José Manuel Fernandes (2008)
José Manuel Fernandes. O director do Público. O homem suficientemente poderoso para Sócrates o considerar o seu melhor inimigo. O embaixador da administração Bush em Lisboa – acusam os detractores. Aquele que se comove até às lágrimas com a queda de Saddam – mas também com a libertação de Ingrid Betancourt, acrescenta ele. Apesar de tudo, aqui era mais fácil. Mais consensual – excepto se se for do PCP, como não se coíbe de dizer. Não se coíbe, aliás, de dizer o que pensa. E de dizê-lo de modo excessivo, extremado. Como um revolucionário que pega em armas. Ou se mata ou se morre.
Foi assim na sua experiência política. Ou se era maoísta ou se abandonava o maoísmo. Não há meias tintas. E contudo, é um conciliador. Um director que não manda seguir o texto para a gráfica sem o dar a ler a alguém. Que escolhe para editora de política uma pessoa que pensa de modo diferente do seu.
José Manuel Fernandes, o Zé Manel, pensa pela sua cabeça e não precisa dos aplausos dos que estão à volta. Tudo parece mais um jogo de si para si. O que lhe interessa são os argumentos. A esgrima. A inteligência. E trabalha, trabalha, persiste, persiste.
Podia ter sido investigador. As questões do ambiente sempre o interessaram. Não cogitou ser corredor de automóveis, mas guia a velocidades inconfessáveis. Gosta do risco. Gosta mais ainda, ou precisa, de o medir. Sabe bem o chão que pisa. Há dez anos que dirige o diário de referência português.
A sua nota biográfica na Wikipedia dá conta de um percurso político enquanto estudante. Porque é que não é um político?
É preciso enquadrar isso no tempo. A altura em que tive maior actividade associativa política foi nos dois anos anteriores ao 25 de Abril e nos três anos e meio a seguir – um período em que praticamente toda a gente em Portugal fazia política. Eu tinha 15 anos quando comecei a participar nas reuniões do movimento associativo, e 17 quando se deu o 25 de Abril. Isso correspondia a um sentimento de que tinha de se fazer alguma coisa. Alguma coisa para acabar com a guerra colonial, com o regime – para ter liberdade. E isso correspondia a projectos políticos. As pessoas enquadravam-se em movimentos políticos ou mesmo em partidos.
Ou em jornais com uma orientação política muito marcada.
Sim. Eram jornais organizados pelos partidos: o PS tinha o seu, o PCP tinha o seu, os grupos de extrema-esquerda – onde eu estava – tinham os seus. Isto era controlado directamente pelos membros de topo das organizações. O Cunhal reunia com a célula de militantes do “Diário”. Era uma direcção muito próxima, não era longínqua.
Esta promiscuidade, entre a orientação ideológica de um partido e o exercício do jornalismo, era “natural” nesse tempo…
Não se pode falar de promiscuidade. Era um jornalismo de características diferentes, de tendência. Não se pretendia ser independente. Corresponde a um tipo de sociedade em pirâmide: as pessoas procuravam saber as opiniões dos seus “guias espirituais”, (como eram vistos os líderes partidários), e procuravam-nas através da imprensa. Continua a haver situações em que jornalistas passam para a política ou políticos passam pela direcção de informação. O actual mayor de Londres era um jornalista da Spectator. Temos casos em Portugal: Balsemão, Marcelo Rebelo de Sousa, Paulo Portas. Pedro Silva Pereira foi director adjunto de informação da TVI.
Explique melhor por que não foi político.
Envolvi-me em grupos maoístas. A partir de 76, começaram a ocorrer eventos que me deixaram perplexo. Demonstraram que algo que tinha defendido e em que tinha acreditado não fazia sentido. Um desses eventos é o funeral do Mao Tse Tung. Nas fotografias do funeral, o Bando dos Quatro estava lá. Nas fotografias que vi das revistas que chegavam da China, tinham sido apagados. Já se falava de manipulação de fotografias desde o tempo do Lenine, Estaline; mas ver uma espécie de dentadura a que faltam quatro dentes… Era uma manipulação da história que implicava repensar tudo. Quando se é comunista, ou maoísta, quando se quebra, não se pode ficar a meio caminho.
Está a dizer que não lhe restava outra opção senão sair?
