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Anabela Mota Ribeiro

Judite de Sousa (2009)

09.09.14

Conseguiu uma das duas vagas para estagiários que havia na RTP. Tinha 18 anos. Percorreu um longo caminho, desde então. Judite de Sousa é directora-adjunta da informação da RTP, e uma das jornalistas mais respeitadas no panorama audiovisual português. Acaba de lançar o livro “A Vida é um Minuto – O Poder da Imagem”, onde disseca a relação entre o jornalismo e a política.

Esta entrevista aconteceu num sábado, no dia a seguir a ter moderado um debate entre líderes políticos. Parecia cansada, mas disponível. E partilhou momentos essenciais do seu percurso.

 

Autenticidade é uma palavra sublinhada no seu livro. Porquê?

Enfatizei a ideia da autenticidade porque acho que é um valor que está em crise na política e no jornalismo. Acho que sou uma pessoa autêntica. No sentido de a minha imagem pública não ser muito diferente da minha imagem real. Aquilo que sou na televisão, o que faço, o que digo, corresponde integralmente à mulher que sou. Não me vejo como um produto fabricado. Nem procurei retocar a imagem, desvirtuando essa autenticidade – que remete para as minhas origens.

 

Quais são? Como olha para a menina que entrou aos 18 anos para a RTP-Porto?

Não sabia praticamente nada da vida. Era uma pessoa sem mundo, fechada sobre mim própria. Não seria a pessoa que sou, nem seria a jornalista que sou, se não tivesse começado a trabalhar aos 18 anos, em circunstâncias de grande esforço, se não tivesse vivido sozinha em Macau, se não tivesse feito 21 anos em Pequim. Tudo isso determinou muito o sentido da minha vida. São coisas que apesar de estarem recuadas no tempo, acompanham-me. 

 

Quer esmiuçar? Conte mais dessa pessoa que foi, dessa vivência que ainda a acompanha.

Eu praticamente não fui menina. Porquê? Porque sou filha de pais separados. Cresci com a minha mãe, a minha avó e uns tios. Desde cedo tive a exacta noção que tinha de fazer muito por mim para vencer na vida. Isso implicava ter autonomia, ter capacidade financeira, ter condições para me realizar profissionalmente. Saí muito pouco, namorei muito pouco, dancei muito pouco. Quando comecei a trabalhar, o meu tempo ficou ainda mais limitado, e o meu foco era o trabalho. Todas as outras esferas da vida, cada vez mais, iam ficando para trás.

 

De onde vem a consciência de que tinha de lutar sozinha? Podia, simplesmente, reproduzir um modelo, um mundo, uma geografia, não ambicionar.

Vem de mim. Eu não venho de uma família rica, não tenho o tipo de enquadramento familiar em que, quer corra bem, quer corra mal, alguma coisa se há-de arranjar. Tinha a consciência de que o que conseguisse fazer da vida, dependia exclusivamente de mim. Por isso gosto tanto de citar o Ortega Y Gasset, para dizer que eu sou eu e as minhas circunstâncias. No campo profissional, isso também aconteceu. Nunca me senti muito apoiada, nunca entrei em grupinhos, nunca estive com este porque daí retirava vantagens profissionais. Procurei ter um percurso limpo e independente.

 

Como é que entrou na RTP?

Por concurso público. Precisava de trabalhar, ter algum dinheiro meu. Respondia a todos os anúncios, no Jornal de Notícias. Acabou por ser o jornalismo a minha porta de saída, como podia ter sido outra. Não escolhi ser jornalista. Foi o jornalismo que veio ter comigo. Não faço ideia do que podia ter sido a minha vida se em 1979 não tivesse respondido a um anúncio. Três meses depois acabei por ser chamada para prestar provas.

 

A menina nunca teve o sonho romântico da televisão?

Não. Talvez por ser sozinha, via muita televisão. Se exceptuar as amigas da minha rua, não tinha pessoas com quem brincar. Gostava imenso de ver os clássicos do cinema, com a Elizabeth Taylor e o Richard Burton, os festivais da canção. Delirava com o glamour da RTP nos anos 70, as lantejoulas, a Alice Cruz, a Ana Zannati, a Manuela [Moura Guedes] a apresentar o festival da canção. Achava que aquelas mulheres deviam ser poderosas, bajuladas, que deviam ter vidas fantásticas! [riso]

 

Muitas pessoas devem olhar hoje para si e dizer o mesmo: que é poderosa, bajulada, que tem uma vida fantástica.

