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Anabela Mota Ribeiro

Katarzyna Skórzynska e Jan Skórzynski

12.11.18

Katarzyna Skórzynska: embaixadora da Polónia em Portugal. O marido, Jan Skórzynski, jornalista, escreveu uma biografia de Lech Walesa. Pertencem a uma geração educada sob o comunismo. Os seus pais sobreviveram à Segunda Guerra. Têm três filhas que cresceram depois do desmoronamento do império soviético. São católicos.

Há exactamente um ano, um avião que se dirigia à floresta de Katyn despenhou-se e vitimou o presidente e parte da elite política. A Polónia, peça central da história da Europa, é um livro inesgotável.

Katarzyna nasceu em 1959. Estudou Sociologia, militou na oposição ao regime soviético, viveu nos Estados Unidos em 1991, é embaixadora em Lisboa desde 2007. Combina assertividade e simpatia, como se isso fosse uma esgrima fácil.

Jan  nasceu em 1954, estudou História. Foi director do jornal diário Rzeczpospolita (República), entre 2000 e 2005. Em 1989, esteve ligado ao jornal do movimento Solidariedade. Escreveu uma biografia de Lech Walesa entre outros livros sobre a história contemporânea da Polónia (O mais importante é The Round Table Revolution).

A entrevista aconteceu em português. Eventualmente, Jan falou em polaco e Katarzyna traduziu (fala com grande fluência). Falou-se de temas quentes da Polónia: a Segunda Guerra, os anos do comunismo, judeus polacos, polacos-não judeus, o catolicismo, Walesa e o Solidariedade, a abertura dos ficheiros secretos depois de 1989, as vidas paralelas.

Há apenas 900 polacos em Portugal. O número de portugueses na Polónia é muito superior, sobretudo depois de empresas como a Jerónimo Martins, Millenium BCP e Mota-Engil se terem aí instalado com grande força. É um país onde as mulheres choram por elas e por eles.

 

 

São filhos da geração que sobreviveu à guerra. Como é que as vossas famílias viveram o período 1939/45?

Katarzyna – Na minha família durante muitos anos não se falava da Segunda Guerra Mundial. Eram experiências muito traumáticas. O meu pai participou na Insurreição de Varsóvia, em 1944, foi ferido, mas não falava disso. No fim da vida escreveu as suas memórias, e aí descreveu alguns momentos difíceis. Numa das situações que descrevia, ele e outras pessoas foram presas numa cave de um prédio, em Varsóvia, e um soldado alemão entrou e quis matá-los; o meu pai, usando a língua alemã, que dominava, conseguiu milagrosamente convencê-lo a deixá-los escapar.

 

Como situaria socialmente a sua família?

Katarzyna - A família do meu pai era da intelligensia polaca. O meu pai foi um dos primeiros juristas que saíram da faculdade clandestina de Direito.

Jan – Todas as universidades foram liquidadas pelos alemães. Só na clandestinidade é que funcionavam os cursos e eram atribuídos diplomas.

Katarzyna – Este grande esforço, para formar as elites polacas, para depois da guerra, funcionou como um pilar de sobrevivência da nação polaca.

 

O seu avô era da geração de Pilsudski, apontado como responsável pelo ressurgimento da Polónia entre as duas guerras. Morreu em 1935.

Katarzyna – Sim, a mesma geração. O meu pai nasceu em Viena porque o meu avô era membro de um grupo polaco no parlamento austro-húngaro. Era professor universitário e um dos fundadores da Academia das Minas, em Cracóvia, em 1918. Foi bastante activo, politicamente, neste período entre as duas guerras.

Antes da Segunda Guerra,o irmão do meu pai foi cônsul em Budapeste. Durante a guerra, instalou-se em Londres onde foi um dos fundadores da secção polaca da BBC Radio, que emitia os programas em língua polaca. Claro que ter um representante da família a fazer contra-propaganda não facilitou a nossa vida na Polónia.

 

Jan, como apresentaria a sua família? E como descreveria o modo como viveram a guerra?

