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Anabela Mota Ribeiro

José Gameiro (2003)

01.10.15

É um psiquiatra que tem um pequeno avião. Houve um momento em que ele percebeu que custava tanto como um carro de luxo, e concretizou a compra. Aos sábados de manhã gosta particularmente de levar a este seu espaço de evasão o António, o filho mais novo, em idade de aprender as primeiras letras. Tem outra filha, a Filipa, vinte anos mais velha ou coisa assim, fruto do primeiro casamento.

Ele diz que no limite todos teremos dois casamentos daqui a 50 anos. E explica porquê. Diz que o principal fantasma da vida do casal não é a infidelidade. E que o telemóvel mudou a vida a dois. E que, acossadas pelo ciúme, pela insegurança, pelo medo de ficarem sozinhas, as pessoas fazem tudo. Tudo. Umas vezes arrependem-se, outras não.

José Gameiro é psiquiatra. É doutorado em Saúde Mental pela Universidade de Lisboa. É especialista em terapia familiar.

 

Agora diz-se que as pessoas se divorciam por dá cá aquela palha. Parece-lhe uma visão apressada do fenómeno ou corresponde à realidade?

- Os casamentos são mais curtos, é verdade. As pessoas casam-se mais vezes duas vezes, e às vezes três. Em relação à pressa, não estou de acordo. A minha experiência clínica é que hesitam muito em separar-se. Há uma situação eventualmente em que é rápido: casam-se e ao fim de muito pouco tempo, ainda sem filhos, ainda sem uma entidade conjugal construída, separam-se. Apanho casais em que as primeiras ideias de separação na cabeça de cada um ou até na conversa entre os dois surgiu 6, 7, 8 anos antes.

 

Porque demoram tanto tempo a amadurecer a decisão?

- A relação conjugal sofre altos e baixos. Há casais que estão um mês sem se falarem, mas depois estão 3 ou 4 dias muito bem, aproximam-se muito, fazem amor, vivem uma certa euforia, vivem apaixonados novamente; nesse momento não querem separar-se. E depois entram outra vez num processo de tensão. Há casais que dizem que a melhor vez que fizeram amor foi quando estiveram separados. E isso é um estímulo para perceberem que, afinal, são muito importantes um para o outro.

 

Há casais que se amam, que têm uma relação sexual intensa, mas que vivem em permamente colisão. Não sabem e não conseguem viver um com o outro.

- Têm uma relação emocional, afectiva, sexual muito forte mas cuja vida relacional, no sentido mais institucional da palavra, é muito difícil. Comunicam mal, têm uma grande dificuldade em viver a rotina. São pessoas normalmente criativas, com alguma instabilidade de humor. A vida dos casais no dia-a-dia não é muito aliciante. O dia-a-dia é uma grande seca. Partilhar a casa de banho nem sempre é bom.

 

É quase paradoxal, porque quando se fala do casamento como coisa maravilhosa é de partilha que se fala.

- Pois, mas todos temos momentos em que queremos partilhar este mundo e o outro e momentos em que não nos apetece partilhar nada, apetece-nos é estar sozinhos. Esta dicotomia pessoa-duas pessoas, ou seja, a individualidade de cada um e a partilha com o outro, não é linear.

 

Segundo estudos recentes, numa cidade como Lisboa, um terço dos casamentos e uniões de facto dissolvem-se, entram em ruptura. A taxa média do país é mais baixa, ronda os 15/ 16%.

- Tem a ver com duas ou três coisas que a sociologia está farta de explicar. Por um lado, o aumento da esperança de vida, que é agora de 70 e tal, 80 anos. Aos 50 anos tenho a noção de que ainda vale a pena separar-me, ainda posso construir a felicidade. E aqui está a outra ideia, que é a de felicidade. Cada vez mais a felicidade das pessoas adultas passa pelas relações de afecto, de amor e relações familiares. Se isso não funciona, não sou feliz.  

 

Ou seja, se o que se persegue é a felicidade e se há tempo para isso, faz-se nova tentativa com outra pessoa.