As pessoas fazem uma ideia errada das nossas vidas. Acham que compramos tudo o que queremos, que temos o mundo aos nossos pés, que da profissão só se retiram vantagens. Mas não é bem assim. Tenho momentos de felicidade, momentos de grande solidão, tristeza, ansiedade – como qualquer outra pessoa. E o mundo da televisão é efémero, iníquo. Há inveja, há competição…

 

Voltemos a Macau. Nunca tinha viajado?

Não. Perguntaram-me se queria ir para Macau e não hesitei um segundo. Vivia em Matosinhos. Acho que só tinha saído uma vez para ir a Vigo, ou Tuí, porque a minha mãe gostava de fazer compras na fronteira (azeite, bacalhau, caramelos). O meu mundo resumia-se ao eléctrico da linha 6 entre o Monte dos Burgos e o [liceu] Carolina Micäelis. Não me pergunte por que não hesitei… Tinha uma grande vontade de descobrir, conhecer. Cresci muito como mulher em Macau.

 

E como profissional?

Como profissional, foi zero. Mas como pessoa, foi muito importante. Tinha os colegas que da RTP também foram, basicamente dois casais. Era muito acarinhada por estas duas famílias, mas vivia sozinha, num T2.

 

Lembra-se muitas vezes dessa casa? Foi a sua primeira casa sozinha.

Lembro. Era na baía, num prédio cor-de-rosa, novinho em folha; há dez anos, quando passei por lá, estava completamente degradado. A minha vida era muito previsível. Fazia o horário da manhã, acordava às cinco, fazia o noticiário das sete, oito, nove, saía à hora do almoço. Ganhava muito bem. O meu primeiro ordenado foram nove contos, 250 escudos – que usei imediatamente para tirar a carta de condução. E fui para Macau ganhar 50 contos por mês. Era uma fortuna.

 

Gastou tudo?

Tudo. Quando regressei o meu pai perguntou-me: “Mas tu não trazes nada?, nem dinheiro para comprar um carro?”. [risos] Gastei tudo porque vivi intensamente aquele ano e meio. Viajei, estive na China, no Japão, aos fins-de-semana ia a Hong Kong, e fui operada em Hong Kong.

 

O que é que aconteceu?, operada a quê?

A um tumor benigno num ovário. Foi muito estranho: não tinha namorado, deixei de ter a menstruação e a barriga começou a crescer. Foi-me diagnosticado um tumor benigno com o tamanho de uma laranja. Fui operada, era um problema simples de resolver. Nunca tinha contado isto… Do ponto de vista pessoal, Macau foi uma experiência muito intensa.

 

Descobriu aí que tinha essa força, essa persistência?

Acho que sou uma mulher muito forte. Melhor: procuro ser uma mulher muito forte. Por mais blindados que estejamos, nunca temos as forças todas que julgamos que temos. Mas aguentei bem. E sabia muito bem o que queria. 

 

No regresso, inscreveu-se em História. Casou e ficou grávida. E trabalhava na RTP. Aconteceu tudo ao mesmo tempo.

História era o curso que podia fazer em casa, faltando às aulas; isso dava-me uma certa liberdade. Casei com um operador de mistura e efeitos especiais, que eu achava que era o homem mais bonito da RTP-Porto [risos], e ainda hoje acho que é! Nasceu o André quando eu estava no segundo ano da faculdade.

 

Quando é que começou a poder escolher? Tudo o que lhe aconteceu para trás, é contingente, não é uma escolha deliberada. Tratou de agarrar oportunidades.

Só quando vim para Lisboa. Que representa um momento de viragem na minha vida. Tomo a decisão de me divorciar. E profissionalmente percebo que se continuasse no Porto não passaria da cepa torta. Foi um momento de grande afirmação. Mas sabia também que iria entrar na selva. Os primeiros meses em Lisboa foram complicados. “O que é que vem fazer esta do Porto, disputar os nossos lugares?” Isto não me foi dito claramente, mas sabia que era assim. Uma parte da redacção era-me hostil. E nos primeiros anos tinha muito má imprensa.

 

Porque é que acha que isso acontecia?

