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Anabela Mota Ribeiro

José Vegar ("Serviços Secretos Portugueses")

13.01.15

Fechamos o livro e experimentamos todos os movimentos que são próprios de um filme de espionagem. Um remexer na cadeira, uma agitação no olhar, um canto da unha que é mordido. E se o sentimento de inverosimilhança for só aparente? Vislumbramos em le Carré um ideal de aventura, inconsequente. Um abismo no qual podemos mergulhar sem risco. Um mundo onde a trama, fio por fio, se deslinda ante os nossos olhos, e nos enreda no glamour da ficção, página após página. Na vida real, fechamos o livro de José Vegar e ficamos estonteados. A realidade que se nos apresenta, afinal, tem uma dimensão poliédrica, obscura, inintelegível que não supúnhamos que existia. Pelo menos com esta espessura, pelo menos entre nós.

«Serviços Secretos Portugueses – História e Poder da Espionagem Nacional», (A Esfera dos Livros) é um documento precioso que nos situa no mundo em que vivemos. Trata do terrorismo islâmico, da relação inextrincável entre o terrorismo islâmico e o crime organizado, do anacronismo do edifício legal português num mundo transtornado pelo 11 de Setembro, da competição explícita entre os diversos organismos portugueses, do branqueamento de dinheiro como principal motor da actividade criminosa, da malha chinesa, de áreas especialmente sensíveis, como o contrabando, as identificações falsas, a promiscuidade entre os negócios e a política, do «ciberespaço como terreno de eleição para os terroristas, dada a confidencialidade, alcance e rapidez que garante aos contactos».

Usemos como metáfora uma língua e a sua aprendizagem. O mundo dos serviços secretos e do crime organizado funciona com uma música própria, a qual só pode ser ouvida por aqueles que conhecem as notas/os vocábulos que a compõem. Que dominam as regras e a construção da partitura, portanto. Senão, passam na rua e os sinais aparecem disseminados num ruído de fundo. Indistintos.

Para os que não falam a língua, um marroquino que espreita pela porta, na Almirante Reis, em Lisboa, pode ser, apenas, um imigrante ilegal. Para outros, conhecedores da gramática, ele pode ser também um terrorista cuja actividade tem «configuração viral, com reprodução e mutabilidade constantes (...). Pode ser para financiar um atentado em Florença, para comprar explosivos em Lyon para rebentar alguma coisa em Berlim. Mas também pode ser só para uma transa qualquer de “heroa”, ou para comprar uns passaportes em Banguecoque, que hão-de chegar ao Paquistão».

O livro de José Vegar permite começar a aprender esta língua. A aprendizagem não é imediata. O conteúdo é de tal modo denso, complexo, mutante – tal qual a realidade – que precisamos de repetidas visitas para integrar as regras de funcionamento. Não que a exposição seja confusa – pelo contrário. É límpida, e estão bem demarcados os territórios da ficção e do factual. (À semelhança da “escola americana”, a introdução aos principais temas e capítulos é feita com uma pequena ficção, baseada em factos verídicos). A informação é detalhada, decorre de uma investigação de anos que o autor vem fazendo e de uma generosa bibliografia, citada nos seus excertos mais eloquentes.

No fim, persiste a ideia de que acedemos a uma ínfima parte do novelo – e aí, diverge a ficção de le Carré da realidade em que estamos imersos. Na primeira, a revelação é feita progressivamente e rejeitamos a incompreensão, as pontas soltas, as incongruências; numa linha, ficamos a conhecer todas as cartas do baralho, as sequências montadas, ficamos a conhecer o sentido. Na segunda, o desocultamento é incompleto, e será sempre assim. «Nunca se fecha nada. Estamos no meio de uma operação interminável e você tem de aprender a viver com isso», diz uma das personagens de uma das ficções. Vegar, citando o académico escocês Randstorp, sintetiza: «Conhecemos os desconhecido». Um desconhecido que tem «natureza amorfa», que aparece «desterritorializado», que actua em «redes transnacionais». Perante este quadro, constata-se a quase impossibilidade de se ser preventivo, e a contingência que atira as autoridades para um carácter reactivo. Não é possível esperar a ameaça de frente, porque não se pode prever cabalmente de que lado ela vai aparecer.

Um dos aspectos mais surpreendentes do livro é revelar como Portugal faz parte de uma rede da qual nos julgávamos arredados. País conotado com brandos costumes, e de tradição pacífica, é com espanto que lemos o antigo director do SIS, José António Teles Pereira, quando este diz: «O nosso país situa-se numa espécie de “zona cinzenta”, da qual o máximo que se pode dizer é que não está tão “próxima” do problema para que a ocorrência de atentados se situe a nível da grande probabilidade, mas que também não está tão “longe” em termos de essa possibilidade ser considerada negligenciável».

Portugal é, inesperadamente, apetecível para «indivíduos que se deslocam ao nosso país em busca de documentos falsos, de financiamento e de recuo temporário». E, claro, não está arredado de actividades ilegais como o branqueamento de dinheiro, tráfico de armas, fraude empresarial, tráfico de pessoas, droga, produção de pornografia infantil ou corrupção – só para mencionar os mais gritantes. Por razões várias, «Portugal partilha características comuns a outros países ocidentais (...) extremamente atraentes para os criminosos».

O diagnóstico dificilmente podia ser mais duro, atendendo àquilo de que estávamos à espera. Ou seja, de muito pouco. Como se vivessemos num paraíso, imunes aos acontecimentos que fazem as notícias. E a sensação de esmagamento é imensa quando nos damos conta da competição feroz que existe entre os vários organismos do Estado, tutelados por diferentes ministérios. São forças que se digladiam no terreno, a partir de um modelo anacrónico. «O edifício legal levantado em 84 é a base do sistema português de espionagem actual». O desfasamento entre o mundo que então conhecíamos e aquele em que hoje vivemos é colossal. Vegar chama a este edifício «obsoleto, antiquado». Para dizer o mínimo.

Por último, há que contar com uma desconfiança militante e um ódio generalizado que os serviços de segurança desde sempre mereceram e que minam a acção destes. Muitos questionam-se, inclusive, sobre a importância de um Serviço como este... Se é certo que o território é sensível e mexe com as liberdades e garantias dos cidadãos, não é menos certo que muito deste preconceito decorre de um passado recente. O fantasma da PIDE, operante entre 33 e 74, ensombra o modo como os serviços secretos são olhados. A associação é viva, e vincada por uma “consciência afectiva”.

É fácil constatar esta associação de declinarmos a palavra “espião”. Se a dizemos, pensamos imediatamente num cenário de 007, munido de armas sofisticadas e mulheres soberbas. Ou, numa versão mais romanesca, estamos num livro de Graham Greene, também ele agente secreto, além de escritor enorme. Mas se adoptarmos a forma verbal, o resultado é medonho! “Espiar” é uma actividade repulsiva, com laivos de delacção, que merece ser ostracizada e exposta a vergonha na praça pública! Que fazer, então?

Com este testemunho, José Vegar propõe-se «dar um modesto contributo para a eliminação de algumas das demasiadas sombras que envolvem permanentemente a espionagem portuguesa». Objectivo amplamente conseguido.  

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007