Katia Guerreiro
Primeiro, ela mostra-me a casa nova. Que é um modo de me mostrar a sua vida. São pedaços de uma vida em bolandas, de descobertas progressivas. Os tapetes comprados na Turquia, as bonecas oferecidas no Japão, o espanta espíritos que veio do Oriente. O chá Gorreana, que faz parte da paisagem açoriana e que sempre esteve nas cozinhas da vida dela. As fotografias do marido (Rui Ochôa), que contam outras viagens pelo mundo e pela vida portuguesa das últimas décadas. E há representações em cerâmica que a fixam na sua imagem mais icónica: com os braços cruzados atrás das costas, o corpo atirado sobre o sentimento, a cara a ilustrar cada uma das palavras que canta. Uma saia, uma camisa, os pendentes generosos. A alma posta nisso tudo. O DVD que vai ser lançado neste Outono confirma este retrato.
Katia Guerreiro mostra-me a casa nova. Que é um modo de começar a entrevista. Estes objectos, e outros, fazem parte da sua cartografia. A viagem passou pelos Açores, por uma África de que tem uma memória vívida, como se lá tivesse crescido, de Lisboa onde estudou para ser médica, e onde agora se sente em casa. Passou pelos países onde leva o fado e a imagem de um Portugal moderno. E foi uma viagem ao mundo dos afectos, das inseguranças, das escolhas, da determinação com que se faz o caminho. Esta é a história de uma menina que sempre acreditou que o seu destino estava nas suas mãos. E não o deixou cair.
A gravação ocupou uma hora e meia de fita. Nesse dia, ela tinha tempo. Nesse dia, ela não era a oftalmologista do Hospital da Luz. Nesse dia, ela não era a fadista refém de uma agenda carregada. Saímos para almoçar. Já me parecia, então, que a casa de Katia Guerreiro só podia ser aquela. Depois de lerem as próximas páginas, poderão adivinhá-la melhor…
Começamos pelos projectos que sustentam a sua vida?
Aos dez anos, eu não imaginava nada. Sempre fui uma água do rio que sabe que vai dar ao mar. E sempre soube que é vasto esse mar. A decisão de ser médica foi tomada aos 17 anos. Era uma boa forma de ajudar os outros. Vejo a minha vida como uma oferta aos outros…
A certeza de que um dia o rio chega a mar faz-me pensar na confiança em si própria. Foi uma criança reforçada, mimada?
Nunca tive grande confiança em mim própria. Acho que até hoje não a tenho... Mas sempre fui uma pessoa de fé, e achei que praticando o bem teria a recompensa disso. Aproximo-me da religião por ser assim, e não para procurar esse caminho. Fui tendo encontros e desencontros com a igreja. Fui baptizada, fiz a primeira comunhão, fui educada num colégio católico de freiras, nos Açores.
Segundo arranque: vamos à geografia da sua vida.
A minha família é toda de Angola. Os meus pais atravessaram o processo de fuga do país. Passaram por um campo de refugiados e foram para África do Sul, onde nasci por acaso. Mas a minha mãe não se adaptou àquela realidade e mudámo-nos para os Açores. Fui com 11 meses. Foi lá que comecei a andar, a falar. A crescer.
Foi por razões políticas que o seu pai teve de sair de Angola?
Foi por razões militares e políticas. O meu pai era militar. Tinha ódios tanto da parte do MPLA como da UNITA. E fazia parte da lista negra de uma e outra facção – fazia mesmo. Foi avisado, e por isso saiu.
A família passou de uma espaço ilimitado, como África sempre é descrita, para o espaço circunscrito de uma ilha.
Esses relatos faziam parte dos meus dias. Que Angola é que era o espaço para se crescer. De fazer longas distâncias depois do jantar para ir tomar café a Benguela. Essa liberdade de movimentos fazia parte do meu imaginário. Os meus pais deixaram este espaço ilimitado e enfiaram-se num cubículo, como é o espaço de uma ilha.
Nas descrições de um tempo de felicidade, o espaço era infindável, e mitificado. No exterior, vivia uma infância tranquila, consentânea com a paisagem açoriana.
Foi em S. Miguel, mercê dessa tranquilidade, que percebi a minha aptidão para os outros. A cidade oferecia uma boa qualidade de vida. Mas tinha por resolver uma grande sede de cultura. Os espectáculos eram escassos. E havia uma estratificação social que me vedava o acesso a serões onde se falava de livros, a sessões onde se ouvia música.
É um sistema de castas, pouco permeável socialmente…
É, sim. As famílias tradicionais dos Açores dão-se entre si, casam entre si, pouco se relacionam com o resto dos açorianos. É uma sociedade fechada. E eu não fazia parte dela. É engraçado quando hoje volto aos Açores… Como gozo de algum reconhecimento público, essas famílias procuram-me, fazem-me entrar num meio que era para mim um mistério.
Que sensação tem agora?