- Repito a dose: separo-me da primeira para tentar com uma segunda pessoa construir a felicidade. Estas duas características, para além do movimento das mulheres (que foi decisivo e começa nos anos 60), leva a que o aumento dos divórcios seja imparável. No limite – e isto é muito discutível, é ficção científica – daqui a 50 anos a maior parte de nós terá dois casamentos.

 

Porque é que as pessoas se separam? Que constantes é que encontra no seu trabalho com casais desavindos?

- Os casamentos deixam de funcionar quando uma pessoa tem o sentimento que não é amada, entendida, compreendida. Ou que deixa de amar e de sentir-se próxima, do ponto de vista do amor, da outra. Sentir isso de vez em quando, se calhar toda a gente sente. Estou a falar de sentir isso ao longo do tempo e de uma forma estável. Esta é uma das situações, talvez a mais frequente. A outra é um bocado paradoxal: eu gosto muito daquela pessoa, mas acho que ela não se deixa gostar, ela acha que eu não sei gostar dela como ela quer. Quando começo a terapia pergunto sempre, numa entrevista individual que faço com cada um deles, se ainda amam a outra pessoa.

 

Qual costuma ser a resposta?

- A resposta, normalmente, é que ainda amam. Senão não vinham cá, a coisa ficava resolvida com um advogado e o tribunal. Mas não conseguem perceber o que se está a passar. Isso leva ao sentimento de que não é possível a vida em comum.

 

Se existe ainda o amor, que é a base, como é que ele não é partilhável?

- Há pessoas que têm dificuldade em expressar aquilo que sentem, em mostrar-se. A relação conjugal ou de amor é a relação de maior intimidade e exposição que há na vida. Que cada um gradua como quer. Como quer ou como pode, e como o outro deixa graduar. Este jogo de exposição, confiança, partilha, de se deixar mostrar, de ver o outro, é um jogo de equilíbrios. Não é fácil, exige algum tempo e exige, da parte das duas pessoas, um benefício da dúvida. Não é bom estar nisto à defesa ou então com duas pedras atrás das costas, que é o que acontece com alguns casais: eu estou com uma pessoa, que se mostra, ao fim de um tempo ela mostra as coisas piores e eu, que tenho aqui duas pedras, mando-lhe as pedras.

 

Mostra-se vulnerável e o outro tira partido dessa vulnerabilidade.

- Aí nunca mais há mostra para ninguém! Acabou-se. Há uma grande diferença entre dizer: «Não devias ter posto ali aquela carteira, devias ter posto no outro sítio», ou dizer: «Tu és muito desarrumada». Do meu ponto de vista, os casais funcionam tanto melhor quanto mais são capazes de não atacar o outro no seu âmago: na sua forma de estar, na sua forma de ser. Também não é uma relação de amizade. A pessoa não se expõe completamente, como se expõe com um amigo íntimo.

 

Mas o espaço do amor não é o da maior intimidade e exposição?

- Há coisas em que a pessoa se expõe que o outro pode sentir como sendo contra ele/ela. Isto é a questão da «verdadaça». Não é um termo meu, é de um colega. O Almeida e Costa diz que alguns casais entram naquilo que é a verdadaça sobre as suas vidas, e que muitas vezes nem sequer tem a ver com o que se está a passar, é do passado. Podem transformar-se em armas de arremesso no futuro.

 

Porque é que as pessoas têm tanto medo de se expor?

- Têm medo de ser atacadas, de perder uma certa imagem que construiram. Temos sempre jardins secretos. Há casais que conseguem ir até aos jardins secretos, e não há problema. Há outros que não conseguem. Estou farto de falar com pessoas que me dizem: «Consigo ter uma relação sexual muito mais desinibida com pessoas com quem não tenho uma relação conjugal ou amorosa; com a minha mulher (ou marido) tenho uma relação sexual que é boa, mas que nunca vai até ao fim naquilo que são as fantasias». Correu um filme há pouco tempo sobre isso chamado «Intimidade».

