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Anabela Mota Ribeiro

José Medeiros Ferreira (2012)

18.03.14

José Medeiros Ferreira citou Ribeiro Sanches num artigo, não há muito: “Dificuldades que tem um reino velho para emendar-se”. O historiador, analista, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, considera que este reino velho, Portugal, apesar do transe, tem emenda. O que perpassa do seu discurso é um alento: “Portugal tem condições. Apesar destas medidas terríveis. Que podiam não ser estas. Podiam não ser tão concentradas.”

Sobre este país em transe, novamente em transe, falou-se quase exclusivamente, há uma semana, na sua casa. Fez-se uma dissecação deste corpo, nem por sombras em putrefacção, ainda que com feridas fundas. “Estamos muito endividados, mas as infraestruturas estão cá. Portugal tem hospitais, escolas, autoestradas modernas. Não estou a fazer a apologia do modelo anterior. Denunciei-o. Nesse artigo, dizia que estávamos todos contentes com casa, comida e crédito. Em 2003. Não precisei da crise para o perceber.”

Fez 70 anos há um mês. É um senador da segunda metade do século XX português. 

 

Enquanto historiador, escreveu Portugal em Transe, título de um dos volumes da História de Portugal coordenada por José Mattoso, correspondente ao período 1974/85. Ainda que o tempo e as razões sejam outras, voltamos a encontrar um país em transe.

 Este Portugal em transe é uma consequência do outro. Embora as expectativas não tivessem sido essas quando se pediu a adesão de Portugal à Comunidade Europeia. Entre 1974 e 1976 tivemos uma república de revolucionários. Foram os que pilotaram a ruptura com a ditadura até ao estabelecimento da Constituição. Depois, com a vitória da democracia política pluralista, tivemos uma república de políticos. As grandes decisões eram eminentemente políticas, tomadas por homens políticos.

 

O que quer com isso dizer?

A autonomia da esfera política era real, verdadeira, incontestável. O pedido de adesão: os grupos de interesses (como diríamos hoje), que estavam dispersos e ainda à procura de um centro de gravidade, não tiveram qualquer papel. É uma época do predomínio político que termina no momento da primeira revisão constitucional, em 1982. A partir daí, o poder político e o desenvolvimento do país vão assentar numa figura social que simbolizo nos empresários. Temos uma república de empresários entre 1982 e 1992.

 

O poder dos empresários adveio de serem os fazedores? Eram aqueles que concretizavam um desígnio político.

De certa maneira, sim. A banca nacionalizada era muito pródiga na concessão de crédito, desde que essa concessão levasse ao aumento da produção nacional, e ao estímulo aos empresários. Os empresários dos bens transacionáveis. É um período em que Portugal exporta bastante. Era o domínio do norte, assente no PSD e nos empresários.

Eu tinha defendido em 1975 que o sistema financeiro devia ser um sistema compósito. Bancos nacionalizados, sim; mas não devia haver o monopólio da banca nacionalizada. Para favorecer uma política de estímulo ao crédito. Nunca fui favorável à irreversibilidade das nacionalizações – um dos pontos-base do Manifesto Reformador, que elaborei com António Barreto, em 1979.

Um bom período para os empresários foi o de 82/92, quando se dá a privatização da banca e Portugal entra no Sistema Monetário Europeu. Há dinheiro a rodos vindo do exterior. E a banca tem um acesso privilegiado ao crédito internacional – sabemos que foi assim que ela viveu entre 1992 e 2008.

 

Foi um tempo de dinheiro extremamente barato. E o endividamento dos particulares passou muito pelas baixas taxas de juro.   

O crédito à habitação foi a aliança entre os financeiros e a construção civil. Uma aliança poderosíssima. E por isso não houve alteração à Lei do Arrendamento Urbano. Repare no que é um casal endividar-se aos 25 anos num horizonte de 30 anos… Ficava refém. Só agora perceberam que isso tornava inflexível a mão-de-obra.

 

E inflexível a vida.

Claro. As pessoas ficavam acachapadas naquele casulo. Retomando a periodização que estava a fazer: vivemos numa república de financeiros e jornalistas (com a privatização dos grandes meios de comunicação social) de 1992 por diante. Período que sofreu um estremeção em 2008. Não ouso apontar a figura social dominante neste Portugal em transe.

