei quem sou, não faço a mínima ideia, mas sei o que quero ser: um filósofo. E como é que se é filósofo? Estudando Filosofia. Tenho dez, 11 anos, os meus encontros com a História da Filosofia realizam-se na biblioteca do liceu. É como uma imagem poética muito gasta, a imagem do espelho partido, um fragmento de espelho. Um menino sentado a uma mesa, com um livro enorme em frente, tentando compreender qualquer coisa. Mas que acaba por ter um peso na vida dele (peso que ele vai impondo a si próprio).

 

Uma procura de quem era?

Não tinha noção disso, bastava-me um papel que estivesse de acordo com a minha natureza. Aquele papel era o que me estava a ser concedido, e aceitei-o. Aprendi a amar esse papel. Estranhamente, ao longo da vida, continuo a ser devorado pela vontade de saber, e provocado pela minha ignorância. Isto tem consequências terríveis na acção. É-me muito difícil decidir qualquer coisa, estou sempre a pensar noutra.

 

Isso contraria a ideia de que, quando sabemos, decidimos melhor.

Na minha perspectiva, o estado de Saber nunca é atingido. Há sempre uma relação entre o que nos é pedido e o que somos capazes de dar. Quando essa relação se exprime de forma adequada, conseguimos realizar os nossos objectivos, pelo menos parcialmente. Mas é uma vida levada nas sombras em busca da luz. Também não são trevas completas. É procurar, chegar a qualquer coisa. E é terrível, isto? Não, não é. Sempre que se encontra uma resposta, sempre que se publica um texto, se dá uma aula, se dá uma entrevista, faz-se luz.

 

Na Odisseia, quando Ulisses vai ao Hades, um mundo de sombras, encontra Aquiles que lhe diz que mais vale ser servo da gleba na Terra do que rei de todos os mortos no Hades. Ocorreu-me esta passagem a propósito do desejo de encontrar a luz, viver na luz. Nem que seja na condição de servo da gleba.

Um momento de luz. Conseguir encontrar uma resposta. Neste momento tenho que resolver um problema de um texto que estou a escrever, conseguir compreender o sentido da tese defendida por Sócrates no Fedro – de que o Amor é uma divindade. Para um grego, dizer que o Amor é uma divindade é como dizer hoje que o amor é a mais imediata expressão da nossa transcendência. Amando, transcendemo-nos.

 

Somos outros, saímos de nós.

A força que nos faz sair de nós só pode ser encarada como uma força divina. Nessa medida, saímos de nós quando amamos. E todos temos em nós, a todo o instante, a medida da nossa transcendência e a capacidade de a efectivar, através do Amor. No amor físico, evidentemente, e em todas as outras espécies de amor que estão associadas ao amor físico. Dizer que o Amor é divino é dizer que é a força que pode levar todos os homens, machos – não estamos a falar de mulheres – a transcenderem-se.

 

Parece que estamos a falar de coisas de todos os dias.

E estamos. Isso é que é a grande vantagem da Grécia: está viva todos os dias. A Grécia não está fechada em bibliotecas, em museus, em rituais absurdos, nas universidades. Tudo o que há para além da Grécia são reconfigurações da mensagem grega. Isto não acontece, por exemplo, a um árabe.

 

É outra matriz.

No séc. IV, V, VI, VII, não era outra matriz, depois é que se transformou noutra matriz. É preciso não esquecer que a mensagem da Grécia ao ocidente, às universidades medievais, chega também através dos árabes. Aprendemos muito com eles, e há ainda muito para aprender. Khadafi disse recentemente uma coisa terrível: “O Mediterrâneo está em guerra”. Outra vez?, pensei eu. A luta no Mediterrâneo éum enorme problema político que a Europa tem que resolver. E vai pagar a conta, seja qual for o resultado do conflito. O Mediterrâneo é o centro do mundo.

 

Nas últimas décadas achamos que o centro do mundo é o Médio Oriente.