Jan – O meu avô era funcionário público num ministério. Morreu no começo da guerra. O meu pai perdeu também o irmão, que tinha dez anos. Ficou sozinho com a mãe. Perderam tudo: primeiro, o pai, que era o único que trabalhava, depois a casa que foi ocupada pelos alemães.

 

O seu avô foi morto pelos alemães?

Jan – Ficou doente e não tinha medicamentos. Não morreu na guerra mas por causa da guerra. O meu pai, ainda jovem, entrou numa organização clandestina. A família da minha mãe era da aristocracia polaca. O meu avô tinha uma grande propriedade, e foi preso por alemães porque ajudou professores da Universidade Jagiellonica, a mais antiga da Polónia, seus amigos. Quando a universidade foi fechada, muitos professores foram levados para campos de concentração; o meu avô convidou alguns dos professores para ficar em sua casa.

Katarzyna – Ofereceu um refúgio fora de Cracóvia, esperando que isso os ajudasse a sobreviver. Pagou o preço dessa ajuda no campo de concentração.

Jan – A Gestapo levou-o, e à minha avó. O meu avô passou toda a guerra nos campos de concentração alemães: Buchenwald, Majdanek, Gross-Rosen, Mauthausen. Foi libertado pelos americanos no fim da guerra. [Mostra fotografia dos antepassados] A minha avó ficou um ano no campo de Ravensbruck. A minha mãe, que tinha dez anos, e os seus quatro irmãos, ficaram sozinhos, sem pais, na casa da irmã da minha avó. A casa e a propriedade do meu avô foram confiscadas.

Katarzyna – Era uma coisa normal, os nazis instalavam-se nas casas nobres da aristocracia polaca.

Voltando à história dos estudos do meu pai na universidade clandestina: os polacos, sob a ocupação nazi, reconstruíram, não só as universidades, mas também toda a estrutura do Estado polaco. E como se formou um governo sediado em Londres, que representava o Estado polaco no exílio, havia uma comunicação entre estas duas estruturas.

 

Como se fosse uma vida paralela.

Jan – Era uma vida paralela. O pai da Katarzyna trabalhava numa secção clandestina dos negócios estrangeiros.

Katarzyna – É uma grande surpresa que eu tenha, um pouco por acaso, entrado na carreira diplomática. De facto, estou a continuar a tradição da minha família.

 

Quanto tempo foi preciso para, na sua família, se falar da experiência da guerra?

Jan – Não se falou até aos anos 60. Uma das razões era o governo comunista perseguir todos os antigos membros do exército clandestino ligado a esse governo no exílio – e que era anti-comunista. Não se falava dentro da família. Era um passado perigoso.

Katarzyna – As crianças podiam passar sem querer estas informações na escola. Os adultos não queriam o seu envolvimento nestas histórias.

 

E por isso, também, só souberam mais tarde do passado político das vossas famílias?

Katarzyna – Isso não diria. Para mim foi sempre claro que a minha família era anti-comunista. Mas não nos contaram detalhes da sua actividade durante a Segunda GuerraMundial. Só a partir dos anos 70.

Jan – Um momento importante foi o fim da época de Estaline. Morreu em 1953, mas o fim desse período foi em 1956. Quando mudou a equipa dirigente do Partido Comunista, fez-se uma grande liberalização do regime. Quase todos os presos políticos foram libertados. Mesmo assim, o crime de Katyn [massacre de oficiais polacos por soviéticos, em 1940; o número de vítimas ascende às 22 mil] foi sempre falsificado. Nas escolas ouvimos que era um crime dos alemães, até ao fim, até 1989. Não se falava igualmente desse período do começo da guerra, quando a Polónia era dividida e ocupada pelos dois, Terceiro Reich e União Soviética. Só se falava da ocupação alemã.

 

O que é que era ensinado na escola?

Katarzyna – Só ensinavam a versão oficial da história. Havia famílias onde se falava disto em casa, e os pais explicavam às crianças que era falso o que ensinavam na escola. E noutras famílias, também para proteger as crianças, não se falava. Nas nossas famílias, quando havia informações falsas na escola, tanto o pai de Jan como o meu, davam-nos as informações verdadeiras.

 

Sendo uma situação completamente diferente, é como se continuasse a existir uma vida paralela. Uma verdade oficial, uma vida fora de portas, e uma vida em casa.