É interessante ver como o comportamento das pessoas se modifica porque passamos a ter poder. Deixam de olhar para nós como "mais um" e passam a querer que façamos parte deles. Aconteceu agora; fiz um espectáculo nos Açores, encontrei um elemento de uma dessas famílias, que me convidou para sua casa. É uma casa grande, da qual eu conhecia os jardins, de uma visita de estudo, em pequena. Em circunstâncias normais, nunca passaria dali, nunca entraria na casa.
Queria crescer depressa? Queria pertencer a esse mundo de adultos? A um mundo de verdade e não ao mundo de faz de conta das crianças.
Isso. Tinha um sentido de responsabilidade muito grande. Sobre a minha vida.
Foi-lhe incutido por quem?
Por ninguém. Faz parte de mim. Queria crescer e ser profissional. Não sabia em que área, mas sabia que me ia dedicar imenso. Que ia ser responsável, aplicada, disponível. Queria saber como é que os outros faziam. Como é que os professores lá tinham chegado, como é que os amigos dos meus pais exerciam determinadas carreiras.
Os seus resultados escolares eram muito bons, presumo. Fazia-o para si? Eram um instrumento da sua afirmação?
Fazia-o só para mim. Nunca na minha vida os meus pais me mandaram estudar. Nunca me exigiram resultados. Eu chegava a casa e mostrava um 100% a inglês, um 95% a matemática, um 98% a biologia…
O que é que abalava a sua confiança em si?
Tenho um problema enorme: preocupo-me imenso com aquilo que os outros pensam de mim. E penso que não confiam em mim. Nos Açores, por acaso, não padecia disto. As pessoas conheciam-me, sabiam quem eu era, do que era capaz. Não me preocupava em ser boa; fazia simplesmente as coisas, e elas saíam bem. Quando cheguei a Lisboa tive uma necessidade imensa de me afirmar. Ninguém me conhecia, eu era ninguém. E minimizava-me. Só ganhei uma certa independência intelectual quando acabei o curso.
O que é que a fez resolver essa insegurança?
Houve um momento em que disse: "Oh, já consegui fazer isto tudo…, vou ser mesmo capaz". Estudei com outro ânimo e tive óptimas notas. Estava por minha conta, só dependente das minhas capacidades. Quando fui fazer o internato geral em Évora comecei a perder o medo. Os meus colegas pediam-me para fazer parte das suas equipas, e ganhei outra maneira de estar. Levantei a cabeça, em vez de olhar sempre para o chão, com vergonha de não sei bem o quê. A seguir, vieram os outros sonhos: conquistar a minha autonomia, ter a minha casa, ter o meu primeiro carro. Precisava de ser dona da minha vida.
Talvez seja um acaso, mas foi nessa etapa derradeira que a música assumiu importância na sua vida. Desde a infância, havia uma relação intermitente e pouco séria. Na faculdade, esteve na fundação da Tuna Médica e participou em vários projectos artísticos.
Mas sem qualquer ambição.
Era uma maneira de socializar?
Era uma maneira de trabalhar a minha falta de confiança. Foi uma maneira de socializar, sim. De me expressar e de conquistar a confiança e a simpatia dos outros. Eu era "a miúda que vem dos Açores", uma espécie de bicho à parte.
Tudo continuaria a ser apenas uma brincadeira, não fora uma ida a uma casa de fados, no último ano da faculdade. A sua vida mudou um pouco naquela noite, na Taberna do Embuçado...
Eu cantava quatro ou cinco fados, não sabia mais… E cantei. Um dos músicos, que ainda toca comigo, achou que a minha voz era a grande revelação do fado! Para mim, era um disparate! Eu queria era ser médica. Em todo o caso, fui cantar a um jantar privado – ganhava uns trocos, distraía-me, e duas horas mais tarde voltava aos livros.
Parecem duas vidas incomunicáveis. Quando pensamos nos médicos, pensamos numa dedicação exclusiva ao estudo, primeiro, e à profissão, depois. Quando pensamos nos artistas, pensamos num certo desregramento, em qualquer coisa que vive mais do talento do que do esforço e do trabalho.
São dois mundos diferentes, que para mim se cruzam. Desde a primeira entrevista perguntam-me pelo dia em que tiver que decidir entre a medicina e o fado… Mas eu não quero fazer isso! Quero organizar a minha vida de modo a encontrar um equilíbrio entre as duas coisas. No último ano e meio deixei de exercer medicina. Por várias razões, políticas, inclusive. E senti-me desequilibrada.
Explique melhor o equilíbrio que resulta da vivência nos dois mundos.
Tenho na medicina o meu suporte intelectual – preparei-me para isso, esforcei-me e sei que sou capaz. Mas nasci com um lado artístico fortíssimo que me faz entregar-me aos outros de uma outra maneira. Nesse lado vou buscar o que tem que ver com os sentimentos das pessoas, com a exteriorização de tudo o que sentimos. No fado, reencontro-me com essa parte. E o meu primeiro instinto é partilhá-lo. Como quem dá um abraço. Não sei viver sem este meu lado emocional.