 

E voltamos à questão inicial, à turbulência que se vive no país.

Há aqui vários transes. Há o transe do 25 de abril. Há o do pedido de adesão. E há o transe da zona euro e da dívida externa – o actual.

 

Vamos decompor alguns desses blocos, estruturantes da realidade portuguesa. Em 1982 começa um novo ciclo, segundo aponta. E pouco depois, temos o FMI no país, que põe as contas em ordem. Tudo parecia, nessa altura, pronto a ser empreendido. Como se a casa estivesse arrumada?

Como se a casa estivesse feita e fosse preciso arrumá-la. Mas tínhamos espaço para arrumações.

 

Porque é que não arrumámos a casa? Porque é que não empreendemos tanto quanto era possível? Replicámos uma longa história, passadas três décadas.

Penso que tem a ver com a nossa tendência para o negócio imediato. Durante muito tempo o Estado esteve sozinho nos grandes empreendimentos estratégicos. Nos últimos dez anos, Portugal não cresceu. Não cresceu mas fizeram-se muitos negócios. É quase a república dos negócios!

 

Alguém cresceu. Cresceram apenas uns quantos sujeitos, individuais?

Um banco é uma entidade colectiva. Esse espírito do lucro imediato, sem uma estratégia, apossou-se da sociedade portuguesa em meados dos anos 80 de uma forma imparável.

 

Está a falar do cavaquistão, de 1985 em diante.  

Sim. O cavaquistão teve uma ajuda exterior, a dos fundos estruturais. Os fundos tinham regulamentos, directivas que os enquadravam. Desse ponto de vista houve uma estratégia obrigatória. Depois, houve o aproveitamento privado. Os primeiros grandes aproveitadores era gente que foi bem informada sobre o acesso aos fundos. Desde a agricultura ao mundo do betão (e colaterais). Podemos simbolizar tudo isto no processo das facturas falsas.

O que lamento é que Portugal não tenha tido uma estratégia própria para a captura desses fundos e para o seu aproveitamento nacional. Custou-me o modo dogmático como se aceitaram os paradigmas dos regulamentos europeus. O cavaquistão ilustra isso bem com a frase: “Somos bons alunos”. Escrevi um artigo cujo título era: “Bons alunos de maus mestres”.

 

Tínhamos condições para questionar “os mestres”? Estávamos numa situação de dependência.

Nessa altura não estávamos.

 

Alguém estende-nos a mão dizendo: “Toma”…

E nós só recebemos o que nos interessa. Podíamos ter dito isso. Podíamos ter feito uma triagem dos sectores em que nos interessava ter ajudas. Sobretudo no CDS fazem-se críticas às cedências na Política Agrícola Comum. Mas não quero condenar o cavaquismo governamental em bloco. Teve uma consequência favorável para a sociedade portuguesa: uma tentativa de maior redistribuição da riqueza. A actual geração do PSD diz que temos de nos empobrecer. Quem fez essa redistribuição, pelos salários dos funcionários públicos, entre outros, foi Cavaco.

 

Por razões eleitoralistas?

Claro. O político está sempre a pensar em eleições – o político que as quer ganhar.

 

Preocupou-se sobretudo com a sua sobrevivência política?

O cavaquismo governamental deslumbrou-se com a entrada na CE, como as elites portuguesas se deslumbraram. Não havia pensamento crítico. Eu era, no Parlamento Europeu, dos poucos que ousavam criticar o paradigma em vigor da CE. E nós entrámos no melhor período.

 

Era o período de Jacques Delors.

E era o período em que ainda existia a Europa Ocidental. A CE via-se como sedutora em termos de modelo social, político, de crescimento económico e bem estar perante a Europa de Leste. 

 

A queda do muro estilhaçou tudo isso.

A queda do muro retirou estímulo a essa exemplaridade. Hoje não se fala de Estado-social sem se apresentar um gráfico. Mas os que apresentam gráficos sobre a falência do Estado-social não são os mesmos que apresentam gráficos sobre o dinheiro que o Estado gasta nas PPP [parcerias público-privadas].

 

Dito de modo redutor: Cavaco teve vistas curtas?