Katarzyna – Completamente paralela.

Jan – Era a vida oficial e a vida real. A vida oficial era a imprensa, a televisão, as manifestações do 1º de Maio, cuja participação era obrigatória. Nunca fui.

Katarzyna – A minha família também não. Mas muitas pessoas gostavam desta festa.

Jan – Não era perigoso não ir. Toda a gente sabia que era um circo. Como as eleições para o parlamento.

Katarzyna – Estas vidas paralelas eram uma situação difícil. E também difícil para professores de escolas públicas. Nem todos eram comunistas. Os alunos mais rebeldes ouviam falar da versão verdadeira em casa e na escola faziam algum tipo de demonstração, ou levantavam-se e diziam: “Não é bem assim”.

Jan – Mas isto só depois dos anos 60.

Katarzyna – E os professores reagiam de várias maneiras, tudo dependendo da situação. Se os outros podiam passar esta informação ao director da escola, ou não.

 

Isso propicia um clima de vigilância permanente. Perceber se nesta escola se podem dizer certas coisas alto, se a outra pessoa é cúmplice, se a outra vai denunciar. Acaba por criar na sociedade uma tensão enorme.

Katarzyna – Esta vida real realizava-se em família alargada, nas redes informais, com amigos, nas paróquias (que tiveram um papel importante). A minha impressão é a de que a maioria dos polacos refugiava-se nesta rede informal, que era bem mais importante do que a vida oficial. Não se pode esquecer que o regime comunista funcionou naquilo a que se chamava a “economia da falta”. Faltava quase tudo para a vida quotidiana. Os polacos, para resolver esses problemas, estabeleceram uma rede. Uma pessoa trabalhava na livraria, outra no talho – o talho era muito importante, havia um acesso condicionado à carne – e uma terceira pessoa na agência de viagens de turismo oficial: havia uma troca de mercadorias e de favores. Como tudo isto se baseava num certo grau de confiança, foi uma boa base para desenvolver outro tipo de actividade – inclusive de oposição ao regime. A eficiência destas redes foi provada na vida quotidiana.

 

No livro História da Polónia, de Adam Zamoyski, pode ler-se que os informadores, que eram pagos em todo o lado, em 1954,  eram mais de 70 mil. E aqueles que tinham ficheiro, que eram observados, eram seis milhões.

Katarzyna – É, mas felizmente para nós, na altura, não tivemos acesso a esses dados.

 

Outro dado do livro: em meados da década de 50 havia 35 mil prisioneiros políticos.

Jan – É a década de Estaline.

Katarzyna – Tivemos na Polónia várias vagas de repressão. A primeira aconteceu logo depois da Segunda Guerra Mundial, que para a maioria dos europeus significava liberdade e democracia. Para nós significou opressão comunista. Muitas pessoas que participaram no exército clandestino polaco foram presas.

Jan – Outras fuziladas.

Katarzyna – O meu pai foi vítima de acusações completamente falsas, teve um julgamento e uma pena muito severa. Mas felizmente só esteve quatro anos na prisão. Quatro anos não é nada, a pena original era de 15 anos.

Jan – As acusações contra os membros desta força clandestina era de que colaboravam com os alemães.

Katarzyna – Foi libertado e ilibado da falsidade das acusações, com a vaga de liberalização política, depois da morte de Estaline.

 

Foi visitá-lo alguma vez à cadeia?

Katarzyna – Não. Ele foi preso logo depois da guerra. Saiu do exército clandestino, tomou um certo engajamento político e apoiou um dos partidos democráticos polacos. Em 1946 ainda havia a ilusão de que podíamos ter um certo grau de independência política da União Soviética.

 

Quando há pouco falava de um clima de suspeição na sociedade, estava a pensar nos 70 mil informadores, dos seis milhões de processos.Uma coisa desta dimensão é destruidora de uma rede social.

Katarzyna – Tem um efeito duplo. Havia grupos muito integrados e onde era difícil a polícia secreta infiltrar-se. Quando abriram os arquivos, depois de 1989, tivemos acesso ao dossier de Jan, por causa da sua actividade política, como estudante. Esteve preso no começo do estado de sítio, em 1981. Foi vigiado pelos serviços secretos comunistas. O nosso grande alívio foi perceber que ninguém do grupo dos amigos próximos e familiares o denunciou.  