 

No filme, um homem e uma mulher que nada sabem um do outro encontram-se uma vez por semana para fazer sexo. Não há um comprometimento amoroso. É puro sexo. Nem um nem outro tem de resguardar o seu jardim secreto, porque, simplesmente, não estão expostos.

- Não sei se há puro sexo.

 

Não?

- Estado puro, só quando nascemos. Quando conheço alguém numa relação afectiva pré-conjugal ou de namoro ou seja o que for, ao princípio construo a relação através de uma imagem que tenho dessa pessoa. Ao fim de 10 anos ainda há muita coisa que são imagens minhas. Que não interessa muito se é verdade ou não. A vida é feita daquilo que achamos que é verdade. O que é que, muitas vezes, mata as relações?

 

O desajuste entre essa projecção e o que a pessoa é na verdade?

- Exactamente. Dizem-me: «Cortei dentro de mim a relação com a minha mulher ou o meu marido no dia em que aconteceu isto e percebi que a pessoa que tinha ali não tinha nada a ver com o que eu tinha imaginado».

 

Ainda o puro sexo: significa que essas relações podem ser eminentemente sexuais mas nunca exclusivamente sexuais?

- Acho que nunca são exclusivamente sexuais.

 

Nem para os homens? Existe esse velho mito, de que para eles é só sexo e para elas mete sempre afecto.

- É um estereótipo de género que corresponde ainda a alguma realidade. Vejo isso um bocado pelos jovens: continua a existir a ideia de que os rapazes querem curtir e elas querem relações mais estabilizadas. Mas cada vez mais vejo na clínica mulheres com comportamentos sexuais mais próximos dos dos homens. Mulheres que têm relações sexuais fora do casamento por sexo. Também sabemos que as relações de puro sexo, que começam por aí, se constroem depois com uma relação de amizade.

 

É um refúgio? Um reduto de amizade e de sexo onde a pessoa se sente reconhecida, onde está bem, onde não é questionada.

- Sim. Mas são relações de transgressão face ao casal. Continuam a ser. A ideia de que o casal pode evoluir para uma situação em cada um deles pode ter outros parceiros, não existe. Na minha experiência clínica, não existe.

 

Que é feito das relações abertas?

- É um flop completo em termos sociológicos. A penalização da transgressão continua a existir. Não me venham dizer que a maior parte das pessoas aceita que o seu parceiro tenha outras pessoas.

 

Já conheceu alguém que aceitasse?

- Já. Mas é muito esporádico. Mais em relações de namoro, não de coabitação. Aceitam sempre com um nozinho na garganta... Não é fácil.

 

Não é fácil por causa da troca, do despeito?

- É uma ferida. As pessoas imaginam sempre que pode ser melhor com as outras, imaginam coisas terríveis da partilha do corpo. Também acontece uma coisa muito interessante: as situações de infidelidade conjugal que aparecem e se resolvem, são um excelente prognóstico. Há um renascer do casamento, a relação sexual, que estava adormecida, melhora espectacularmente. São novamente muito vivos, arranjam-se mais, etc.

 

A infidelidade é o principal fantasma da vida de um casal?

- Na minha clínica, na clínica conjugal, a infidelidade não é o factor mais importante. De todo.

 

Então qual é?

- São mais questões de comunicação, de incompreensão, de a pessoa sentir-se não gostada. O ciúme existe, mas a maior parte vive na base da confiança. No dia-a-dia isso não é muito importante se sentirem que o outro está próximo. O grosso dos casais não se separa por haver terceiras pessoas.

 

Como é que há espaço para uma terceira pessoa? O espaço é criado pelo problema de comunicação, pelo afastamento?

- Na entrevista individual pergunto abertamente se há uma relação fora do casamento. Na maior parte dos casos não há. E pergunto se houve alguma coisa importante. O que é que às vezes acontece? Houve uma fuga ou coisas a que as pessoas não deram grande importância e que, segundo elas, não tem nada a ver com o que estão a passar. Qual é a situação mais frequente? As pessoas sentem-se um bocado mais sozinhas, começam a falar com a colega ou o colega de emprego que também se sente sozinho, começam a conversar, são almas gémeas e dão uma voltinha.