Não. Ele foi vítima.Os portugueses não conheciam a CE. Alguns conheciam a EFTA. Portugal, até 74, faz juras que nunca entrará na CE. As elites, que depois estiveram lá a chafurdar nos fundos estruturais, eram contra. Eram africanistas. O mal de Cavaco foi ter regressado ao ISEG como aluno. Ou seja, viu na CE as aulas que tanto o encantaram no ISEG e que fizeram dele um bom aluno.

No ISEG, nos anos 60/70, houve dois grupos de estudantes. Os que aprenderam o paradigma que lhes foi ensinado, e os que até propuseram cadeiras alternativas. Vou dar dois exemplos: Cavaco, que era assistente, e Ferro Rodrigues, que era dos que propunham cadeiras alternativas (embora agora se tenha esquecido disso). Para sintetizar: o mal de Cavaco Silva foi ter-se visto, de novo, como um bom aluno – da CE.

 

Insisto: quase nunca indagamos ou questionamos porque vivemos em carência, umas vezes mais, outras menos. Estar numa situação periclitante, não nos permite falar ao mestre como um igual.

Quando entrámos na CE, o pressuposto era o de que era um clube de iguais. Só agora é que se está a desfazer essa parte dos estatutos. Agora somos todos assim-assim. Não há nenhuma potência a nível europeu. Vistos de fora da Europa, todos os países europeus são débeis. A Alemanha e a França ainda não perceberam isso. A Alemanha é uma potência média. Repare no apelo que fizeram para que o mundo financiasse o mecanismo europeu de estabilização; o mundo não ouviu a Alemanha. Berlim fala para os países europeus e os países europeus ficam aflitos. Essa desproporção tem de ser ponderada em Berlim. A Alemanha não faz estas fanfarronadas sem afastar o coração dos europeus. Por muito que digam coisas como as que disse Teixeira dos Santos: “Quem paga, manda”. Uma frase tão grossa que não deveria ser dita. Ao dizê-la, aceita-se o jugo, o estatuto de subjugado.

 

Passados 30 anos, voltamos a enfrentar uma situação de agonia.

Não sei se é uma situação agónica. Acho que estamos numa situação de transe.

 

Não vê com cores tão carregadas o momento que atravessamos?

Acho que não vai haver uma solução individual para cada país. Essa é a ilusão em que nos querem fazer acreditar. Estive a ver as manifestações em Espanha; não sei se se pode parar aquilo. Foram centenas de milhares de pessoas na rua. Ou a solução é geral…

 

Ou seja, a reforma da UE tal qual a conhecemos.

Sim. Uma reforma gradual. Não estou à espera, nem queria, e até teria receio, de um passo em frente de gigante. Sobretudo quando está tudo desequilibrado. Sobretudo quando só há uma potência hegemónica. Quando dizem: a Europa é um sonho… Eu não quero sonhos para a Europa!

 

A expressão traduz o desejo de que exista um projecto, pensado, articulado, com laivos de utopia.

Não quero nenhuma utopia para a Europa. A literatura entre as duas guerras, e durante a Segunda Guerra, mostra que as utopias europeias são totalitárias e autoritárias. Não quero “a Europa como destino” (uma daquelas expressões que nos encantam). Quero um contrato político e social entre os povos europeus e os estados europeus. 

 

Se vivêssemos numa república de políticos, resultaria daí um contrato como aquele que deseja para a Europa?

Sem dúvida. Os políticos europeus é que se deixaram colonizar pelos poderes de facto. Os políticos europeus são brandos. Se o poder político não faz a arbitragem dos grupos sociais, a anarquia fica instalada. Como a polícia está bem armada, pode pensar-se que a coisa está controlada. Não tenho nada a certeza.  

 

A Espanha tem um novo governo desde Dezembro. São anunciadas medidas de austeridade e imediatamente há uma grande movimentação cívica. Em Portugal, a adesão e a participação não são tão maciças.

Portugal tem uma tradição, que acho que se devia aproveitar, de um movimento sindical ordeiro.

 

Não frouxo, mas ordeiro?

Ordeiro. E com capacidade de enquadramento. O Estado português deve imenso ao serviço de ordem da CGTP-Inter. Um serviço para que não haja provocadores, violência.

 

Outra leitura: a de que as pessoas não reagem porque estão tolhidas pelo medo.