Quando uma pessoa se entrega, a ponto de ser funcionário, de fazer vida profissional disso, a quebra é obrigatoriamente radical. Para muitas pessoas é um choque. Recordo-me de discutir coisas assim: parece que nos campos soviéticos morreram mais pessoas do que nos campos nazis. Não acreditei. Hoje sabe-se que é verdade.
Porque é que não acreditou?
Isso contradizia tudo aquilo em que eu tinha acreditado. Depois, vamos procurar porque é que aquilo aconteceu, e não ficamos apenas com a desilusão dos factos. Procuramos saber se era um desvio ou uma questão de fundo. A União Soviética era um desvio, a China era um desvio, a Albânia era um desvio… Não sobra nada. Se calhar, não era um desvio… Se calhar, o problema era da doutrina.
E recusa-se a doutrina?
Começa-se a fazer uma evolução, que eu fiz com mais pessoas. Passa de acreditar numa possibilidade de transformar o homem e a sociedade para uma posição mais céptica em relação à natureza humana.
Não é político porque se desiludiu?
Deu-se essa ruptura. E aquilo que eu sabia, por dentro, sobre o funcionamento de uma organização política, não me deixou nenhuma vontade de ser político.
Quando defendeu a intervenção no Iraque com a paixão com que o fez, pensou no entusiasmo que teve nos anos de juventude pelo maoísmo e na subsequente degenerescência do seu sonho? Põe a hipótese de acordar para uma realidade completamente diferente daquela que agora vê?
Perfeitamente. Tenho escrito textos sobre os quais digo, depois: “Estava enganado, a análise estava errada”. Não deve custar admitir o erro, porque nunca sabemos os dados todos. Há pessoas que fazem contorcionismos para provar que têm sempre razão, e não raciocinam em função do que se sabia quando tomaram uma determinada posição. Uma vez, o Eduardo Prado Coelho escreveu no jornal que aquilo que distinguia a esquerda e a direita era apoiar ou não a intervenção no Iraque. Olhando para o mundo, isso implicava estar ao lado do Le Pen e dizer que este é de esquerda; ou dizer que o Christopher Hitchens, que é um colunista da Vanity Fair, era de direita. A intervenção do Iraque não foi nada uma questão de preto e branco como se apresentou nas polémicas. Não gosto de uma divisão política esquerda/direita. É redutora das muitas dimensões que tem hoje a política.
Mas o seu entusiasmo pela administração Bush é notório.
Critiquei várias vezes. Guantánamo, por exemplo. O primeiro editorial que escrevi sobre Bush foi para dizer mal – sobre Quioto. Agora, quando acredito numa coisa, bato-me por ela. Não gosto de textos meias tintas.
Quando é que deixou de ser um idealista?
Acho que continuo a ser um idealista. Mesmo na questão do Iraque. O autor do livro “What’s left of the left”, (um jornalista de esquerda), não consegue compreender porque é que os seus amigos de esquerda não tinham apoiado uma intervenção que tinha uma forte componente idealista. Na minha opinião, também.
A sua formação inicial não tem nada que ver com a política ou o jornalismo. Estudou biologia.
Basicamente sou uma pessoa curiosa. Sou assim desde miúdo. A minha formação em biologia marcou-me, e o meu pai é biólogo. Há uma presença de questões ecológicas em toda a minha vida. Imaginei que seria investigador. O meu médico da altura convenceu-me de que podia ser investigador tirando o curso de medicina. Mas não me dei bem com as aulas de anatomia. Dissecar uma perna…, não tinha estômago – indo directo ao assunto. Fiz uma coisa estranha: sair do curso onde ninguém entrava e ir para o curso onde toda a gente entrava. E comecei logo a trabalhar como jornalista, aos 19 anos.
Porquê?
Casei com 18. Tive o meu primeiro filho 11 dias depois de fazer 19.
Ah, por essa razão…
Sim, mas continuo casado com a mesma mulher. Fui trabalhar para um jornal para receber um ordenado. Depois, fui ficando. Houve uma altura em que tive que optar. Faltou-me acabar o último ano do curso. Mas já estava muito metido no jornalismo, era outra paixão.