 

Essa voltinha é de um mês, dois meses, três meses?

- Sim. Às vezes é uma relação sexual que até nem corre bem, e morre ali. A dimensão sexual muitas vezes nem é muito importante. É mais a dimensão da confidência e da intimidade.

 

Não há também necessidade de pisar o risco?

- Acho que é mais a necessidade de partilhar a intimidade, que não está a acontecer no casal. A necessidade de conversar sobre o que está a acontecer, a identificação com alguém que pode ter problemas parecidos. É uma intimidade um bocado fictícia.

 

É fictícia? De repente o indivíduo sente-se ouvido numa parte íntima, sente que há um eco.

- Muitas vezes isso melhora a relação em casa. Muitas vezes as relações extra-conjugais melhoram as relações em casa.

 

Explique-me lá isso. Porque é uma coisa de que se fala e que não se percebe imediatamente.

- Imagine uma situação de tensão conjugal em que uma das pessoas sente que não está com as suas necessidades de proximidade com a outra satisfeitas. E que vai, digamos, satisfazê-las com outra pessoa fora do casamento. Isso equilibra a pessoa. E a partir do momento em que equilibra, a sua distância com a outra pessoa do casal fica mais aceitável para ela própria. Portanto, essa distância regula-se melhor e fica mais harmónica.

 

É possível ser 100% fiel? E desejável?

- É, claro. Desejável, não sei.

 

Desejável para que o casamento se mantenha em bom estado.

- Não é obrigatório. Depende dos casais. Se num casal alguém for dizer ao outro que lhe foi infiel, em 99% das vezes gera uma crise. Embora seja muito diferente dizer que foi infiel com uma história de uma noite ou dizer que tem uma relação há um ou dois anos. São coisas radicalmente diferentes.

 

Porquê?

- A infidelidade da carne não é a mais importante. A infidelidade do espírito é a mais importante. Contrariamente àquilo que a Igreja Católica nos ensinou – que a questão do pecado é a da carne – a infidelidade mais pesada é a que resulta da sensação que a pessoa com quem estamos se partilhou com outra. A carne também, mas tudo o resto. Casais completamente fiéis? Há, tenho a certeza absoluta.

 

Mas são comuns?

- Só vejo aqueles que me aparecem com problemas. Dentro desses, há casais com 20, 30 anos de casamento que nunca tiveram infidelidades.

 

Então, porquê toda esta paranóia em volta da infidelidade?

- Em parte é uma falsa questão. Não é a infidelidade que provoca as crises conjugais, na sua maioria. A infidelidade é por vezes uma consequência da crise conjugal. A repetição da infidelidade, é outra questão.

 

A confiança, uma vez quebrada...

- Demora tempo a ser reconstituída.

 

Pode reconstituir-se?

- Pode. Não é resolúvel a curto prazo. À medida que o tempo vai passando, a pessoa vai abrandando a vigilância e sendo mais confiante. Se a relação se equilibrar, se houver um recasamento, se aproveitarem para mudar coisas, se conseguirem vencer uma certa rotina, a confiança instala-se outra vez. Alguns casais dizem a brincar: «Deixou de haver espaço». Em muitas situações de infidelidade, a questão é a do espaço. Há outras que não têm nada a ver com o espaço: uma relação até pode estar muito bem, mas a pessoa gosta de dar umas voltinhas por fora.

 

Mas porquê? Sobretudo as pessoas que são alvo de traição, perguntam-se: «Se está tudo tão bem, se lhe basto, que necessidade tem de umas voltinhas?»