Essa parte também existe. Mas não nos líderes sindicais, que são decisores políticos.

 

Estava a dizer que não haverá soluções individuais. Nesse caso, importa o esforço do bom aluno?

É claro que todos os países têm de fazer um esforço para o saneamento das suas finanças. Mas no detalhe, não haverá uma solução pelos méritos na contenção orçamental. A Holanda também está com dificuldade em cumprir os 3% de défice orçamental.

 

Inimaginável. Um país protestante… É a própria máquina que está desafinada.

Exactamente. Como não se quer assumir que é o sistema, como se quer atribuir as culpas a cada Estado individualmente – e a cada indivíduo – não se vai chegar a uma conclusão. Não vai haver solução para o pagamento das dívidas como elas estão. Tem de haver um outro tipo de solução. Apresentam a Grécia como um “não-precedente”. Ninguém quer ser a Grécia, mas a Grécia já avançou nesse domínio.

 

Não era praticável, nem para a Grécia nem para ninguém, pagar a dívida com juros de 100%.

Claro. Já não existe o euro como moeda comum.

 

Como assim?

Temos o padrão euro. Antigamente havia o padrão ouro. As moedas em grande parte são moedas nacionais que são aferidas pelas taxas de juro. Há o euro português, que vale no mercado consoante as taxas de juro. Há o euro espanhol, o euro alemão... Se formos ver as agências de rating, até 2009 só havia A para toda a gente.

 

Caímos todos num engodo?

Caímos numa armadilha. A liquidez financeira evaporou-se. O sistema interbancário deixou de funcionar. Quem eram os devedores mais à mão para expurgar e injectar capital nos sistemas? Os Estados. Claro que houve alguma leviandade no acesso à banca internacional. Uma leviandade praticada pelos Estados e pela banca privada.

 

E consentida por todos.

Era um modo de funcionamento do sistema. Isto vai ser resolvido numa conferência financeira internacional. Chame-se G-20, chame-se Ecofin, chame-se Zona Euro… Vai haver soluções.

 

É o jogo de equilíbrios mundial que vai ditar a urgência de uma conferência dessas?

Já há pressões. Nomeadamente sobre a Alemanha. Repito: a Grécia vai à frente no modelo de resolução da crise da dívida.

 

Não paga.

Não é não paga. Houve da parte dos credores a percepção de que, para continuar a receber as suas rendas, tinham de perdoar parte das rendas.

 

Isso vai acontecer inevitavelmente com outros países, entre eles Portugal?

Portugal será sempre um terceiro ou quarto país. Nunca seremos o segundo. Vamos dizer que não queremos… A Irlanda seria um bom segundo.

 

Foi ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Constitucional, um governo socialista. É um homem de esquerda.

Cada vez mais. Esta organização social, económica e financeira tem os dias contados. Tem que haver reformas profundas. A base em que assenta a sociedade é frágil.

 

A sua relação com o PS tem sido turbulenta.

Distante, distante.

 

O PS teve até há pouco um líder que foi talvez o político mais execrado das últimas décadas.

Nunca o apoiei. Desde que se candidatou a secretário-geral do PS. Mas agora não vou dizer nada sobre ele. Não fazia parte da minha cultura política. Uma diferença de natureza.

 

Onde quero chegar: ao tempo que vai ser preciso para que a esquerda se recomponha, se reconfigure, para voltar a pensar em ser Governo.

É um movimento europeu, também. Os partidos [de esquerda] foram capturados nos anos 90 de uma forma infantil, mas sedutora. A Internacional Socialista desapareceu. Existe um partido socialista europeu que serve para gerir as votações no Parlamento Europeu, para fazer 302 emendas num relatório – coisas adjacentes. Há muitos anos que não dá resposta às questões fundamentais da construção europeia. Há movimentações, grupos de reflexão. François Hollande, o Partido Democrático Italiano, o SPD, o PSOE, o Partido Trabalhista inglês. Há um grupo de reflexão que vai querer retomar, reformando, os caminhos da Terceira Via.

 

No pós-Blair, ficou manifesto que o caminho da Terceira Via se esgotou?