É como se o casamento e a paternidade precoce tivessem decidido a sua vida…
Passamos a vida a fazer escolhas. A escolha importante é a consciente – não resulta de acasos. Não era obrigatório que tivéssemos tido o primeiro filho, não era obrigatório termos casado, não era obrigatório termos passado por períodos complicados – os primeiros anos foram ao nível do salário mínimo. Tinha podido fazer aquela escolha porque quer a minha família quer a família da minha mulher eram um pára-quedas. Tinha a sensação de que não ficaria completamente desprotegido se alguma coisa corresse mal. Mas também tinha a noção de que tinha de fazer por que nada corresse mal.
Porque é que quis assumir essa responsabilidade?
Já que tinha acontecido, não via razão para… Tinha vontade. Gostava de poder sair de casa, queria montar a minha casa. Acreditava que seria capaz de continuar a estudar e a trabalhar – e fui. E que as coisas acabariam por correr bem – e correram. Não tinha um plano. Não planeio muito a vida. Não planeei sair do Expresso quando foi o nascimento do Público. Quando fui convidado para director do Público tinha acabado de chegar à Guiné-Bissau, e recebi o telefonema no meio de um bombardeamento…
O convite foi inesperado para si?
Um bocadinho. Nesse ano recebi um convite para dirigir um outro jornal, e optei por não ir – uma decisão avisadíssima. Levo tempo a tomar decisões, mas quando as tomo é para lutar por elas.
Escolhe com a razão, a prudência, o coração, a contingência…
Um bocado de tudo. A contingência é importante. Às vezes fala-se da sorte do repórter. Eu acho que nunca há só sorte. Recordo-me de um trabalho que fui fazer a Sarajevo. Estavam 15 graus negativos. A maior parte dos meus colegas, com o frio e o cansaço, preferiu ficar no quarto. Saí, apanhei um eléctrico e encontrei uma pessoa que tinha entrevistado seis meses antes. Tive imensa sorte, mas se tivesse ficado a dormir como os outros não a teria encontrado. A vida é um bocadinho assim… Se tentamos, temos mais possibilidades de ter sorte do que aqueles que não tentam.
Porque é que essa é a sua atitude? O seu pai é determinante na sua história?
O meu pai é, a minha mãe também. Somos cinco irmãos. A família era relativamente pequena, não tenho primos nem essas dispersões. Nascemos todos em Lisboa, vivi sempre em Lisboa até há dois anos – fui para Sintra. [Os meus pais] tiveram naturalmente influência, pelos livros que deram a ler, pelas viagens que proporcionaram, pelos exemplos que davam, pelas conversas. O meu pai ia almoçar a casa todos os dias. Vivíamos em Conde Redondo. A primeira viagem de avião: Londres e Paris, quando tinha 16 anos.
O seu pai lia o jornal todos os dias?
O meu pai comprava três jornais por dia: Diário de Notícias, O Século e um vespertino. Os jornais custavam um escudo (dez tostões). Quando passaram a custar 15 tostões, ele, que gastava três escudos, continuou a gastar três escudos – cortou O Século, o que deixou a minha avó muito desgostosa.
Era uma altura em que toda a gente lia jornais…
A televisão nasceu no ano em que nasci. Mas não chegou logo a casa das pessoas. Era um objecto de luxo. Já andava na escola quando o meu pai comprou a primeira televisão; emitia quatro horas por dia. O que se ouvia era rádio. A rádio não tinha noticiário de hora a hora, tinha três vezes por dia.
Estava a tentar perceber como se aproxima dos jornais…
Foi ocasional. Como disse, estava nas associações de estudantes ligadas à extrema-esquerda. Era eu que fazia os jornais. Porque era o que escrevia mais depressa, porque achavam que eu escrevia melhor, porque escrevia os relatórios da direcção (eram os documentos programáticos)
Para si, escrever é uma extensão do pensar?
Para arrumar as ideias preciso de escrever.
Escreveu sempre? Diário, teve?
Tive um diário. A minha mãe disse no outro dia que o tinha guardado… Até tenho medo de ver o que lá está! Não tive ainda o impulso para pegar naquilo.
Acha que vai embater nas suas imbecilidades?
De certeza. Tinha 13, 14 anos, só se podem dizer coisas imbecis. Vê-se uma rapariga na rua e escrevem-se coisas imbecis. Tenho ideia de não ter escrito muito tempo. [O diário] servia para muita coisa: era muito apaixonado por cinema e tomava nota de tudo. Ia a cineclubes, a centros culturais, sítios que passavam cinema aos sábados de manhã… Via pelo menos dois filmes por semana e punha notas.
