Leonor Silveira
Leonor, a musa de Oliveira. De certa maneira, os seus olhos ainda são os de Ema, a Bovary do Douro imortalizada no filme Vale Abraão. Está neles intacta a frescura e o mistério. “Eu sei que o tempo passa, mas como é um bom tempo, ele constrói-me. Não me magoa; ou, se magoa, magoa construtivamente. A pergunta que sempre me fazem: diga lá como é trabalhar com Manoel de Oliveira? É muito bom.” Já são mais os anos com Oliveira do que os anos anteriores a Oliveira. Leonor cresceu. Os franceses fizeram dela chevalier.
Ainda pensa naquela que era antes do encontro com Manoel? É como se estivesse predestinada uma vida até esse encontro, e depois tudo tivesse ficado alterado.
Penso nessa que era antes no campo pessoal. Na infância, na adolescência. Nada tem que ver com a actriz. Quando me perguntam alguma coisa sobre mim, como actriz, já só existe a que sou depois daquele encontro maravilhoso. Não estou a destituir o brilho e o tesouro que era a minha vida até então. Segundo Oliveira me explica, venho parar às mãos dele sem vícios – era possível moldar-me. Havia um absoluto desconhecimento do que era necessário num plateau de cinema, na construção de um personagem. Tudo aquilo foi feito com o que a natureza me deu. O instinto. O agarrar-me a determinados momentos, sensações, cheiros, que me pareceram úteis para dar ao Manoel qualquer coisa que ele me pedia. Isso ainda me acompanha. São instrumentos que ainda uso.
Se não fosse o encontro com Oliveira, o que é que a sua vida seria?
Gostava de ser médica. O meu pai é médico, aprendi a reconhecer a nobreza da profissão. Mas aos 17 anos há sempre um lado nebuloso… O que é que vai ser da nossa vida? O momento era: liceu francês, depois bachaloreat… A seguir logo veríamos. A entrega, de momento, era exclusivamente para aquilo. Não tenho uma resposta concreta para a sua pergunta – o que é que queria fazer. Não tinha naquela altura nem tenho agora. A vida tem sido muito generosa em dar-me várias experiências. Eu entrego-me de alma e coração, com as minhas capacidades, o melhor que posso. Continuo neste barco, devagarinho, desbravando caminho.
Ao mesmo tempo, depois deste encontro que muda tudo, não decidiu que seria actriz, apenas actriz. É uma actriz de Oliveira. São pontuais os trabalhos com outros autores.
No princípio, eu não optei porque não tinha a certeza. E os anos foram passando. Fui sempre acompanhada por uma curiosidade, um querer saber mais. Queria estar num lado que me permitisse ver sob outros filtros. Isso construiu completamente o meu trajecto. Não há uma falta de coragem de me assumir como actriz. Se eu pudesse continuar a ter a honra de receber convites para fazer filmes, e pudesse fazer outras coisas…
João Botelho dizia recentemente que não trabalha com outros realizadores porque Oliveira é muito ciumento…
Trabalhei com poucos realizadores, é verdade, mas foi por acaso. Houve momentos em que me foi proposto um papel e eu não pude. O João [Botelho] é um deles. O João Canijo é outro. A Teresa Villaverde é outra. Mas não houve uma recusa da minha parte. Quanto aos ciúmes do Manoel de Oliveira, [riso] penso que é o João a meter-se com ele!
(Há pouco referiu-se à sua prima Beatriz Batarda como “a minha irmã Beatriz”. Gosta dela como uma irmã, foi um lapso?
Gosto dela como de uma irmã. Aliás, consideramo-nos irmãs. Existe ela, o [meu irmão] Lourenço e eu. Sou a mais velha, ela é a mais nova. São duas irmãs: a minha mãe e a minha tia. Fomos criados como irmãos. Quando falamos uma com a outra, tratamo-nos por “mana”.)
Voltemos à relação com Oliveira. É uma relação onde se cresce e se é formado. Mas inevitavelmente esteve exposta à usura das relações longas. Como com os nossos pais: emulação, rebeldia, fusão?
Passou pela infantilidade; o rir, o levar descomposturas monstruosas – “A menina não percebe o que está a fazer, é preciso ter respeito”. A disciplina do Manoel em plateau não dá direito sequer a um sorriso fora de tempo. No princípio não me atemorizava, depois sim. Comecei a tomar consciência do processo criativo do Manoel. Da infantilidade, passei para um amadurecimento e uma consciência do que estava a presenciar, a que é que pertencia. Para que é que eu servia, porque é que estava ali. A entrega, afinal, é mesmo total, tem mesmo de ser completa. Confiança cega, absoluta da parte de todos nós, actores. Um respeito imenso.
Depois passou-se para uma fase mais intempestiva, de alguma convulsão. Provavelmente teve também que ver com a minha idade, com o meu crescer. Percebo agora que tudo isso são fases para chegar a um ponto em que o entendo pelo olhar, sei exactamente o que me vai pedir, e ele aceita que eu saiba isso. É uma simbiose muito especial. É a minha escola, é a minha casa no cinema.
E é o seu corpo que aparece nos vários momentos da cinematografia de Oliveira. É o seu amadurecimento como mulher que ali é exposto. Como é que se olha, por exemplo, na célebre imagem do Vale Abraão, com o canário por trás? Ou a menina que apareceu n’ Os Canibais?