- Há pessoas que não sentem necessidade de ter relações fora do casamento. Há as que, sentindo necessidade, conseguem, em nome da relação com o cônjuge, controlar esse desejo _ são monogâmicos por acharem que é uma falta de respeito, que o outro se soubesse ficava tristíssimo. E há pessoas que não controlam isso, fazendo às vezes quase à descarada. Nesse sentido, são quase agressões; fazem-no de tal maneira que é impossível o outro não ver. É a velha história do homem que chega a casa com baton na camisa e papéis do hotel no bolso.

 

Vou pôr-lhe uma situação concreta: uma rapariga solteira mantém uma relação com um homem casado há 3 anos. Esse homem praticamente deixou de ter uma vida sexual e de partilha de intimidade com a mulher. Será que esta mulher não sabe?

- Claro que sabe. Não quer é tomar conhecimento oficial.

 

Obrigá-la-ia a tomar uma atitude.

- Exacto. Não quer assinar por baixo. Há pessoas que aceitam tudo.

 

Isso também é uma questão. Como é que há pessoas, que parecem tão estruturadas, que aceitam tudo?

- Como há pessoas que aceitam ser batidas, violentadas... Não aceitam ficar sozinhas. A questão é a solidão. Algumas não o suportam. Tiveram sempre que ter alguém que lhes aquecesse os pés, que lhes tratasse das peúgas e das camisas. Têm autonomia zero _ estamos a falar de homens profundamente carentes das mulheres. Passam de casa em casa, andam de mão em mão. Ainda não fizeram sequer o pré-luto de uma relação e já estão em casa de outra. As mulheres estão muito habituadas a viver sozinhas, tradicionalmente ficavam sozinhas com os filhos.

 

Deve-se contar que se foi infiel?

- Detesto dizer o que se deve fazer! Depende muito da situação em que se viveu a relação extra-conjugal. Não é uma questão moral, não é uma questão ética _ sobre essas coisas não me pronuncio. É uma questão da relação. Em determinadas situações, a relação conjugal não pode mudar sem que essa informação seja dada. Porque essa informação vai permitir à outra pessoa mudar coisas. Agora, a pessoa que tem de dar a informação corre um risco, e muitas vezes não o quer correr: «Acabo aqui a relação como se nada tivesse acontecido, e continuo a minha relação em casa». Só que, desta forma, a relação em casa nunca mais muda.

 

Por isso é que o grosso dos casais com problemas de infidelidade têm depois bons resultados? Porque estão dispostos a mudar?

- Obviamente. Quando na entrevista individual pergunto: «Tem alguma relação fora do casamento?», e a pessoa me diz que tem e que ainda não disse ao marido ou à mulher, nunca faço terapia. Não posso gerir esses segredos pondo uma pessoa contra a outra. E se essa informação não for dada, não posso fazer nada; há uma pessoa que não está de posse da informação toda que lhe permite também a ela mudar.

 

Recorrentemente é usado o argumento dos filhos para adiar uma ruptura.

- O casal com filhos hesita muito mais em separar-se. A ideia de uma família com filhos é muito forte. E é a ideia de que vão sofrer, o que é verdade. Não há filho nenhum que não sofra com a separação dos pais. Tenho muitas pessoas que vêm cá e dizem: «Vimos aqui porque temos filhos. Se não tivessemos, já estava resolvido».

 

Isso faz sentido? Aderirem a qualquer coisa de que não têm vontade pelos filhos?

- Não tenho de opinar se faz sentido ou não. É preciso não esquecer que duas pessoas que têm filhos, mesmo que se separem, vão ficar com uma relação o resto da vida. Convém que não fiquem com uma relação muito tensa. Se perguntar aos filhos passado algum tempo da separação, quase todos vão dizer que se esqueceram da vida infernal e que preferiam ter os pais juntos. Se perguntar na altura da tensão, preferem que os pais se separem. Mas é preciso que a tensão seja muito grande e que tenham uma certa maturidade. Se são miúdos pequeninos, não querem.

 

Os casais voltam por causa dos filhos?