O Médio Oriente ainda é o Mediterrâneo, é o levante. De novo estamos a voltar a uma antiga matriz. Desta vez não é por causa de deuses, de impérios, de civilizações, é apenas por causa do petróleo, que foi escolhido como instrumento do nosso desenvolvimento.

 

As pessoas têm a ideia de que os mitos gregos, as palavras dos filósofos, são coisas longínquas, sem aplicação no mundo em que vivemos.

É possível. Esses textos estão a falar de um tempo que não é o nosso, numa linguagem que não é a nossa, mas os problemas desses homens são os nossos. É através do exame do nosso comportamento, a partir da nossa própria experiência, que esses textos podem ser compreendidos, que essas perguntas se actualizam. Enquanto forem encarados como documentos de outros tempos, que por acaso acabam por acontecer aos alunos, nunca serão compreendidos.

 

Exemplifiquemos com dois mitos, dos mais populares na cultura ocidental, o de Sísifo e o de Orfeu e Eurídice. Como interpretá-los à luz dos nossos dias?

No caso de Orfeu parece-me evidente: o amor nunca pode refugiar-se no passado. Daqui a algumas horas, quando a minha mulher chegar a casa, vou-lhe perguntar onde é que ela esteve, e ela vai-me dizer. Se eu conceder importância demais a essa pergunta e a essa resposta, estou a fechar o amor num círculo de factos passados. Estou a transformar a minha vida, e também a dela, num episódio inquisitorial. Eurídice não pode olhar para o mundo de onde foi afastada. A morte não se pode observar por cima do ombro – a morte agarra.

 

Podemos ser engolidos pelo passado?

Toda a gente é. Creonte deixou-se engolir pelo passado. Antígona deixou-se engolir pelo passado. E o resultado é a morte, a destruição, a loucura. É preciso sempre ter os olhos, abertos, para a frente.

 

O que implica aprender a distinguir o essencial do acessório. Só assim podemos olhar para a frente.

Exactamente. Somos o nosso passado. A lição vem-me de um autor que pouca gente que me conhece acreditaria que tivesse tido tanta influência em mim, [Henri] Bergson. O nosso passado está a refazer-se constantemente no nosso presente. Isso implica que não possamos parar e olhar para trás. O nosso passado está a acontecer agora.

 

Está a ser reconstruído à medida que é recuperado. Por isso se diz que a memória é reconstitutiva, que não é exacta.

Ela apareceu no começo da nossa conversa, quando falei da memória do sobretudo creme, aos quatro anos. Tenho uma memória da tarde desse dia, em que havia uma luz na casa de jantar. Guardo carinhosamente memórias de luminosidades. Mas pode não ser verdade.

 

Que leitura faz do mito de Sísifo?

O mito de Sísifo não é independente do Sísifo, que é uma tragédia da autoria de Crítias, onde pela primeira vez é defendida a crença de que os deuses são uma invenção dos homens. Crítias é um dos 30 tiranos, um dos perseguidores de Sócrates, um dos que morrem lapidados no dia em que a revolução democrática corre com ele e com Cármides, e acaba por matá-los à pedrada.

Depois há o famoso suplício de Sísifo, que empurrava uma pedra até ao alto de um monte, e depois a pedra caía de novo. Essa é uma forma de ver a vida. Nalgum momento a pedra escapa-nos, o terreno falta-nos debaixo dos pés. É uma das muitas possíveis formas de consciência da mortalidade e da limitação do ser humano. Não é isso a vida, empurrar uma pedra e vê-la cair? Como a sua própria vida, a perder-se.

 

Se a vida fosse a pedra e a viagem fosse única. Mas no mito de Sísifo acontece um movimento contínuo, ininterrupto. Ele não desiste de pôr novamente a pedra no cimo do monte, e ela acaba sempre por rolar.