Jan – Nenhuma das pessoas que conhecemos pessoalmente me denunciou.

 

O que é que representou, depois da queda do muro, depois do desmoronamento daquele mundo, ter nas mãos um processo que é o processo da nossa vida, do nosso percurso?

Jan – Para mim, o acesso a esses documentos foi uma forma de refrescar a memória sobre o que fizemos. Um certo paradoxo é que esses arquivos são uma fonte preciosa para analisar a história da resistência polaca contra o regime comunista. Por causa da minha formação, lendo esses documentos, tenho dificuldade em separar o aspecto pessoal do aspecto de análise histórica. Foi muito interessante, não foi um trauma.

Katarzyna – Não foi um trauma porque ele tem um dossier limpo. Isto facilita muito as coisas. Nunca cometeu nenhum erro grave em relação aos agentes da polícia secreta. Para mim, foi uma experiência muito emocionante. Também havia neste dossier as cartas que lhe escrevi quando foi preso, e algumas que nunca lhe chegaram às mãos. Os agentes da polícia confiscavam-nas para não reforçar a sua boa condição psicológica. Foi muito emocionante rever essas cartas. Toda a descrição da nossa situação, os argumentos, os meus pedidos para obter a libertação dele…

 

Já eram casados?

Jan – Namorados. Não pensei ter um dossier tão grande. Antes de 1980, eu não era ninguém na oposição. Era um das várias dezenas. Até instalaram uma escuta no telefone da casa do meu pai, onde morava. Isto era antes do Solidariedade.

Katarzyna – É mais traumático agora, quando se analisa tudo isto, perceber esta rede de agentes que trabalhava para nos vigiar. A partir dos anos 70 havia grupos de oposição contra o regime comunista bem organizados. Os agentes da polícia conheciam uma boa parte dos nomes das pessoas envolvidas porque elas agiam abertamente. Era uma actividade para ajudar pessoas presas, operários, para defender os direitos humanos. A Conferência de Helsínquia teve uma grande importância, porque deu um instrumento internacional para defender o direito de ter uma certa actividade da oposição.

A polícia secreta conhecia alguns dos nomes, que serviam como frontline. Depois havia toda a estrutura paralela, das editoras clandestinas que imprimiam livros, revistas, folhetos de informação.

 

Falem-me dessa actividade clandestina

Katarzyna – Funcionava com um grande contributo das pessoas particulares que nada tinham a ver com a política, e com um grande contributo das mulheres polacas, muitas com filhos pequenos. A minha irmã teve em casa livros ilegais: era uma cama de casal [riso], aquelas coisas feias dos anos 70, que abria automaticamente; lá dentro havia um armazém de livros.

 

Que tipo de livros?

Katarzyna – Tínhamos a ambição, com esta rede paralela, de estar ao corrente, de publicar todas as novidades. Livros dos dissidentes da União Soviética, como Soljenitsin, foram publicados desta maneira na Polónia [Jan mostra edição “caseira”, dactilografada].

 

Autores americanos?

Katarzyna – Também. Vários. Quando tínhamos os filhos pequenos, a avó de Jan visitava-nos para trazer roupa de criança, e entre as coisas que trazía havia livros e jornais informais. Depois de os lermos passávamo-los ao nosso vizinho, do outro lado do corredor, no mesmo prédio. Passávamos esta informação ao operário que trabalhava na oficina de automóveis, e ele passava-a aos colegas.

 

E assim se fazia a ligação. Não ficava só entre os intelectuais, alastrava a toda a sociedade.

Katarzyna – A partir de 1976 existia já uma cooperação muito estreita entre a intelligentsia e os operários.

Jan – [Mostra] Isto é uma novela de um escritor polaco moderno, Tadeusz Konwicki, muito popular. Publicava oficialmente. Este é o primeiro livro de um escritor que vivia na Polónia, que foi publicado na clandestinidade, e sem esconder o nome do autor.

 

O que é que significa Complex Polski, de que trata o livro?