Mas há muitos protagonistas que ainda estão lá. E que precisam de seguir aquela máxima do D. Luís da Cunha, que escreveu ao rei D. José I: “E agora que sucedeis a vosso pai, D. João V, sempre que tomardes uma posição diferente, justificai-a com um argumento antigo. Para que o vosso pai não seja desautorizado”. O que fizerem, será sempre num movimento reformista, de novo passo em frente. Os partidos socialistas europeus têm de olhar para esta crise em conjunto. António José Seguro tem de se associar aos outros partidos. Não pode ficar sozinho. O Partido Socialista foi muito filho da cultura política que existia, e que podemos simbolizar na cultura autárquica.

 

Isso dá-nos uma imagem paroquial, compartimentada, rente à necessidade.

Rente à necessidade, sim. Tudo muito prático e imediato. O PSD também é isso. O CDS e o BE não são porque quase não têm representação autárquica. Senão, também eram. Isso é o que o PS tem de ultrapassar.

 

Hollande, o mais proeminente líder de um partido socialista na Europa, não é uma figura carismática.

Na festa dos meus 70 anos disse que já estava de tal maneira que até aplaudia a eleição de François Hollande. Bem comportado…

 

Antes Ségolène?

Não! Foi um fogacho.

 

Também era bem comportada. Mas ao menos era mulher.

A Martine Aubry também é.

 

Mas não foi protegée do Miterrand. E é feia. Estas coisas contam.

Nas primárias norte-americanas tinha simpatia pela Hillary Clinton. Porque tem métier. Hollande: se ganhar é muito importante. Pode ser uma reviravolta. E o SPD, com este novo líder, está muito consciente de que a Alemanha tem de sair do isolamento em que está. Sarkozy não é aliado para ninguém. É um ser errático.

 

As eleições na Alemanha são apenas em 2013. Falta muito tempo.

Sim, mas é uma boa oportunidade para refazer alguns objectivos da esquerda europeia. 

 

Como é que vamos viver no curto prazo?

Até 2013, Portugal está ao abrigo do mercado global. Está protegido. Por muito mal que esteja. Fazemos parte dos países que têm acesso aos eurobonds. Em condições que consideramos más, penalizadoras da boa redistribuição de riqueza, do crescimento da economia. De acordo. Mas já estamos nessa realidade que só pode ir crescendo – a de que já existem eurobonds. 

O nosso PM diz que em 2013 vamos regressar aos mercados. Mas quando Portugal voltar aos mercados esses mercados não são os mesmos que Passos Coelho tem na cabeça.

 

A velocidade é uma das marcas deste tempo. As transformações serão galopantes?

Acho que não serão galopantes. Qual é a primeira palavra que os novos PM dizem?

 

Mudança.

Coragem. Parecem um alferes a conduzir um pelotão. A primeira qualidade que acham que um PM deve ter não é a lucidez. Nunca dizem: “Vou dar o máximo para manter a capacidade de lucidez.” A primeira frase sobre os nossos últimos PM’s é: “Vejam a coragem das medidas que está a tomar”. Na segunda parte do mandato, é uma desgraça. Porque já não tem coragem para tomar as verdadeiras medidas que devia ter tomado. Quero ver a coragem de Passos Coelho quando chegar ao problema das empresas com rendas excessivas. Ou ao problema das empresas que participam nas PPP.

 

Falou de lucidez. Porque é que é tão importante que um PM tenha esta qualidade?

Para saber onde está. No congresso do PSD, o PM falou de coragem. Não me garante nada. Até pode ser um aventureiro corajoso. Passos não é um aventureiro. É obstinado. Mas já tivemos aventureiros.

 

A verdade é que o memorando foi assinado com a troika e era preciso cumpri-lo.

Em todos os contratos, o que é preciso é a boa fé dos contratantes. Cumprir é na medida das possibilidades. Se se chegar à conclusão de que não é possível cumprir parte daquelas medidas, importa manter a boa fé. Se os credores perceberam que tinham de perdoar parte da dívida grega, como não hão-de percebê-lo para outros países?

 

Perceberam, nas ruas, que os gregos não iam pagar. Devem ter a esperança que nós, portugueses, paguemos.

Eles, os credores, farão as suas contas. Não estamos sozinhos a fazer contas.

 

Temos emenda, então.

