Júlia Pinheiro
Fim da tarde. No camarim, há chariots com roupa dependurada, dezenas de sapatos, colares e pulseiras. Também há água em garrafas de meio litro, um computador, e livros.
Júlia Pinheiro, a apresentadora de televisão, escreveu um livro. “Não sei nada sobre o amor”. Porquê? “Preciso de uma coisa, uma parede contra a qual me atiro. Me testo”. Esta parede, escrever, existia para ela há anos.
É formada em Línguas e Literaturas Modernas. É uma leitora furiosa. É a autora de um romance onde se narra uma saga familiar. Começa no início do século XX, com Maria da Glória, e termina com Benedita (bisneta daquela), no tempo presente. Entre elas há Purificação e Ana Clara. Como pano de fundo, há o Portugal de Salazar, um pai que é inspector da PIDE, um tempo em que o sexo era uma porcaria e o amor um infortúnio.
Temos a ideia de que a conhecemos bem. Ela mesma começa por dizer: “Que é que quer saber que não saiba já?”. O que o livro mostra é que Júlia Pinheiro, além de ser aquela que vemos na televisão lá de casa, é também outra.
No livro, a primeira tentação é procurá-la nas personagens. Há uma sobre quem se diz: “Uma amazona desconcertante que provocava uma ventania onde quer que chegasse”!
Nunca provoquei tanta ventania! O livro não sou eu. Se houver nele um bocadinho de mim é na Ana Clara, no tempo da Revolução. Eu tinha 11 anos no 25 de Abril. Os rapazes podiam ir para as manifestações, podiam ter envolvimento político. As meninas não. Viviam resguardadas, num modelo em que tinham vivido as mães e as avós. Passei o dia da Revolução a jogar Monopólio!, o que é um anacronismo bizarro.
A sua família era politizada?
A minha família tinha um distanciamento em relação ao que se estava a passar. Depois vim a saber que não. O meu avô teve ligações ao Partido Comunista. Mas não se falava disto. Os anos seguintes, os anos de transformação cultural, de mentalidades e costumes, foram estranhos para quem estava a crescer. O que está retratado [no livro] é a minha iniciação à sexualidade, àqueles códigos de enamoramento e aproximação. Que era quase à chapada! Era uma coisa que tínhamos que despachar! Ora hoje vamos beijar, amanhã fazemos outra coisa, e andou!
Era preciso ser livre e moderno, e contrariar o puritanismo que vinha de trás.
Era. Eu, até aos 15 anos, não era particularmente interessada [nos rapazes]. Vivia centrada na leitura. Li tudo o que havia para ler cedo demais. Comi tudo lá em casa, e como o meu avô tinha uma livraria, comi o resto na livraria. Passava os tempos livres a fazer arqueologia amadora. O meu primeiro beijo foi dado dentro de um buraco! [risos] Quando comecei a crescer para a feminilidade, talvez já fosse essa amazona: era grandalhona e tal. Não causando ventania, era desconcertante. O meu pai era muito autoritário e rigoroso; retardou tudo o que pôde, tratou mal os namorados todos. A minha mãe tinha uma atitude moderna e despachada. A combinação disto acabou por dar uma coisa temperada.
A saga desta família é contada a partir do ponto de vista das mulheres.
A figura feminina da minha vida é a minha mãe. Com quem tenho uma relação óptima. É a grande formatadora do meu carácter. É a pessoa que me ensinou a amar.
No livro, as mulheres não sabem amar.
O livro é o reflexo dos milhares de histórias que tenho ouvido nos últimos anos. Só neste programa [As tardes da Júlia], já entrevistei três mil pessoas. A determinada altura, as pessoas contam a vida toda… O que vou apanhando? Nos homens, uma austeridade, um código quase prussiano no modo como lidam com os afectos; mas basta tocar-lhes e percebe-se que nunca tiveram uma manifestação de carinho.
As mulheres, escreve, “passavam às filhas o credo simples de uma existência segura e inquestionável: labuta, obediência e Deus”.
As mulheres, durante décadas, não tiveram direito ao prazer, a uma realização pessoal. A moldura era a cozinha, o marido, os filhos. Não tiveram direito à noção de que são pessoas. Na maior parte dos casos que observei, isso reside sempre na mesma coisa: ninguém lhes ensinou, num determinado momento das suas vidas, a amar. Não diria que são pessoas infelizes. Mas são embotadas.
A constatação disso, além de dar título ao romance, funciona como um denominador comum.
Muitas mulheres reproduzem isto!, fazem filhos que são iguais. Eu queria contar a história dessa dificuldade de amar, e de como essa dificuldade em expressar afecto iria determinar a existência delas.
Elis Regina cantou nos anos 70 “Como nossos pais”. Os jovens achavam que iam fazer o oposto daquilo que os pais tinham feito. A liberdade por oposição à proibição. E acabaram fazendo o mesmo!
Porque é que se faz a mesma coisa? Somos todos muito parecidos. A vida, embora em circunstâncias diferentes, acaba por nos pôr perante os mesmos dilemas. O amor. A existência real e quotidiana, (que nos obriga a fazer coisas que não queremos, cedências que nunca pensámos fazer). A geração da Elis Regina foi a dos grandes desiludidos: porque não cumpriram a utopia. A minha geração nem utopia tinha.