Jan – Complexo Polaco. É uma história do levantamento anti-russo. Por causa deste lado anti-russo, não era publicado oficialmente. Este é o logotipo da maior editora clandestina dos anos 70 [NOWA]. Essa editora publicou 100 títulos até 1980, até ao Solidariedade. Depois, muitos mais.

Katarzyna – Os poemas do Czeslaw Milosz, um dos maiores poetas polacos, só foram publicados pelas editoras clandestinas até ele ganhar Premio Nobel.

Jan – Mas também autores estrangeiros, como Günter Grass, com o seu famoso O Rapaz do Tambor ou Hannah Arendt e Karl Popper.

Katarzyna – Um dos primeiros livros publicados foi um manual para as pessoas que foram investigadas e chamadas pela polícia secreta.

 

Um manual?

Katarzyna – Como se comportar em frente de um agente. O que se pode e o que não se pode fazer num interrogatório. O mais aconselhado era simplesmente não dar nenhumas respostas. Existia um parágrafo na lei que dava essa possibilidade. A oposição usou toda esta armadura constitucional para defesa dos direitos humanos. Do outro lado, o que nos ajudava muito era o facto de os polacos nunca perderem a capacidade de se rirem de si próprios. Havia muitas anedotas políticas, centenas.

 

O alvo das anedotas eram sempre os comunistas?

Katarzyna – Também. “Cidadão, não penses, se pensares, não fales, se falares, não escrevas, se escreveres, não assines, se assinares, não te surpreendas! [riso]

 

Contem uma anedota.

Jan – O Presidente dos Estados Unidos encontra o Secretário do Partido Operário Unido da Polónia. “Nos Estado Unidos, um operário ganha 1300 dólares e para viver gasta cerca de 300”, partilha o Presidente. “E o que faz com o resto?”, pergunta o Secretário do Partido. “Isso não nos interessa”, responde o americano. “E na Polónia?”. “Aqui, um operário ganha uns 2500 zloty e gasta à volta de 4000”, explica o Secretário. “Como consegue então o resto?”, pergunta o Presidente. “Isso não nos interessa.”

 

Estas duas anedotas transmitem uma relação feroz com o comunismo. Uma das perguntas que trazia era se a Polónia que temos é ainda uma cicatriz da Segunda Guerra. Mas a verdade é que falámos muito mais do período em que estiveram sob o comunismo do que propriamente da marca da Segunda Guerra.

Katarzyna – Tem várias explicações. Uma delas é que a experiência da nossa geração é a experiência do comunismo. A Segunda Guerra, para nós, é sobretudo a experiência dos nossos pais. Mas outro factor importante é que a partir dos anos 70 as elites políticas, e até certo ponto a sociedade, fizeram um esforço profundo de reconciliação com os alemães. Começou com os bispos polacos, em 1965. Poucas pessoas tomaram uma iniciativa tão corajosa. Escreveram uma extraordinária carta aos bispos alemães em que perdoavam e pediam o perdão por causa do relacionamento difícil depois da Segunda Guerra. (No pós-guerra muitos alemães foram expulsos das suas casas de maneira brutal). Houve um movimento de intelectuais católicos que apoiaram esta iniciativa da igreja. A minha mãe não, mas o meu pai participou de maneira activa neste processo de reconciliação, mais uma vez usando o bom domínio do alemão. Havia grupos alemães, da Alemanha Ocidental, a chegar à Polónia nos anos 70 que o meu pai recebia na nossa casa. Falavam de reconciliação, do que fazer para dar o próximo passo.

Jan – Muitos eram protestantes.

 

Quando é que foram aos campos de concentração? Os polacos da vossa geração visitavam os campos?

Jan – Isso era normal.

Katarzyna – Tínhamos visitas organizadas pelas escolas. Visitei Auschwitz com 13 anos.

Jan – Os campos eram apresentados no ensino oficial como exemplo da barbárie alemã.

 

Na geração das vossas filhas, a leitura do passado comunista é diferente daquela que teve a vossa geração? É um pouco como aconteceu com a vossa geração em relação aos alemães e à Segunda Guerra?