Essa descrição parece ser a de um rapaz solitário. Ou era gregário? Quem era o seu principal interlocutor?
Variou com o tempo. Tinha amigos no liceu. O liceu não era misto… [riso] Mas no movimento associativo já havia, e havia acampamentos. Sou tímido. Partilho com muita gente o que penso – pela escrita. Mas oralmente não é tão frequente.
Onde radica essa timidez?
Não faço ideia. Faz parte dos genes, se quiser…
Quando me preparava para a entrevista falei com uma pessoa que o conhece há 30 anos e que dizia: “Nunca conseguimos saber completamente o que é que ele pensa”. Fica-se no insondável.
É possível. Não sou expansivo. Participo nas discussões, e no jornal tenho de dirigi-las, muitas vezes; tento fazê-lo da forma mais assertiva possível. Mas dando sempre espaço para que haja pontos de vista diferentes. Chamo pessoas para ver se o título da primeira página está bem, não gosto de mandar um texto para publicação sem que outra pessoa o leia. Também porque sou rápido, não sou um perfeccionista.
Quanto tempo demora a escrever um editorial?
Não é o tempo que levo a pensar, mas a concretizar é uma hora, ou menos.
Quando falamos consigo, há uma afabilidade, até no tom da voz, que contrasta com a assertividade e um radicalismo que encontramos nos seus textos. Parece que tem dois registos… Dizem que gosta de encontrar consensos; também isso contrasta com as opções extremadas dos editoriais.
Não é contraditório. Só se chega a um consenso a partir de uma convicção. Um editorial em que as pessoas dizem sim, mas, sim, mas, sim, mas… Chega-se ao fim [sem perceber] o que é que ela pensa realmente. Prefiro assumir um risco. Ser assertivo é positivo porque permite clarificar o que pensamos – o que não quer dizer que não nos precipitemos, porque isto é uma coisa que se faz todos os dias, não é uma ciência exacta. Acho que as pessoas preferem isso, desde que haja argumentação, desde que não haja apenas jogos de palavras.
Fala-se do divórcio que existe entre si e a sua redacção. De o grosso da equipa não se rever nas suas posições.
Isso é uma ficção, é uma ficção exterior. Não tenho tensão com ninguém na redacção – de vez em quando há uma tensão ou outra, mas têm que ver com questões puramente profissionais. No que diz respeito ao tipo de jornalismo e à possibilidade de haver muitos pontos de vista, esse problema não se coloca. Não se coloca, em boa parte, porque procuro não impor as minhas ideias a ninguém – não digo: “Isso não sai porque sou contra”. Por outro, porque tentámos evoluir no sentido se as peças serem mais objectivas, mais anglo-saxónicas. Nos espaços de opinião – que são múltiplos, inclusive para os jornalistas do jornal – podem dizer o contrário do que eu digo. Essa questão nunca perturba a relação de trabalho. De fora pode parecer estranho.
Esquizofrénico – é a palavra que se usa.
Sim, eu sei. A São José Almeida é redactora principal do jornal; aquilo que ela pensa sobre a maior parte dos assuntos é muito diferente do que eu penso, mas quem a nomeou editora da [secção] Política fui eu. Recentemente vieram novas pessoas para a direcção e a visão que têm do mundo é muito diferente da minha. Em contrapartida, estamos muito sintonizados em relação ao jornalismo que queremos fazer. Sempre acreditei que o importante são os argumentos. Se os defender bem, não tenho que estar a desarmar os outros para conseguir, no fim do dia, que mais pessoas fiquem convencidas.
Podemos ler editoriais diferentes consoante o membro da direcção que os assina. Lê isto como um exercício plural?
Um exercício plural num país onde há pouco pluralismo. Há um trabalho feito pela Cristina Ponte (da Universidade Nova), que comparou os editoriais do Público e do El Pais durante a guerra do Kosovo. Nos editoriais de ambos os jornais apoiava-se a intervenção. Mas ela notou que em todas as notícias do El Pais perpassava a linha dos editorais, e no Público isso não acontecia. Há quem diga que isso é esquizofrénico. Para mim, é um elogio.
Na primeira fase da sua carreira os seus directores foram José António Saraiva e Vicente Jorge Silva.