Acho que vamos sair razoavelmente bem desta fase. Vamos baixar o nível de vida. Temos é de fazer isso de forma gradual, equilibrada. E não ao sabor do ciclo eleitoral. Ao contrário da coragem apregoada pelo PM, o que ele está a fazer é o que qualquer PM faz na primeira fase do mandato. São as medidas altamente impopulares concentradas. Como dizia o Nicolau Maquiavel, o mal deve fazer-se de uma só vez, e o bem pouco a pouco. O nosso Passos Coelho, embora sendo das artes da gestão, está a aplicar este princípio político.

 

Não está a aplicar o outro princípio político de Maquiavel que diz que, se for preciso escolher, é melhor ser temido do que amado. Passos parece querer ser amado.

Começou por ser amado. O que é a carreira pública de Passos? Imagino que tenha sido o aluno mais amado pela sua turma e pelos professores. Não parece estar na vida política por uma espécie de desequilíbrio sentimental, por uma necessidade de compensação. Ser temido, no fundo, é uma vingança por não ser amado. Maquiavel diz que é mais durável ser temido. Penso que nas sociedades democráticas isso não é verdade. O pavor não é tanto que não se possa derrubar o homem nas próximas eleições.

 

Qual foi o político português mais amado no pós-25 de Abril?

Mário Soares. Foi tudo: o mais amado, o mais odiado. Numa primeira fase, ao mesmo tempo. Depois, as coisas foram-se decantando. O facto de, com a sua idade, continuar a dar o seu testemunho, numa forma que tem mais a ver com o interesse público do que com qualquer interesse particular, faz dele uma figura querida. Diria que é cada vez mais apreciado pelos portugueses, desde a última campanha presidencial. Foi outro período em que não foi amado, em 2005.

 

Algum temido, houve?

Se houve, já desapareceu. [riso]  

 

Olhando para a política caseira, António Costa é um dos grandes políticos do futuro? Quer como PM, quer como PR?

Sem dúvida. Acho que tem de ser, primeiro, PM. Precisa de um ponto de apoio mais geral do que ser presidente da Câmara Municipal de Lisboa.

 

Precisa de ter o partido na mão?

Não. Precisa de ter o país na mão. Mesmo que seja só metade do país. O partido, também. Escrevi um artigo sobre as reformas estatutárias do PS e fiz um elogio a Seguro. Se Seguro não chegar à Terra Prometida, mesmo inventando os Dez Mandamentos (que é o que está a fazer, com a alteração dos estatutos), aquele que me parece mais bem preparado é o António Costa. Como dizia o Mitterrand, o que é preciso nesta vida é ter muito métier e algumas convicções. Talvez Costa tenha demasiado métier (vem da Juventude Socialista), mas tem algumas convicções. É um homem da responsabilidade e do dever, o que é muito importante num político. Vejo-o como um excelente PM. Só depois disso deve encarar a candidatura à presidência.

 

Do lado do PSD?

Durão Barroso será o candidato presidencial do PSD. Imagino que já esteja a fazer a lista das benfeitorias que, como presidente da Comissão Europeia, conseguiu para Portugal. Uma lista extensa que há-de ser publicada em diferentes cadernos dos semanários. Bandeiras da CE nos edifícios que tiveram o seu apoio. É a única maneira que tem de fazer esquecer que saiu de PM de Portugal [para ser presidente da CE]. Coisa que o PM do Luxemburgo não quis fazer, porque deu prioridade a continuar a ser PM do seu país. Estamos a falar do senhor Juncker.

 Durão conhece como as palmas das mãos os grupos de interesse instalados em Portugal.

 

O seu PSD era o PSD do grande capital.  

Sim. Nem o Marcelo o foi dessa maneira. O Marcelo Rebelo de Sousa já não sai do estúdio de televisão. Ele não sabia, mas quando entrou, a porta fechou-se para sempre. O destino dele é a televisão. Outro candidato que pode correr por fora e obrigar a uma negociação: Santana Lopes.

 

À esquerda, para a presidência, aposta em quem?

António Guterres. A não ser que faça contas – é dado a isso –, perceba que pode não ganhar, e não avançar. Outra possibilidade: Jorge Sampaio. Não estou a dizer que queira ser candidato. Mas daqui a três anos tem 75 anos, ainda pode fazer um bom mandato. Se o Guterres não quiser, não estou a ver como o PS descalça a bota. O António Vitorino, é o costume. E não se passa das diatribes [partidárias] para a presidência.