Katarzyna – É  difícil falar em nome dos nossos  filhos. A geração das nossas filhas lembra-se vagamente  do comunismo. Podem  apenas  lembrar  os últimos  anos  da década de oitenta. Vivia-se já uma versão light do regime. Muitos têm em mente uma certa ineficiência do sistema e o seu lado grotesco. Esta visão foi também fomentada pelos filmes polacos, por comédias que revelavam alguns absurdos. O tempo da mudança e do Solidariedade não é muito bem conhecido pelos jovens.

Jan – Sei,  pelas conversas com as nossas filhas, que elas partilham da nossa opinião sobre o comunismo. Entre os jovens há grupos de esquerda, mas para eles o comunismo não representa nenhuma referência positiva.

 

O que é que o catolicismo fez pela vida dos polacos durante esses anos em que se estava sob o regime comunista?

Katarzyna – O catolicismo, não só durante o período da guerra e depois da guerra, mas durante muitos séculos da história da Polónia, servia de refúgio à identidade nacional. Era um lugar onde se podia falar polaco, apesar de termos tido, como em todos os países, missa em latim.

Jan – Era uma instituição nacional, não só religiosa.

 

Quando diz nacional, é como se a velha identidade da Polónia se confundisse com a católica?

Jan – No séc. XIX, quando a Polónia não era independente, a igreja católica era a única instituição que se referia ao passado da nação polaca. Claro que tínhamos antes da perda da nossa independência muitos cidadãos judeus, ucranianios, lituanos, alemães e não só católicos. Mas havia momentos em que a igreja católica era a única instituição oficial a manter a identidade nacional. Era como um vestígio do antigo estado polaco.

Katarzyna – A igreja polaca, ao contrário de outras igrejas, noutros países, nunca se aliou aos opressores. Nunca houve aliança entre altar e poder opressor. Isto deu à nossa igreja uma margem de manobra muito grande. Mas não gostaria de fomentar esta visão de que o polaco é obrigatoriamente católico.

 

Mas não é? Essa é a leitura que comummente se faz.

Katarzyna – A Polónia é um país católico, mas temos uma história longa e importante de tradição multi-étnica e multi-religiosa. Tivemos, sobretudo nos sécs. XVI e XVII, um estado de duas nações – polaco e lituano – onde viveram os polacos, os lituanos, os ucranianos, os judeus, e onde havia um grau de tolerância étnica e religiosa das melhores em toda a Europa. Também foi por isso que os judeus se instalaram nas terras polacas: porque havia boas condições de acolhimento.

 

No livro sobre a história da Polónia, escreve-se que, no período imediatamente anterior a Walesa, cerca de 90 por cento da população polaca era católica.

Jan – Hoje, na Polónia contemporânea, é assim.

Katarzyna – Depois da Segunda Guerra, a Polónia perdeu toda a parte leste do território onde havia uma grande comunidade ortodoxa. E perdeu os judeus polacos por causa do Holocausto.

 

Três milhões.

Katarzyna – Era a perda de judeus polacos, de cidadãos polacos. Precisamos de muita cautela quando discutimos esses assuntos. Quando se diz que alguns polacos ajudaram os judeus durante a Segunda Guerra Mundial, é preciso dizer que esses judeus também eram polacos, que não eram estrangeiros para nós. Tivemos uma comunidade judaica muito bem integrada. Claro que alguns deles mantiveram os seus costumes. Os grupos ortodoxos judaicos mantiveram toda a tradição, a religião, falavam iídiche. Outros grupos de judeus, nem sempre religiosos, tinham altas posições na sociedade polaca (advogados, médicos, escritores, poetas, homens de negócios). A grande maioria morreu no Holocausto.

 

O Solidariedade existiria da mesma maneira sem o catolicismo?

Katarzyna – A Igreja era representada pelo Papa João Paulo II, não podemos esquecer isto.

 

Que foi Papa em 1978. A explosão do Solidariedade dá-se em 1980. Não é uma coincidência.

Katarzyna – Com certeza que o Papa João Paulo II era também fruto da igreja polaca. Um dos melhores bispos polacos, muito bem formado, tão bem preparado para o trabalho na paróquia, com as pessoas, como para o trabalho no episcopado e no Vaticano. Teve uma influência muito grande e a primeira viagem à Polónia, em 1979, mudou completamente o país.