Eu não frequentava o Snob. Eu não faço parte do meio d’ O Independente, que estava com enorme pujança. O Paulo Portas, director do jornal, escreveu uma crítica demolidora a meu respeito. Moderei uma série de debates políticos e ele comparou-me com a Manuela, que tinha moderado um outro. (Nunca falei com ele sobre isto). Chama-se “O Outro Lado da Lua”. A Lua era ela, eu era a desgraça. Muitas vezes chegava à redacção e tinha recortes sobre a secretária. Sobre a maneira como me vestia. Eu não vestia mal…, mas quando vim do Porto para Lisboa era como a rapariga da aldeia que chega à capital.

 

Era olhada assim ou sentia-se assim?

Sentia-me assim. Hoje as coisas são diferentes, existem assessores de imagem. Mas na década de 90 não, era cada um por si. Eu tinha consciência de que as minhas roupas não eram as mais bonitas. Usava uns casacos largos… Portanto, era criticada pelo trabalho que fazia, pela roupa que usava. Mas acreditava em mim. Acreditava que o meu valor acabaria por se impor. Obviamente tinha apoio – do director-geral, José Eduardo Moniz, que me convidou a vir para Lisboa. Ele tinha apostado em mim.

 

Pensou nesse ambiente de hostilidade quando olhou para a plateia que estava no lançamento do seu livro? Estava toda a gente. Não pode ser mais consensual.

Não acho que seja consensual. Acho que sou respeitada. Mesmo não andando todos os dias a contar a minha história de vida, sinto que as pessoas a conhecem, olhando para mim. As pessoas que estavam no lançamento do meu livro estavam por respeito. Eu não sou amiga delas – amiga de casa. A única pessoa de quem sou amiga é do Joaquim Oliveira, há mais de 20 anos. Temos o mesmo granito nortenho. Todas as outras, conheço-as profissionalmente. Nunca pensei que o Ricardo Salgado estivesse três horas a ouvir a apresentação de um livro. Ou o Zeinal Bava. Eu não almoço com eles, não vou a casa deles, eles não vão à minha. 

 

O que sentiu, quando olhou para aquela plateia? Pensou no caminho todo, no que estava para trás?

Sim. É uma sensação muito gratificante. A de que vale a pena trabalhar e ser séria. Aquilo traduz esforço, seriedade. Nunca tive nenhum idílio com nenhum deles, nunca houve um ramo de flores. Aquele quadro só podia corresponder a trabalho.

 

Nas fotografias desse dia parecia muito feliz.

Estava. 

 

As pessoas não a conhecem senão profissionalmente. Que imagem é que acha que têm de si?

De uma pessoa esforçada, determinada, que luta; e de uma pessoa simples. Desse ponto de vista, sou a mesma de há 30 anos. Gosto de uma boa viagem, uma boa mala, um bom restaurante, mas mantenho uma simplicidade na maneira como me olho e posiciono em relação aos outros. As coisas não me subiram à cabeça. Os outros percebem que sou um produto autêntico.

 

O gosto pelas malas, pela coquetterie, é um modo de resgatar a menina que não pôde ser?

Não tem a ver com isso. Acha que sou muito coquette? Acho que não. Acho que fui apurando o meu gosto, a minha imagem. Se tenho muito, desfruto dessa possibilidade, se tiver de contar os tostões também me adapto a essa realidade. Quando vim para Lisboa passei por muitas dificuldades.

 

Disse numa entrevista que às vezes chegava a casa e tinha apenas uma sopa e um ovo estrelado para comer.

Investi tudo na educação do meu filho, que andou no melhor colégio de Lisboa. Só tive aquele filho e projectei tudo nele. Quis criar as condições – e isso também explica a minha dedicação ao trabalho – para lhe dar uma excelente educação. Tinha a seguinte noção: quanto melhor eu fizer, mais recompensada financeiramente sou. A minha remuneração está ligada ao que faço e ao retorno do meu trabalho.  

 

O seu filho também parecia muito feliz nas fotografias.

Está. O meu filho não é de dizer o que pensa sobre mim, não é de exteriorizar sentimentos. O principal temas das nossas conversas não é meu trabalho. Agora falamos muito da vida dele: está a estagiar em advocacia. Dou-lhe conselhos; ele faz de conta que não ouve, mas ouve.

 

 

Publicado originalmente na Revista Máxima em 2009