 

Sócrates vai voltar?

Não creio. Neste regime, não creio.

 

É conhecido por ter “a visão planetária” – expressão que se usa a seu propósito. Vê as coisas globalmente, enquadradas. Como é que a adquiriu?

Tenho um certo sentido da previsão. Houve alguém que disse: “Sinto-me levado por forças do destino que não domino”. Não sei explicar. Sou muito intuitivo. Há também um treino. O que eu conheço bem é a natureza humana. Raramente me engano sobre uma pessoa. Tenho 70 anos, estou sempre a reflectir, a ponderar, a tentar ver para lá das aparências. Não me deixo levar por epifenómenos.

 

Mais do que desconfiar das aparências, o que prevalece é uma atitude crítica?

Não desconfio. É uma metodologia crítica, hoje em dia mecânica. Tenho um grande amigo, Vasco Pulido Valente (nem sempre estou de acordo com ele), que dizia para terem cuidado comigo…, que eu até no duche pensava em termos políticos!

 

Vasco Pulido Valente e muitos outros estiveram na sua festa dos 70 anos.

Gostei muito da presença de todos. 

 

Era um certo Portugal ali concentrado. É raro reunir tantas pessoas de sintonias tão diferentes. É a sua natureza, de agregador?

É a natureza das pessoas que lá estavam, que se mobilizaram. Só 24 horas antes percebi que se estava a preparar qualquer coisa. Um amigo telefonou-me a perguntar se não podia adiar o meu jantar de anos porque queria ir ver o Benfica a Guimarães!

Estavam cerca de 200 pessoas. Foi um momento muito emocionante. Bem sei que eram 70 anos. Bem sei que tinha acabado de passar por um momento difícil em termos de saúde.

 

Alguns dos que estiveram lá: Soares, Eanes, Jaime Gama, Mota Amaral, António Barreto, António Costa, Joana Amaral Dias, Eduardo Paz Ferreira, Mário Mesquita, Maria João Avillez, Eurico Figueiredo.

Tive muito gosto na presença de Eanes. Soares quis conhecer-me quando eu era um líder estudantil (e ao Jorge Sampaio). Tivemos relações políticas [difíceis], mas sempre gostámos um do outro. Bem, ele disse muito mal de mim! [riso] Fazemos parte da mesma família política. Costumo dizer que, para além de mim, é a pessoa mais intuitiva que conheço. Conheci Soares antes do 25 de Abril. É preciso dizer isto: se não tivesse havido a ditadura, eu não teria sido político. Comecei a combater a ditadura aos 18, 19 anos.

Em relação às pessoas que lá estavam: há sobretudo um laço emocional. Embora mantendo a cabeça fria, sou uma pessoa calorosa. Foi um gesto de generosidade da parte delas, de reconhecimento. “Quando passaste pela minha vida, marcaste a minha vida”. É muito reconfortante.

 

Sente que deixou uma marca?

Eu desconfiava que sim. Mas foi bom saber que sim. Lembro-me muito do filme Esplendor na Relva e do casal que gostou tanto um do outro… Dali a cinco anos encontram-se e percebemos que são dois fantasmas do passado. Tem de haver um momento certo de as relações aconteceram. Tenho muito gosto de fazer novas amizades. Uma das últimas foi o Antonio Tabucchi. Ofereceu-me um livro sobre o Curzio Malaparte, personagem inquietante – gostávamos de personagens inquietantes. Está a ver duas pessoas de 70 anos fazer amizade numa tarde?

 

Teve medo, com a doença?

Não. Medo, não. Fiquei muito surpreendido. Fui ao médico pensando que me passava com soro. Estava com uma aparente icterícia, e tratava-se de uma coisa mais séria. Até ali não tinha tido nada, fora as gripes, nunca tinha tomado uma injecção. Quando fui operado – felizmente tive boas equipas médicas – foi um choque. Mas o sentimento que me assaltou, e que persiste, foi o de uma grande serenidade. A ordem dos meus sentimentos em relação ao meu estado de saúde é: primeiro, tranquilo, segundo, confiante. Foi uma grande prova. Passou-se há três meses. Sinto-me bem. Se me dissessem: “Está curado”, eu acreditava! [riso]

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012