 

Porque é que decidiu fazer uma biografia de Lech Walesa?

Jan – Porque o Solidariedade é o movimento mais importante da história contemporânea da Polónia, e não há Solidariedade sem Lech Walesa. Lech Walesa é o exemplo típico do representante do Solidariedade. Ou seja, as características pessoais dele representam o movimento: família do campo, muito simples, modesta e pobre. O pai morreu depois de voltar dos trabalhos forçados na Alemanha, quando Walesa tinha dois anos. Tem uma educação muito primária e está à procura de algo diferente numa grande cidade, Gdansk. Arranjou emprego no estaleiro, uma das maiores empresas do Estado, e este é provavelmente o primeiro sítio onde cria raízes fortes. Cria uma identidade social para ele – era do estaleiro. Ainda muito jovem participou numa greve importante, em 1970, que foi brutalmente reprimida, mas que resultou numa mudança no seio do partido comunista e do seio do poder.

 

O que é que Walesa aprendeu com esse episódio?

Jan – Percebeu que, por um lado, os operários podem representar uma força muito grande, e por outro lado que este confronto pode-se pagar com sangue. Por isso, dez anos depois, quando estava a liderar as greves do mesmo estaleiro, em 1980, fez todo o possível para controlar a greve e não deixar as pessoas sair para as ruas.

Katarzyna – Por causa de todas estas experiências, Walesa teve o direito moral e o respeito dos outros para dominar as forças mais radicais, que quiseram um confronto directo com as autoridades.

Jan – Tomou a decisão importante de aceitar o apoio dos intelectuais polacos, como Tadeusz Mazowiecki, Bronislaw Geremek e outros, como conselheiros. Walesa representava bem as ideias do Solidariedade, que se baseavam não numa visão revolucionária mas numa evolução do sistema político, num compromisso. Tratava-se de obter as concessões possíveis, numa situação política concreta, por via das negociações.

 

Não era um líder radical.

Jan – Nunca. Já nos anos 80, depois do estado de sítio, sempre demonstrou uma abertura para conversar e negociar. Também havia os grupos mais radicais difíceis de ser controlados, claro.

 

Não falámos uma única vez numa palavra fundamental em todo este processo: coragem. Coragem de Lech Walesa, coragem daqueles que resistiram, dos que morreram.

Katarzyna – No outro dia pensava sobre isto: a maioria das pessoas que participaram neste processo, tanto nos anos 70, como membros do Solidariedade, não se considerara grandes militantes nem heróis. As pessoas contribuíram de maneira muito natural na medida das suas possibilidades. Uma dona de casa contribuía oferecendo espaço no seu apartamento para algumas actividades clandestinas, da oposição. Outra pessoa emprestava o carro como transporte, por exemplo, em 1976, para outras pessoas irem para uma cidade onde havia greves e presos, para ajudá-los. Outra que tinha uma formação de advogado ajudava a preparar a defesa de pessoas de maneira gratuita.

 

Não achavam isso um processo especialmente corajoso ou heróico, era uma coisa normal?

Katarzyna – Não sei como explicar. Normal, não era, as pessoas foram presas, havia repressão. Temos os nossos heróis na história da Polónia; são, por exemplo, as pessoas que lutaram ou morreram na Insurreição de Varsóvia. O heroísmo para nós está ligado ao derramamento de sangue, com a luta armada militar.

 

Quando é que se apaixonaram? Quando é que casaram?

Jan – Na época do Solidariedade.

Katarzyna – Conhecemo-nos num dos encontros de estudantes da universidade de Varsóvia, onde se discutia como nos devíamos organizar, qual seria o nosso contributo para o movimento. Tínhamos 20 anos.

Jan – Criámos com outros amigos uma organização nova que existe até hoje.

Katarzyna – Havia duas ideias: fazer uma organização mais política, e mais anti-comunista, ou fazer uma organização que seria uma representação de todos os estudantes, democrática. Optámos por esta forma de organização e demos um contributo bastante grande, tanto na faculdade de Sociologia, no meu caso, como na faculdade de História, do meu marido. Como representante da minha faculdade e como membro de um jornal estudantil, conheci o reitor da universidade, que nove anos depois, em 1989, teve o cargo de ministro da Educação no primeiro governo não-comunista, e que me convidou para ser conselheira e assessora dele na privatização do ensino. Assim começou a minha carreira na administração pública.