O principal foi o Vicente. Pelo tempo que estive no Expresso, pelo tempo que ele esteve aqui, pelo tipo de relação que tive com ele – mais frontal. O Vicente é mais extrovertido e as coisas discutiam-se – às vezes aos gritos, mas discutiam-se. O Saraiva sempre se fechou mais no gabinete.
O Saraiva e o Vicente são dois modelos de directores. No seu caso, foi director muito cedo – tinha 41 anos. Teve um período de insegurança? Procurou colar-se ou afastar-se destas figuras tutelares?
O meu percurso é sui generis. Comecei a trabalhar com 19 anos num jornal que durou quatro ou cinco meses. Depois, passei por umas coisas que nem contam. Quando entrei na Voz do Povo, com 21 anos já era chefe de redacção. O facto de chefiar pessoas não era estranho para mim – também na experiência política associativa tinha passado por experiências de liderança. Durante o período que estive no Expresso fui essencialmente repórter. Mas quando o Público foi fundado, em 89/90, entrei logo para a direcção. Tinha 32 anos. Quando cheguei a director já tinha quase oito anos de experiência de levar este barco. Tenho dificuldade em identificar-me quer com o estilo do Vicente quer com o do Saraiva.
Tento perceber se esta diferença foi procurada, acentuada… E como é que encontra a sua voz.
Acho que quer um quer outro fazem coisas muito melhor do que eu, e que eu gostava de conseguir fazer, mas tenho dificuldade. Faziam também outras coisas que eu sei que são erros; procuro evitar cometer esses erros. Mas não tenho obsessão de ser igual ou diferente.
É um tímido, como disse, mas esteve quase sempre em lugares de poder. Tímido pode ser, mas inseguro não…
Tenho algumas características que não são muito habituais em líderes – como ser bastante conciliador. E tenho uma grande capacidade de trabalho, sou capaz de compensar defeitos esforçando-me mais.
Quando falta o génio, sobra o trabalho?
Não sei se é quando falta o génio, que não costumo ser genial… Sei que sou capaz de dormir menos horas, trabalhar mais naquele assunto, escrever mais um documento a ver se convenço as pessoas. E não pretendendo ser um académico, procuro estudar os assuntos – em Portugal é uma grande vantagem. Não facilito, ou facilito o menos possível. Finalmente, tenho capacidade de improvisação – o que também ajuda e dá alguma confiança. Quando quero muito uma coisa sou persuasivo, e teimoso. Não sou um sedutor, de maneira nenhuma. O Vicente tem um lado de sedutor muito maior…
O que é que invejava no Vicente?
O Vicente tem uma capacidade maior de pensar coisas fora do comum. Muitas das coisas que se pensam fora do comum são disparates; mas se nunca se pensa fora do comum nunca se faz nada de realmente diferente. Ele era também um excelente catalisador de reuniões, as reuniões eram um fervilhar de ideias – mandava coisas malucas para a mesa... Foi das primeiras pessoas a dar atenção ao fotojornalismo.
Estou a auscultar a sua apetência pelo poder. E não é inocentemente que se está sempre em equipas de liderança…
É importante dizer que sou competitivo. Apesar de tímido. Sempre quis ser o melhor aluno da turma.
E era?
Quase sempre havia uma pessoa que se batia bem comigo. Fomos colegas imensos anos, e às vezes era eu, às vezes era ele. Sempre era um estímulo. Se vou fazer uma reportagem, vejo o que os outros fazem. Se fizeram melhor ou pior do que eu. O lado competitivo é importante porque nunca nos deixa distraídos. Mas nunca planeei nada na minha vida para ser o número um.
Era o filho mais velho, para começar, sobre o qual recaía uma especial expectativa…
Acho que sim. É inevitável, com um filho mais velho fazem-se coisas que não se fazem com os outros. Contam que eu bebi água destilada muito tempo; até uma altura em que chapinhei e bebi água num lago de patos; a minha mãe achou que já tinha anti-corpos suficientes e que não era preciso destilar a água. Isto mostra o que já não se faz com o segundo filho. Se eles caírem, levantam-se. Mas todos os pais têm expectativas em relação aos seus filhos. Posso dizer que tive ambição. Não ambição de poder. Mas a ambição de fazer coisas de que gosto e que sejam úteis.