E eu não desisto de conferir sentido à minha vida. E, pelo menos até agora, tenho a consciência de que sempre algo me escapa [riso]. Só que a minha atitude não é trágica. Quando se está a jogar um jogo, o jogo é a nossa forma de estarmos vivos enquanto o jogo dura. A única diferença entre uma concepção lúdica e uma concepção trágica da vida, neste ponto, é que o jogo acaba quando o jogador diz: “Acabou”.

 

Ou: “Acabei de jogar este jogo”.

Sim. Na concepção trágica o jogo nunca acaba. Temos de continuar a empurrar a pedra. Afligiu-me muito quando tive contacto, muito cedo, com os mitos de Sísifo e de Tântalo. Havia um livro de leitura na minha escola primária onde estavam apresentados. Somos nós que operamos a queda da pedra. E temos a ideia de que Sísifo ainda lá está, empurrando a pedra. E Tântalo ainda lá está, olhando a água; quando se baixa, a água baixa com ele. Terrível ou não, foi esta vida que me deram para viver.

 

Quando disse que se afligiu muito, com oito anos, antes de o ouvir falar das imagens de Sísifo e Tântalo, achei que ia dizer que teve nessa altura um primeiro contacto com a morte.

A primeira morte real na minha vida aconteceu com um amigo muito próximo, que teve um acidente, em 1965. Depois foi o ano da morte do meu pai, em 1988. No funeral não entendi nada do que estava a acontecer. Não estava em mim. A minha relação com a morte não é frontal.

 

Uma reacção paradoxal, para um estudioso dos gregos, em cujos textos esta questão aparece continuamente.

A questão que aparece continuamente é a da natureza humana, dos conflitos, e esses são os nossos, não são gregos. Como é que as pessoas fazem umas às outras o que fazem? Como é que consigo fazer coisas horríveis? Isto perturba-me. Isso é trágico.

 

Numa leitura muito redutora, e pela rama, as tragédias gregas surgem-nos pejadas de situações desmedidas, de uma enorme violência, de um carácter sangrento. Medeia é uma mulher que mata os seus filhos. Como compreendê-lo?

Medeia mata-os porque são filhos dela, ela vai ser posta fora daquela terra, vai ficar sem os filhos. O melhor é matá-los para não os deixar a qualquer homem. O homem não é portador de vida, e a mulher é, e se é portadora de vida tem o direito de matar.

 

Esse é o entendimento de Medeia.

É.

 

Isso contraria aquela leitura, muito apressada, de que o faz enlouquecida de ciúme.

Qualquer leitura da história de Medeia é redutora. O que está em causa é a figura da mulher, e o questionamento que faz do seu lugar no mundo. Todas as mulheres são Medeia, podem é não matar os filhos [riso].

 

Significa que todas têm a capacidade de gerar vida, é nesse sentido que o diz?

Não só porque têm a capacidade de gerar vida, mas também porque os homens que geram a vida nelas não têm essa capacidade. É essa diferença que gera o conflito.

Medeia tinha uma terra e era alguém. De repente trocou tudo isso por um homem. Foi proscrita, teve que fugir. Entregou tudo àquele homem, que a abandona, que lhe tira o futuro, o presente. O passado, já lho tinha tirado. Resolve cortar com isso, e cortar com isso é cortar com o seu próprio corpo, com os filhos. Mata-os amando-os. (Isto aprendi: as mulheres são capazes de sacrificar o seu próprio amor, os homens, não, são muito mais egoístas.)

As mulheres ainda hoje fazem isso. Não matar os filhos, mas ritualizarem esse acto nas inúmeras formas de separação. A forma como as mulheres se separam dos homens, e estou a falar das que estão conscientes do processo em que se encontram, é diferente do modo como os homens se separam. Eurípides percebeu isso, e pôs tudo isso naquela peça. Todos matamos os nossos filhos.

 

Amputando-os, castrando-os? Infligindo-lhes sofrimento.

Isso. Amputando-nos, separando-nos deles. É muito mais frequente do que a excepcionalidade do mito pode dar a entender.