A partir de 1987 comecei a organizar, com outros grupos, as escolas independentes na Polónia, com os professores, com os pais. As escolas cresceram de forma muito rápida em todo o território polaco. Como resultado de toda essa actividade fui convidada para ser membro da equipa do ministro de Educação. Só depois fui convidada para o ministério dos Negócios Estrangeiros.

 

Quando foi nomeada embaixadora, era muito nova, tinha 32 anos. Foi a primeira mulher embaixadora da Polónia?

Katarzyna – A primeira não, mas a mais jovem, sim.

 

E foi para o Brasil. O que é que foi para si a descoberta daquele mundo?

Katarzyna – Algo surpreendente. Nas escolas ensinaram-nos que o Brasil e os países da América Latina são países do Terceiro Mundo. Quando cheguei, primeiro a Brasília, depois ao Rio e São Paulo, fiquei surpreendida com o nível de desenvolvimento económico e o dinamismo do país.

 

Foi lá que viu pela primeira vez um homem chorar.

Katarzyna – Um dos embaixadores ia deixar o Brasil e na despedida chorou. Foi um dos primeiros homens que vi chorar numa situação pública. Quando voltei para casa disse ao Jan: “Aqui os homens podem chorar livremente”.

 

Na Polónia não podem?

Katarzyna – Tivemos esta visão pouco realista, que não tem nada a ver com a realidade psicológica: que o homem tem que ser sempre resistente, muito sério, forte, e não se pode permitir chorar.

Jan – Chorar é símbolo de fraqueza.

Katarzyna – Acho que é muito bom que isto esteja a mudar, é artificial.

 

Alguma vez conseguiu chorar em público ou à frente de outras pessoas?

Jan – Nunca.

Katarzyna – Fruto do sistema repressivo [riso].

Jan – Houve momentos muito emocionantes, como a morte do Papa João Paulo II.

 

Em momentos assim os homens polacos permitiram-se chorar?

Jan – Alguns sim.

 

Em casa ou em público?

Jan – Na igreja.

 

Nunca viu o seu pai chorar?

Katarzyna – O meu pai era muito moderno e muito aberto. Não o vi chorar, mas podia acontecer. O meu marido vive com quatro mulheres em casa, que choram muito – o equilíbrio está mantido na família!

 

As mulheres podem chorar? Choram por elas e por eles?

Jan – Sim. É um engano…, as mulheres polacas são muito fortes, mais fortes do que os homens.

 

Enquanto embaixadora no Brasil, recebeu, Walesa, protocolarmente, como chefe de Estado. Que é que ele lhe disse?

Katarzyna – Como todo o mundo sabe, Lech Walesa chegou ao estaleiro de Gdansk, em 1980, saltando por cima do muro. Estava-se em greve.

Jan – O estaleiro estava bloqueado pela polícia.

Katarzyna – Quando aterrou no aeroporto do Rio de Janeiro, e o cumprimentei, ele não me conhecia muito bem. Ficou impressionado com a presença de uma embaixadora tão jovem, e disse-me: “Senhora embaixadora, este meu salto por cima do muro teve consequências boas e provocou mudanças radicais!” [riso].

 

Há um ano, um acidente vitimou o vosso presidente e elite polaca. O avião dirigia-se à floresta de Katyn. Era uma hipótese de reconciliação com o passado russo que ficou novamente adiada? Enquanto cidadãos polacos, como assistiram a esta tragédia, o que é que ela representou?

Ainda hoje, um ano volvido, é muito difícil  falar sobre este assunto. Foi uma tragédia national e no dia 10 de Abril vamos lembrar as vítimas tanto na Polónia como em Portugal, junto com a comunidade polaca. Nao se deve esquecer que  as pessoas que morreram se deslocavam para honrar a memória das vítimas do crime de  Katyn.

 

 

Publicado originalmente no Público, em 2011