No fim de um filme há um, dois sentimentos que ficam, traduzíveis em vários adjectivos. Quando vejo um cartaz de um filme, uma fotografia minha, do que me lembro é do sentimento que ficou da rodagem. À medida que os anos vão passando, e por mais pequenas que sejam as participações nos filmes, o sentimento, a maneira como adjectivo, já não é tão violento. N’O Princípio da Incerteza (que é um papel médio), no Angélica (que é um pequeno papel): os meus adjectivos traduzem uma maior serenidade. Nesses eu não fui “violentada”, bem ou mal, [como no Vale Abraão, n’ O Convento]. Aqueles filmes são menos invasivos. Ao espelho, vejo um amadurecimento desta criatura…
O que é que era tão invasivo?
O colocarem-me. O posicionar-me. O perceber o universo onde estava a entrar. Não é gratuito. Não é fácil. Não é um chá das cinco. A seriedade do trabalho, que contraria o: que fácil que é ser actriz, que giro que é! Capas de revistas, outdoors. Não é nada disso. Tudo aquilo que Oliveira representa, a nível nacional, europeu, mundial. E de repente, on te prends, e “faz favor, participe nisto”… Perceber que isto não é uma sorte, é uma honra.
Evitou sempre o fogo-de-artifício. Não sucumbiu ao deslumbramento da passadeira vermelha. Alguma vez foi sequer uma tentação?
Como dizer?, eu não gosto disso. Faço tudo aquilo que achar que é correcto e bom para os projectos nos quais participo. Caso contrário, acho que não há mais-valia nenhuma. A não ser para construir um grande castelo de areia, evidenciando-me noutros aspectos da minha vida – no domínio pessoal. Mostrar-me, apresentar-me assim, não.
Mesmo que não se faça essa deriva, é fácil no cinema ter fascínio pelo glamour, pelos vestidos compridos, por um lado de princesa.
Tive momentos de princesa, inesquecíveis. Jantar em casa do rei de Marrocos com o próprio é inesquecível. Fui como júri [do festival de cinema de Marraquexe, 2003]. Mas são experiências. Depois disso volto para a minha casa, que tenho que tratar, para os meus filhos, o meu quotidiano, os meus amigos. E isso é que é a verdade. O resto são bombons. Não tem lógica arrastar esses momentos. Subir, descer passadeiras vermelhas: estamos com a nossa equipa, vemos o filme. Quando aplaudem, choro sempre. É sempre uma emoção extraordinária.
Chora? Parece inesperado em si. A sua imagem é a de uma mulher controlada, que não se abandona ao sentimento. Em público, pelo menos.
Emociono-me muito, muito. Sou muito emotiva. Não tenho medo de chorar, não tenho vergonha de chorar. Não gosto de parar para pensar nas ideias que as pessoas têm de mim. Tenho tanto medo disso… Gosto de saber que algumas pessoas gostam de mim. Porque é que hei-de ter vergonha de dizer as coisas? Adorava o meu avô materno, tinha uma imensa paixão por ele. Lembro-me perfeitamente de ele estar quase a ir embora… “Vou dizer-lhe tudo o que tenho para dizer, e peço desculpa por não ter dito antes”. Desde então, não me coíbo de dizer a verdade. Não perco a oportunidade de poder dizer qualquer coisa de bom. Já basta quando estamos fechados sobre nós próprios, numa tensão permanente, com máscara. Se somos verdadeiros, estamos mais à mercê de mentalidades canalhas.
Mas acabou por escolher a exposição e vulnerabilidade ao fechamento.
Claro.
Paralelamente à vida de actriz, há a vida de todos os dias de quem se licencia em Relações Internacionais, trabalha no ICA, é casada e tem dois filhos. Parecem mundos estanques.
São, não têm nada que ver um com o outro. O de mãe está acima de todos. No dia em que não puder fazê-lo, tudo pára. Mas isto é o normal, qualquer mãe entende, não precisa de legenda por baixo. Não há intercâmbio de personagens. Se sou actriz, distancio-me por completo do meu trabalho administrativo. E isso não impede o reconhecimento e a amizade dos interlocutores de cada um dos lados.
Porque é que foi tão fundamental separá-los?
Porque eles correspondem a dois momentos do mesmo ciclo. Estou [enquanto vice-presidente do ICA] na parte do financiamento, para depois chegar à lógica da criação, como actriz. Ou eles estão separados ou então há uma promiscuidade que me envenena. Tem que haver rectidão.
Quando recebeu a distinção na embaixada de França em Lisboa, Manoel estava na primeira linha. Não deixa de ser curioso que tudo tenha começado no liceu francês. Foi lá que foi a audição na qual ele a descobriu.
O percurso que faço com Manoel nunca larga França. Tudo foi uma feliz coincidência neste encontro. O facto de eu falar francês (a família da minha mãe é francesa). Manoel gostar de França e de França adoptar a cinematografia do Manoel como adopta. O ser produzido pelo Paulo Branco, que é produtor também em França. Oliveira ser levado a Cannes sistematicamente. A partir de certa altura vou eu a Cannes, já sozinha, graças a este percurso. E tudo começa no liceu francês.
Recebeu a Ordem das Artes e das Letras do governo francês no grau chevalier. Uma pergunta-cliché: o que é que sentiu quando recebeu a distinção?
Dizer que não ficamos satisfeitos pessoalmente, seria mentira. Foi um reconhecimento que faz favor!, um pouco inesperado. Fico muito orgulhosa e contente de saber que o meu trabalho é reconhecido por França e que isso reverte tudo a favor da nossa cinematografia. Pode parecer um lugar-comum, mas não é. Trabalhando todos os dias onde trabalho, vendo o terrível que é conseguir fazer cinema, posso dizer sem falsas modéstias que é bom que o nosso cinema tenha um momento [como este]. Através de mim ou de outra pessoa.
Publicado originalmente na revista Máxima em 2011