Precisa, no palco e no consultório, dessa relação. Do reconhecimento. A cantora precisa dos aplausos, a médica precisa de sentir na cara do doente que ele está confortado porque alguém resolve os seus sintomas.
A Amália dizia: «Aplausos, eu quero aplausos».
Que é uma forma de dizer: «Mimos, eu quero mimos.
É, é. Há ali uma comunhão, que é única. No palco há, primeiro, uma insegurança. Depois de conquistar o público, de ganhar terreno, entrego-me completamente. Dou, e dou, e dou. E recebo o afecto das pessoas. Na consulta, não espero nem quero ser reconhecida como artista. Sinto-me retraída se isso acontece. A maior parte das vezes, as pessoas só denunciam isso no final. Primeiro avaliam-me enquanto médica, e percebem também que aquilo é um espaço diferente. Fico muito diferente de bata vestida…
Disse-me uma vez que é melhor cantora pelo facto de ser médica. Como é que as duas facetas se contaminam?
Sou melhor cantora pelo facto de ser médica porque percebo o que são as pessoas no dia a dia, porque tenho um contacto com a sua realidade. No palco, não ouço as suas queixas, não sei que não têm dinheiro para comprar medicamentos, não sei dos problemas familiares que afectam o bem-estar físico. Ali só se vive o sonho.
Em cima do palco, a sua expressão é muitas vezes sofrida.
Porque faço uma espécie de exorcismo. Porque tenho também os meus problemas. Em cima do palco eu conheço-me. Sei cada palavra que digo, sei do que estou a falar. Não debito poemas ou melodias: sinto cada nota e cada palavra que transmito aos outros.
No que canta está, também, quem é. A sua vida, as suas opções. Nomeadamente, ter sido mandatária para a juventude do Presidente da República e ter participado na campanha pelo Não no referendo ao aborto.
Percebi que não sou ouvida da mesma maneira. Durante as campanhas li coisas como: «Gostava tanto da Katia Guerreiro e ela agora borrou a pintura!». Eu não deixo de ter admiração por artistas que se envolvem em causas nas quais acreditam, mesmo que discorde delas. Tenho um carinho adicional pelas pessoas que vão ouvir-me, que não se deixaram influenciar. Os que deixaram de ir, custa-me imenso, mas que posso fazer contra isso? Só me bati por aquilo em que acredito.
Sente que é uma amostra de um Portugal contemporâneo? Há pouco confessava-me que às vezes se cansa de tentar ser a super-mulher… É uma mulher de 31 anos, médica, cantora, é uma activista que se compromete com causas políticas e cívicas nas quais acredita.
Mas isso é muito valorizado no estrangeiro. Sou muito respeitada pelo facto de ser tudo isto. Admiram, interessam-se, respeitam, perguntam sobre isso. Não estão apenas concentrados na música. Lá fora, sabem. Em França, então, sabem imenso.
Porque é que Cavaco Silva a escolheu? Quando a convidou, imagino que lhe tenha dito porque razão a estimava especialmente…
Disse que tinha admiração por mim porque eu me batia pelas minhas convicções. Por ser uma boa representação da juventude portuguesa. Uma juventude culta, instruída, com interesses variados, que procura fazer coisas bem feitas.
O facto de ser tão trabalhadora…
Como ele. [riso]
Imagino que se tenha revisto um pouco em si. Nesse desejo férreo, nessa determinação com que conquista a sua vida...
Foi um pouco o percurso dele: uma pessoa que veio do anonimato, que se empenhou, que sempre trabalhou muito.
Alguma vez falou com ele sobre a sua insegurança?
Não, nunca. Ele também tem as suas inseguranças, sobretudo ao nível das relações. Ele é essencialmente um trabalhador, que se preocupa com o país. A austeridade e a rigidez que lhe atribuem têm mais a ver com a sua timidez. Ele entra na minha casa, e diz piadas!, ri-se, faz conversa com toda a gente.
A sua carreira é cada vez mais significativa, mas não tem uma dimensão que poderia ter porque a sua dedicação não é exclusiva…
Eu sei, e penalizo-me por isso. Mas depois pergunto-me: é essa vida que quero ter? Se abandonasse a medicina e me dedicasse apenas à música, sei que seria capaz. Organizava uma máquina e seria capaz. Tenho tido esse reconhecimento e sei que conseguiria chegar mais longe. Mas onde é que eu ia buscar a minha inspiração, se eu preciso das pessoas? Não posso viver em hotéis. Não posso viver com as malas às costas. Preciso do meu ninho, da minha família, das minhas pessoas. Se calhar, um dia, vou chegar à fase em que a escolha se impõe. Mas por agora, não é isso que quero.
Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2008