- Não creio. Depois de se separarem, não é muito frequente. Começam a namorar outra vez e seguem outros caminhos. O que acho fascinante na relação de casal, seja qual for o casal, é que é completamente imprevisível. Pode ter uma relação previsível com o pai, com a mãe, com os irmãos, com os amigos. Com o casal, nunca se sabe. Os casamentos vivem da insegurança, que é um bocado o contrário da ideia antiga de casamento.

 

O casamento era uma instituição inabalável. A segurança era confirmada com o nascimento dos filhos.

- Agora a primeira ideia do casamento é o amor. Casar é um enorme risco. Você não tem a certeza absoluta se não chega a casa e ele não se pirou! E se não há filhos, pode-se pirar e nunca mais o vê. O que é fascinante é esta imprevisibilidade. Simultaneamente – não sei se posso dizer isto no jornal – é a única relação em que se partilham os «puns». Costumo dizer isto quando tenho muita confiança com os casais: «Vocês que partilham os puns, também são capazes de falar de vocês um com o outro». Partilhar os puns com alguém é a coisa mais íntima que há na vida. E a pessoa com quem estamos, e com quem temos esse nível de partilha, é também, às vezes, aquela de quem nos sentimos mais distantes.

 

Há uma imprevisibilidade de base. Os casais que funcionam melhor são os que estão menos expostos ao risco?

- Não. Há contratos que acabam de um momento para o outro... Há aqueles casais modelo de quem toda a gente já ouviu falar, que andava sempre a dizer: «Amor, querida, xuxu», e de repente o xuxu pira-se ou a querida vai-se embora.

 

Então o que era?

- São relações pseudo-mutuais que foram morrendo dentro de cada uma ou dentro de uma das pessoas. Mantiveram formalmente a mesma proximidade mas esvaziaram-se por dentro. E de um momento para o outro – ou porque aparece outra pessoa ou porque um deles se farta –, acabou: «Vou viver, quero ser feliz». Muitas vezes há um processo silencioso de anos. Pseudo-mutual no sentido em que não é expresso, e a outra pessoa não tem sequer hipótese de chegar a perceber.

 

Normalmente há um que gosta mais e outro que gosta menos? Não é comum haver este desequilíbrio? Um que é mais protector, outro mais protegido...

- É, mas diria que cada vez é menos. O estereótipo clássico, protector-homem, protegida-mulher está pelas ruas da amargura. Muitas vezes as rupturas são provocadas mais por elas do que por eles. Eles persistem nos casos de infidelidade e depois ai, ai, ai que não me quero separar! E elas, malinhas à porta e está a andar.

 

Mas um gosta mais que o outro, sempre?

- Há é diferentes formas de expressar. É difícil haver um «amorómetro», um instrumento que meça o amor das pessoas. Porque é que digo isto? Porque nas alturas da separação, eles geralmente ficam muito mais em baixo do que elas. Não creio que a forma de expressar corresponda ao sentimento.

 

Os homens ficam mais em baixo pela repercussão social? Ficam embaraçados porque são deixados, e eventualmente trocados?

- Ser vítima de infidelidade é muito mais pesado para os homens do que para as mulheres. Incomparavelmente. Um homem tem muito mais problemas de ser corno. Elas têm cornos, mas não são cornudas.

 

Isso continua a ser assim?

- Continua, continua. O homem é ferido na sua virilidade, que é posta em causa. Dito assim pode ser considerado muito machista, mas diria que as mulheres, se continuam a sentir que a relação lhes interessa e que eles continuam a gostar delas, dão menos importância ao pecado da carne.

 

Porque é que o telemóvel mudou as relações conjugais?

- Porque a possibilidade que as pessoas têm de se falar a toda a hora e momento existe. Há uma coisa relativamente recente, que são as mensagens. Apanhei um casal em que ela descobriu que ele tinha mandado mil mensagens para o mesmo número durante um mês. É muito!, é trinta por dia. Foi apanhado assim. O telemóvel deu a ilusão de controlar o outro, de saber onde está, de ver as chamadas que fez. Pode-se apagar o registo, mas muitas vezes a pessoa esquece-se ou não liga a isso. A quantidade de pessoas que vão ver os telemóveis!...

