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Anabela Mota Ribeiro

Laura Abreu Cravo

06.10.15

Laura Abreu Cravo é jurista, trabalha na CMVM. O seu blogue (A Alma Conservadora) está adormecido há mais de um ano. Quando lhe pedimos um auto-retrato, diz que quem é está nestas respostas.

 

O que se aprende nos livros, no cinema, na arte é muito diferente do que se aprende na vida?

O que me ensinou a compreender a realidade de outra maneira foi ter sido (e tentar ser, ainda) uma leitora compulsiva, uma ouvinte obstinada (embora uma consumidora menos ávida de cinema). Aos 13 anos, os meus pais ofereceram-me “Os meus problemas”, do MEC. Li-o em dois dias e, no momento em que acabei, pedi-lhes para comprar todos os livros do MEC. Nesse verão dissequei tudo o que podia e, em Setembro, comecei a tentar escrever. O MEC despertou em mim a sede de escrever, que nunca mais me abandonou.

 

Outras leituras fundadoras? E música?

Eça, Júlio Dinis, Camilo. E Agustina (a responsável pelo meu enviesado “feminismo”), os russos, os franceses (mais Flaubert), os anglo-saxónicos. Ouvi a bossa nova dos meus pais, jazz, indie (Smiths, Arcade Fire) e Bowie e Cohen.

 

Há 40 anos tivemos um Verão Quente. Que lhe contaram os seus pais sobre esse tempo?

Nasci depois do 25 de Abril de 74. Os meus pais faziam relatos da vida em ditadura. Creio que o pulso ditatorial não se fez sentir da mesma forma na Madeira. Sei que o meu pai terá estado vagamente envolvido em actividades consideradas subversivas, mas nunca teve problemas com as autoridades por isso. Só mais tarde, na faculdade, fui confrontada com as vidas que viveram esse regime: professores, pais de amigos e, recentemente, o meu sogro, que foi preso político. A meio da faculdade, desenvolvi uma curiosidade pelo pós-25 de Abril, em especial pelo caso Camarate.

 

Porquê?

Li tudo o que havia disponível sobre essa época, sobre a morte da Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa. Acho que precisava de ter uma opinião sobre o objecto de tantas teorias da conspiração e dez comissões parlamentares.

Não vivi o 25 de Abril, mas não o sinto como um momento “de outros”. Sinto que nos diz profundamente respeito, que me diz profundamente respeito, e por isso sou tão intransigente quando vejo tratar com displicência esse legado. Não consigo compreender os que se enfadam com os direitos fundamentais; ouvi recentemente alguém referir-se aos direitos de igualdade de género como “direitos fundamentais 3G”. Tive de me esforçar para não insultar alguém.  

 

Vamos aos gregos: diz o guerreiro Aquiles ao rei Agamémnon, na “Ilíada”: “Ah, como te vestes de vergonha, zeloso do teu proveito”. Os portugueses estão divorciados dos políticos porque os consideram demasiado zelosos do proveito próprio?

Não me divorciei de nada ou ninguém. O caminho não se faz esperando que o façam por nós; faz-se fazendo. Creio que há uma enorme crise de noção de serviço público, tanto do lado dos servidores, como do lado dos servidos. É certo que há políticos corruptos, como há médicos, advogados, gestores e até padres. Mas a solução não é a alienação; é a participação, a busca de alternativas, a fiscalização activa. E, quando se justifique, a denúncia.

 

Acha o discurso: “Eles são todos iguais!” uma consequência banal do estado a que isto chegou? Ou considera que é grave e abre espaço a populismos?

É grave, muito grave. Porque é um discurso de generalização, de desresponsabilização dos verdadeiros culpados. Neste caso, o diabo não está no detalhe, mas na simplificação. A preguiça cívica, embora menos grave, não está melhor para a vida colectiva do que a instrumentalização para proveito próprio.

 

Atravessamos um deserto em que todos sabemos o nome do ministro das Finanças alemão ou grego. Antes de mais: considera que é um deserto? Onde fica o oásis?

Acho que nunca a ideologia dominou tanto. Os “mercados” não funcionam numa base de racionalidade estritamente financeira. Caso contrário, já todos teríamos por assente o facto de a política de austeridade, tal qual prosseguida, não ter resultados positivos, quer para os credores (que não verão assim satisfeitos os seus créditos), quer para os devedores (que são sujeitos a essas receitas com consequências económicas e sociais trágicas). Vivemos num estranho mundo (ou, numa estranha Europa) em que a ideologia passou a ser o sentimento dominante dos eleitorados locais, em detrimento de um ideal europeu em benefício de todos.

 

Como olhou para o caso grego?

Confesso que os acontecimentos recentes (a propósito da Grécia, mas destinando a mensagem a uma geografia bem mais abrangente) me fizeram temer os tempos próximos. Uma comunidade sem memória colectiva está condenada a repetir os erros do passado. Este discurso quase xenófobo que separa os frenéticos trabalhadores do norte da Europa dos indolentes povos do sul, aliado à galvanização eleitoral da extrema-direita Europa fora, cheira a um passado que não devíamos querer ver repetido.

 

Como é que explicaria a um jovem, que quer perceber o essencial, as diferenças entre a esquerda e a direita?

Não temos aquilo a que alguém como eu chama de “direita” há muito tempo. Se é que se chama direita, a esse mar de (aparentes) contradições em que me tenho visto mergulhada.

 

Revê-se em que direita?

Acredito que devemos ter menos Estado onde ele não é necessário (nas indústrias maduras ou não inerentemente deficitárias) e uma presença assertiva e eficiente do Estado onde ele é essencial (inovação, regulação, saúde, educação e segurança social). Não gosto do Estado a tutelar coisas da vida privada que não tenham relevância criminal. Sou fortemente contra a descriminalização do aborto (acho que a lei que tínhamos já previa as excepções relevantes) ao mesmo tempo que sou fortemente a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo e da co-adopção. Nos últimos anos, conto com pessoas como Adriano Moreira, Manuela Ferreira Leite e Bagão Félix para manter alguma sanidade mental.

 

Quando foi a última vez que usou a palavra esperança?

Não sei dizer, mas uso muito. Não acredito muito em pessoas individualmente, mas sou atraída pela inevitabilidade da colaboração colectiva (e acidentada) que nos levará a sobreviver enquanto país. É a ingenuidade que me permito.

  

Férias de Verão: dê-me uma recordação das férias de quando era criança. São um dos seus maiores tesouros?

Nasci e cresci na Madeira. Nas férias, ia muito para uma casa de uns tios, no Machico. Os meus primos e eu, passávamos os dias a correr pelas vinhas, a apanhar amoras, voltávamos para casa encardidos e felizes para ir dar um mergulho a um porto de pesca de águas límpidas no Caniçal.

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2015