Estas mulheres não são mães ideais… Mexe numa ferida. Porque a mãe é o ser inatacável. O grande mito. “Mãe há só uma”.
Estas mães só fazem porcaria. Há mulheres que pensam que a maternidade é um passeio no parque. É uma convicção que tenho há muito tempo: a maior parte das pessoas não tem grandes condições e vocação para a exercer. O instinto maternal não existe, é um condicionamento cultural. Há muitos seres infelizes porque foram filhos de mães que não o deviam ter sido. Há imensos homens que dão umas excelentes mães!
O que quer isso dizer?
Que têm mais vocação para ser “a mãe”. Ser mãe é cuidar, é abnegação, é sacrifício. É entregar a nossa existência a outro ser. Todas as nossas necessidades são subalternizadas às do outro ser, e é assim até morrer. Não quer isto dizer que eu tenha uma experiência terrífica. Sou uma mãe muito feliz. Mas consciente de que não é fácil. Nem todos os dias da minha vida com os meus filhos são luminosos para mim e para eles. Escamotear isto é estupidez, e não é verdade. Mais: eu não queria ser mãe.
Tem três filhos. O que a fez ter filhos?
Tive o meu primeiro filho por amor ao meu marido. Que é um homem que podia ser mãe! É um cuidador por natureza. Não estava à espera que a coisa me batesse tão forte…, mas mal a criatura vem, foi demencial! Tenho com os meus filhos uma relação telúrica.
Para eles, a mãe é também a Júlia Pinheiro…
Não sou nada! Estão-se nas tintas. Tive esse cuidado: afastar essa sujeita da televisão e contextualizar sempre. Sou a senhora que lhes limpou o rabinho e que continua a dizer: “Olha a camisola”. O boneco da televisão, a notoriedade que tenho por trabalhar neste meio, a eles não lhes traz vantagem nenhuma. À semelhança da minha mãe, sou exigente e autoritária. Mas desejo que se autonomizem. Não sou muito ansiosa nem super-protectora. Tento estar tranquila em relação às suas dores de alma.
É bem resolvida porque a ensinaram a amar?
Acho que sim. Tenho dois esteios importantíssimos na minha formação: a certeza absoluta de que era amada no meu reduto familiar. (Sou filha única). E porque me foi inoculada – como se fosse uma bactéria – a auto-estima. Todos os dias me diziam que era fantástica! Quando o mundo estivesse a desabar, havia sempre uma prateleira onde me podia acolher, e onde havia sempre sol. Isto foi-me dito todos os dias! A minha mãe, não passou um único dia sem que me dissesse como gostava de mim. O meu pai não verbalizava da mesma maneira; era através de um humor desconcertante que demonstrava a sua ternura.
Cresceu a achar que era a melhor do mundo?
Cresci a pensar que não havia nada no mundo que eu não conseguisse fazer. Não que era a melhor. Mas que não havia limites.
Há no livro várias conversas decisivas. Perguntava-me se esta mulher, que escreveu isto, não se habituou sempre a ter conversas verdadeiras, sem máscaras.
Não tenho nenhum problema em ter conversas decisivas, que são de ruptura ou de avanço. Mas sempre achei que algumas pessoas não estão disponíveis para essa troca de verdade, ou não estão no mesmo plano de verdade que eu. Habituei-me, na idade adulta, ao “vamos lá decidir isso”. A ambiguidade, as meias tintas, incomodam-me. Tenho um problema: sou apressada. Se é preciso ter a conversa, tenho-a agora, não deixo para amanhã. O tempo não me tempera, e é mau. Tirando a precipitação, gosto da verdade, em todos os planos.
[entra o assistente de guarda roupa com o vestido que Júlia vai usar no dia seguinte, na apresentação do livro]
A que escreve o livro, é a mesma que apresenta “As tardes da Júlia”, e a que gosta de vestidos e sapatos?
É a mesma pessoa, revelada de outra maneira. O livro permite uma reflexão que a televisão, por ser tão rápida, não permite. O que as pessoas vão descobrir é que eu, no meu histrionismo e na permanente e incómoda alegria, escondo alguma sombra. Se calhar não sou tão alegre quanto se pensa. E tenho preocupações que as pessoas não vêem. Fico contente que descubram que isso coabita em mim.
No livro, está arredada a coquetterie. Porque decidiu retirar os vestidos, os sapatos, os cremes, toda essa dimensão que importa também na sua vida?
Eu adoro isto, [aponta para os vestidos e sapatos], são os meus brinquedos! Mas já foi mais importante. A idade, a maturidade, leva-nos para outros caminhos. Há um código que nos faz estar atentas aos trends; a televisão obriga-me a esta disciplina. Mas, em privado, sou mais desligada do que pareço. Não apareceu no livro porque essas mulheres não eram coquettes, nem fashion victims.
O seu pai, a quem dedica o livro, já o leu?
Está a ler. A única pessoa que o leu antes de ser publicado foi o meu marido. Os meus pais vibram com tudo o que acontece na minha vida, vêem-me no programa todos os dias. Mas acham que isto é um disparate e que é preciso haver algum distanciamento. Mas quero acreditar que esteja a ler!
Publicado originalmente na Máxima em 2009