 

As pessoas são todas muito bem educadas, dizem que jamais violariam o espaço do outro, mas quando estão à rasca...

- Fazem as piores coisas. Todas. Vão ao telemóvel; vão à Via Verde para ver a que horas passaram na portagem; vão aos quilómetros do carro, «se fez mais do que aqueles que são para o trabalho, onde é que terá ido?»; vão ao extracto do banco para ver as contas de eventuais hotéis. E contratam detectives particulares.

 

Pensava que isso era fotonovela!

- As pessoas quando estão acossadas e aflitas fazem tudo. Para, no fundo, confirmarem ou não situações de que suspeitam. E muitas vezes, quando vivem no ciúme permanente, o facto de não confirmarem não resolve nada, porque continuam desconfiadas e inseguras. E à procura.

 

Quando devassam o outro, a parte estética, a imagem composta que têm de si, vai à vida. Em nome da suspeita, perdem o respeito pelo outro e por si mesmas. Fazem coisas de que mais tarde se arrependem.

- As pessoas envergonham-se daquilo que fazem. Outras vezes não. Acham que fizeram bem. Custa-me dizer, mas tenho de dizer que muitas vezes é positivo. Porque a crise rebenta. A partir do momento em que uma relação clandestina passa a ser conhecida, tem de haver uma crise conjugal. É nesse sentido que pode ser positivo: entaladas perante factos, são obrigadas a confessar o que está a contecer, as coisas esclarecerem-se e mudam. Não quero dizer com isso que as pessoas devam fazê-lo! Cada um sabe de si. Sou muito...

 

Amoral?

- Para mim não sou, mas aqui sou. Há coisas que não aguento. Violência física. Se um casal se bate, exijo que parem de se bater para fazer terapia. Exijo. Se uma vez ou duas na vida uma pessoa perder a cabeça e mandar um par de estalos não me parece grave. Se é crónica e continuada é muito complicado.

 

Muitos casais têm discussões de tal forma violentas que se atira o comando contra a parede e se bate com a porta. Isso é saudável, no sentido de explodir a raiva, de nada ficar recalcado?

- Tenho a maior dificuldade em dizer se é saudável ou não. Se há filhos pelo meio, não é nada saudável. A percepção que os miúdos têm da violência é completamente diferente da nossa, adultos. Eu posso entender uma cena dessas e desvalorizá-la. Um miúdo que vê uma cena dessas de uma forma continuada «aprende» a funcionar assim. Aprende que os adultos, quando discutem, mandam com coisas e partem coisas. Tem mais tendência, quando for crescido, a fazer a mesma coisa.

 

Uma pessoa que começa por arremessar objectos pode deixar de o fazer?

- Sim, sim. Pode aprender, por exemplo, a ir dar uma volta quando sente que está a chegar ao ponto de raiva. Acho chato partir um serviço Vista Alegre, é bonito e é caro, e há casais que o fazem. O comando é mais barato. Os telefones são objectos muito usados; há aí muitos partidos, mas hoje em dia são baratos. Acho que há formas mais civilizadas de discutir, mas se tem de ser assim...

 

A questão é mesmo essa. Quais são os limites? Quando é que começa a ser incivilidade?

- Depende um bocado do tipo de relação que as pessoas estruturam e da capacidade individual de controlo. Pode ser necessário discutir, gritar, berrar, e isso ser, para aquele casal, uma coisa eventualmente construtiva. Ainda que para nós, que estamos de fora, seja destrutiva. Eu acho é que podem fazê-lo sem envolver terceiras pessoas.

 

Os filhos?

- Há casais que fazem isto à frente dos filhos, ou dos amigos ou da família. O que é terrível. Por exemplo, um casal que se separa: vou dizer que ela é isto e aquilo, que fez isto e aquilo, digo aos amigos, digo à família, muitas vezes sou perverso e vou dizer à família dela, espalho a notícia e quero protecção de toda a gente porque sou um desgraçado que foi vítima. Mas passados não sei quantos meses, estou outra vez a gostar da pessoa e com ela. Os outros ficam numa situação complicada... Portanto, defendo a privacidade dos casais. Não quer dizer que devam viver em circuito fechado, mas devem escolher criteriosamente com quem desabafam.