 

“Nada do que é humano me é estranho”, como dizia Terêncio. Mesmo o que parece ser monstruoso.

Tento compreender. Os outros são a única oportunidade que me é concedida de me compreender a mim mesmo. Perante eles tenho a noção do outro. Tento aprender a lição de Sócrates: perceber-se a si mesmo como um outro. Vendo-me de fora como alguém que, perante todas as tentativas que fez de saber alguma coisa, compreendeu que eram ridículas, e descobriu que não sabia nada. Quando descobriu que não sabia nada, descobriu que sabia que não sabia nada.

 

Quando se fala de transcendência, normalmente, isso aponta para a existência de um deus.

Mas não é um, nem dois, nem cinquenta. É o reverso da consciência da minha limitação. A transcendência é aquilo em que eu me situo. Não tenho memória de nenhum sucesso. Tenho memória de muitas derrotas. Não me lembro de nada na minha vida para que possa olhar e dizer: “Olha que bem”.

 

Parece uma frase humilíssima, mas tendemos a descrer dela. Se não ficamos, pelo menos de vez em quando, contentes com o nosso existir, é a desesperança absoluta.

Não tem nada a ver com desespero. É a profunda esperança de encontrar um sentido para isto. Isto é positivo: continuo a ter esperança de me encontrar, de fazer, de deixar alguma coisa a alguém. Sou nada, ou muito pouco, em algo que é maior do que eu.

 

Pensei que fosse ateu.

Pelo contrário. Nunca deixei de ser religioso. Tive uma conversa muito importante com um padre no final de um retiro espiritual, no Seminário dos Olivais. (Um retiro espiritual é um fim-de-semana que é concedido para, num local determinado, fazer contas com a própria vida. As contas e o local que me eram proporcionados eram fornecidas pela igreja católica, que me deu a noção de transcendência e a noção de Amor, de que falo constantemente, e que transponho para a Grécia com alguma aventura.) Tive um encontro comigo mesmo, através do modo como fui visto por alguém, que olhou para mim e disse: “Está tudo a andar. Não te preocupes, hás-de chegar onde queres”.

 

Havia um objectivo estrito para o retiro?

Era responder à pergunta: “Sou cristão ou não sou cristão? Sou crente ou não sou crente?”. Depois dessa conversa, a lição com que fiquei é que não tem importância. Já estou no caminho. Todo o mal que acontecer vem por acréscimo na viagem que estou a fazer, na qual entrei e da qual não vou sair.

 

Parece haver nisso uma certa impotência em relação a um destino.

Não entendo assim. É como se dissesse: não consigo deixar de amar. Só sou afligido pela consciência de que não amo suficientemente bem. Mas não me passa pela cabeça abandonar este caminho e começar outro. Acho que foi isso que me foi dito. Saí da igreja naquele momento, mas não saí da religião. Saí contente por ter descoberto que estava vivo, que cria no amor, cria na força. Nos momentos mais difíceis, dos quais também me esqueci, isso persistiu.

 

Novo verso da Antígona: “Não se pode ter a grandeza sem a desgraça”. É assim?

A grandeza é encontrar uma resposta a uma pergunta. A desgraça é a inevitabilidade de não ter encontrado a resposta, até a ter encontrado. Não faço outra coisa na minha vida que não seja procurar respostas a perguntas. Sou mais feliz do que a maioria dos outros homens porque posso pôr essas respostas em papel, e alguém as publica.

Estou a escrever sobre Parménides desde 1981, já dei a volta a mim mesmo não sei quantas vezes. Estou muito contente com a última resposta a que cheguei, e muito aflito com o facto de as pessoas continuarem a ler coisas que escrevi e publiquei em 1997, e que hoje, para mim, estão completamente erradas. Para conseguir chegar à resposta que encontrei, e que acho que está certa, e que me dá muita felicidade, tive de dizer asneiras durante 30 anos.

 

Errar.