A sua ambição no Expresso era um dia ser director ou ser o melhor?
No Expresso nunca pensei ser director. A minha ambição, no limite, era ser o melhor. Mas sempre tive noção que, não sendo perfeccionista, é muito difícil ser o melhor. É mais fácil comparar-me com um atleta do decatlo do que com um atleta de qualquer uma das especialidades do decatlo. Só há especialidades individuais no jornalismo – o melhor repórter, o melhor entrevistador, o meu editorialista, o meu cronista. Para isso [ser o melhor], precisava dessa coisa que não tenho: a obsessão pela perfeição. Apesar deste meu ar calmo, faço tudo um bocado depressa. Casei-me depressa, tive filhos depressa, comecei a trabalhar relativamente depressa, escrevo depressa, guio depressa.
Guia depressa por causa do risco? Por não resistir ao risco?
Desde pequeno que gosto de carros. Gosto de ver uma boa corrida, gosto de andar depressa. A iminência de estar em risco não me deixa confortável. O risco tem de ser sempre calculado. Vou todos os fins-de-semana passear com os meus cães para umas arribas no Cabo da Roca. Há lá umas cruzes de pessoas que caíram; quando vejo um sítio complicado, não me meto. Mas 90% dos meus amigos não se aproximariam dos sítios por onde passo.
Em tudo mede o risco? Estou a pensar na sua polémica com José Sócrates. O PM aponta-o como o seu melhor inimigo. Gosta da tensão desta relação?
Não gosto. Não escolhi. Não escrevi nem mais nem menos sobre o engenheiro Sócrates do que escrevi sobre outras pessoas. Santana Lopes tem mais razões de queixa, por exemplo. Paulo Portas, talvez. O que faz aqui muita diferença é o modo como ele reage às críticas.
Como é que é quando se cruzam?
Por acaso não sei quando nos cruzámos pela última vez… Acho que nos cumprimentámos. Ele é uma pessoa extraordinariamente diferente do que eu sou. A maneira como nos relacionamos com a vida, as pessoas, os temas e o que queremos fazer é distinta. O que li d’ “O menino de ouro” e o que sei e que não vem em parte nenhuma reforça ainda mais essa convicção. Quer no carácter quer na forma como gere a política.
Nunca teve uma boa relação com José Sócrates.
A maior parte das coisas que escrevi no início deste governo eram muito favoráveis. Havia vários conflitos com jornalistas do Público. A nossa regra desde o princípio é não deixar cair o jornalista. Só porque somos pressionados, o jornalista não abandona aquele tema e não pomos lá outro. Houve a história com o [José António] Cerejo, houve outros episódios… Não vou contar o que se passou nas vésperas da publicação da primeira história. Mas a forma de relacionamento do gabinete do Primeiro-ministro, e de outros gabinetes de outros ministros, com os órgãos de comunicação é muito pouco saudável.
Quando há dez anos assumiu a direcção do Público, era muito jovem. Acha que teria, então, a confiança necessária para encetar esta guerra, tão dura, extenuante e difícil? É preciso estar confortável no seu papel para ir a este braço de ferro.
Estou a tentar lembrar-me se tive alguma guerra no princípio... Os riscos que calculo quando estou a conduzir não são os riscos que calculo quando dou uma opinião. Se uma pessoa começa a calcular os riscos de dar uma opinião ou mandar fazer uma investigação, está no lugar errado. Se começo a pensar: não posso dizer esta palavra senão perco uma fonte, não posso dar esta notícia senão aquela pessoa vai ficar zangada comigo… É necessário, até por uma questão de pedagogia democrática, que todas as pessoas se habituem às críticas. Há pessoas que critiquei em editoriais de quem continuo a ser amigo. Os falsos amigos é que não fazem críticas.
O jornalismo é apontado como uma forma de poder. Não foi um político. Mas tem o poder de dirigir o mais reputado diário português.
Tenho consciência de que tenho alguma influência. Posso condicionar algumas decisões, posso levantar problemas, colocar na agenda política temas que não estariam. Já senti uma vez ou outra que textos que escrevi em véspera de debates parlamentares, [fizeram com que] estes corressem de uma maneira um bocado diferente, porque as pessoas tomaram em consideração um argumento que lá estava. Mas em última análise não decido nada.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2008