 

E muitas vezes há a tendência a usar os filhos como confidentes.

- Ainda é pior. Conheço pessoas que fizeram dos filhos confidentes ao nível mais íntimo. Mulheres que contaram às filhas a vida sexual com os maridos...

 

O que é que isso provoca num filho?

- Coisas terríveis. É dizer mal de um homem de quem se é filho, de quem se gosta, com quem se tem uma relação muito próxima e que depois fica num conflito de lealdades: «Se gostar do meu pai, a minha mãe chateia-se comigo. Se gosto da minha mãe, não posso gostar do meu pai». Para um miúdo, uma miúda de 13, 14 anos é uma situação insustentável.

 

A maior parte dos filhos nem consegue imaginar a vida sexual dos pais.

- Nem querem. Mas depois ficam reféns da confidência. E também há pais e mães que partilham com os filhos uma relação que têm por fora.

 

Acontece?

- Na raça humana acontece tudo.

 

E o sexo? Qual é verdadeiramente a sua importância na vida de um casal? Pode ser usado como aferidor do estado da relação?

- Não acho que seja aferidor. A vida sexual dos casais é tanto mais satisfatória quanto eles acham que estão satisfeitos. Ponto final. Pode haver casais satisfeitos com uma vida sexual de três vezes por semana. Há casais que têm uma relação sexual de seis em seis meses, e isso não é problema.  

 

Não há, de facto, problema? Não há um imperativo social que prescreve qualquer coisa do tipo: duas vezes por semana é normal?

- Há uma pressão social. Talvez no início seja importante. Mas à medida em que os casais vão tendo uma relação mais estável e duradoura constroem a sua sexualidade, o seu ritmo. Há casais que podem ter uma vida de ternura física muito grande, mas não de acto sexual propriamente dito, e esse ser pouco frequente. Há casais que precisam de ter uma relação sexual muito frequente. Na sexualidade há também questões físicas, orgânicas, de necessidade de descarga. Não é só o aspecto afectivo e relacional que conta. Aí, se há desigualdade é que pode haver problemas. Ou se há dificuldades instrumentais – questões sexológicas, de potência ou frigidez. Mas a maior parte dos casais funcionam. Só não funcionam quando estão em conflito.

 

Porque é que andamos sempre a falar da importância do sexo e do orgasmo e da fantasia e do desejo? É que só se fala disto!

- Porque há uma enorme pressão para as pessoas serem felizes. E há uma enorme pressão, que é social, cultural e mediática que associa a felicidade à actividade e à satisfação sexual. Um dos ingredientes para a felicidade será esse, mas que há quem viva sozinho sem actividade sexual e viva muito bem.

 

Já lhe aconteceu ter casais cuja crise se revela a partir do sexo?

- Já. Há casais que têm uma vida sexual que eles os dois ou um deles considera que não é satisfatória. Não tem a ver com o atingir o orgasmo, porque isso conseguem. É porque não se sentem desinibidos. É porque um quer determinadas práticas sexuais que o outro não quer, (são sentidas como porcas ou sujas ou seja o que for).

 

Ainda há essa aura de pecado e da coisa que não se faz?

- Ainda há.

 

Ainda há um tipo de sexo, nomeadamente o anal ou o oral, que não se faz com a «família»?

- Haverá. Não apanho muito isso, sabe? Contrariamente ao que se possa pensar, não falo muito de sexo com as pessoas. Posso perguntar de uma forma genérica se se sentem satisfeitas com a relação íntima. Nunca pergunto sobre a intimidade a não ser que queiram falar disso. Mas raramente querem. A ideia que tenho é que quando a relação marital é satisfatória, aquilo não é grande problema. Quando está insatisfatória, a vida sexual ressente-se.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003