Uma coisa é errar, outra é publicar. Tenho uma grande convivência com as minhas limitações, e com a dimensão minúscula dos meus conseguimentos. Isto não é trágico, é o estado natural da vida. Quando me põe diante dos olhos e dos ouvidos frases em que há uma desgraça absoluta, reajo. Nunca senti a desgraça absoluta. As pessoas não sabem ler as mensagens. Até porque não são capazes de se ler a si próprias. Mas isso não é grave, é sério.

 

O que é que é grave?

O grave é o irremediável da desgraça, é não haver saída. Por exemplo, a dívida soberana de Portugal, não é grave, é séria, vai ter uma solução qualquer.

 

Nesse caso, o único irremediável é a morte.

Claro. O homem é o único animal que sabe que vai morrer.

 

Não sabe é o quando.

Mas sabe que. Os gregos têm a profunda consciência da inevitabilidade da morte, e de que nessa medida, é preciso dar um sentido à vida. Aquiles, o Príncipe dos Aqueus, pode, olhando de fora a sua vida, lamentar tudo o que perdeu, lamentar as razões que o levaram a pôr em perigo a sua vida. É citado por Sócrates quando diz: “Que inútil fardo seria eu, caminhando entre as naus, se não lutasse?”. E depois morre. E depois de morrer diz: “Aquilo é que era”.

 

Muitos destes de que estamos a falar são os heróis. É menos comum falar dos derrotados. Como se recusássemos para nós essa dimensão? Na Ilíada, fala-se mais de Aquiles do que de Heitor.

É impossível não amar Heitor.

 

É aquele que é morto.

E é morto de uma forma terrível. Ganhar é óptimo, sobre isso não estamos em desacordo. É bem melhor que perder. Mas um ganhador, eu? Ganhador é qualquer coisa que se põe no túmulo de uma pessoa: “Este foi um ganhador”.

 

Depois, de nada serve, porque está no túmulo.

Deixou filhos, deixou uma memória, deixou uma lição. Ser lembrado com um sorriso é um triunfo. É algo que se pode ambicionar. Quando se lembrarem de mim, que seja com um sorriso.

 

Isso podia ser um epitáfio.

Podia. Ser lembrado com um gesto de tolerância, carinho. Carinho já não é grego.

 

Não conhecem esse conceito?

Não posso responder com segurança, porque estou a responder sobre páginas e páginas de literatura, e estaria a dizer-lhe: “Não está lá”. Mas posso dizer que abundam os sinais em sentido contrário.

 

Qual seria o sentimento semelhante?

A compaixão, a amizade. Carinho é talvez aquilo que uma mãe sente por um filho.

 

Porque é que decidiu doutorar-se em Platão?

Quando comecei a tentar entender qualquer coisa de Filosofia, percebi que faltava sempre qualquer coisa antes. Fui recuando, recuando, e quando cheguei a Platão não precisei de recuar mais. Depois tornei-me platonista, e de algum modo, platónico (não no sentido mais corrente). Ser platónico é ter uma visão estruturada e estruturante da realidade. É ter noção de que a realidade é uma estrutura de formas, e compreender a realidade é descobrir as formas. Nenhuma realidade é compreensível, nem sequer abordável, se não pensarmos que resulta do encontro da matéria com a forma. Quem sou? A resposta de Platão: és um homem, porque tens uma alma, e tens uma alma porque viste as formas, porque compreendes que a realidade tem uma estrutura. Compreendes que o único sentido da vida é perceberes e comungares dessa estrutura, e encontrares o teu lugar nela.

 

Há alguma pergunta que não tenha feito e que este perguntador teria feito?

Porque luta?

 

Porque luta?

Luto para me encontrar nesta sociedade a que pertenço. Ser português é uma condição que não se pode perder. E acima de português só consigo ser lisboeta. Esta é a minha cidade. O sentido da vida é descobrir a que pertencemos. Tudo isto é inquieto, mas a quietude é a morte. A vida é a inquietação.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2011