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Anabela Mota Ribeiro

Leonor Xavier

13.12.21

Raul Solnado, com quem viveu, dizia: “Ai, a minha vida é tão frágil, cuidado. Se ela cair da estante parte-se aos bocados, estraga-se toda”. A vida de Leonor Xavier, contada no livro Casas Contadas, não caiu da estante e não se estragou. A obra mereceu o prémio Máxima de Literatura deste ano e a propósito dele conversámos de manhã cedo, na sua casa cheia de livros, de pintura, de retratos, de marcas da vida. A vida de Leonor, nascida em 1943, pode contar-se a partir das suas casas, dos encontros fundamentais, olhando para quem foi sendo, para as fracturas, para o Brasil onde soube que também era outra.

Uma pessoa é sempre ela e as suas circunstâncias. E é um livro em movimento, que precisa de ser escrito, para depois ser lido.

 

Foi para o Brasil em 1975, existia sobretudo numa função: a da mãe, esposa burguesa, da menina bem comportada. Foi no Brasil que adquiriu uma identidade própria?

Adquiri a consciência da identidade. O António Alçada Baptista, na introdução do meu livro de entrevistas Falar de Viver, comparava-me àquelas árvores japonesas que estão dentro de uma cápsula, pequeninas, e que crescem quando saem da cápsula. O Brasil deu-me uma consciência de um outro mundo, que não este, tão ordenado, onde nasci e vivi.

 

Vamos detalhar as duas fases para perceber melhor a eclosão dessa árvore que está encapsulada e depois resplandece.

Vivia-se, e vive-se, numa sociedade onde não se conjuga muito a primeira pessoa do singular. Em geral, fala-se de política, viagens, filhos, estudos, doenças. Raramente alguém diz: “Eu nasci, fiz, aconteci, a minha vida é esta, sou feliz, sou infeliz”. A felicidade, a alegria é vista com uma certa desconfiança. 

 

Na sociedade em que vivemos é de bom tom o pudor em relação à vida privada, aos sentimentos.

Exactamente. Pensa-se que a vida privada tem de ser discretamente levada, que não pode ter falhas. Se há alguém na família que bebe, não se fala disso. No Brasil, percebi que o que interessa é o nome próprio, muito mais do que os nomes de família. No Brasil somos avaliados pelo que somos, e não pelo que temos ou pelas pessoas com quem saímos. Outro dos ingredientes que fizeram essa consciência da identidade foi o conviver todos os dias com o diferente. O meu marido era professor de Direito, fomos para S. Paulo, uma cidade gigantesca, com pessoas completamente diferentes de nós. Eu sabia lá o que era um libanês! Era outro mundo. Não havia telefone em casa, havia telefone de recados no patamar do prédio. Em Portugal estamos sempre relacionados com, protegidos por, situados em.

 

Que relação interiormente mantinha com Portugal? Estou também a perguntar por aquela que tinha sido, que ainda era.

A sociedade múltipla que S. Paulo era deu-me a consciência de ser portuguesa, fez-me gostar mais de Portugal. Ganhamos a lucidez da distância. Às vezes até a pequenez e o provincianismo são comoventes. Percebemos como tudo é fugaz e tão pouco importante. Não importa se se é ministro, banqueiro, mulher a dias.

 

A vivência do corpo e dos sentidos, que é diferente no Rio, teve um papel decisivo na sua emancipação? Na grande babel S. Paulo não há uma permanente exposição do corpo ao sol, a praia ao dobrar da esquina.

O que se passa é que Portugal é uma sociedade de véus. Se vamos fazer uma aula de ginástica, até hoje, em 20 pessoas há pelo menos duas que têm um casaco amarrado na bunda. Porque é que as pessoas, além de estarem tapadas a fazer ginástica, ainda se tapam com uma coisa amarrada? Em S. Paulo e no Rio há em comum um cuidado das pessoas com elas próprias. Não se encontra uma pessoa, por mais favelada que seja, que não arranje as unhas dos pés e das mãos todas as semanas. Vendi cremes a certa altura; as pessoas gastam imenso dinheiro em cremes, cuidam-se, fazem ginástica. No Rio ganhamos a sorte de ficar descomplexados. Vemos pessoas altas, magras, gordas, brancas, pretas, mulatas. Andam na rua e na praia tal qual são. Eu era BBG: baixinha, gordinha e gostosa.

 

Essa consciência do seu corpo interferiu com o seu casamento?

Não teve nada a ver com o fim do meu casamento. Acontece que fizemos uma travessia, tivemos sete anos de namoro, mais 19 de casamento. O meu marido seguiu um caminho de pensamento em relação às coisas e eu outro. Pensei que havia uma vida além dessa, partilhada com pequenos conflitos que decorriam de gostar de uma pessoa, uma conversa, um lugar, e a pessoa com quem vivia não. Como eu já não tinha 25 anos nem estava nesse circuito fechado, quis separar-me. Foi uma separação civilizada.

 

Seria impensável para a que foi daqui, para esse quadro social e familiar, um divórcio após 26 de relação.

Sim. Fui a única do meu grupo de amigos que se separou. E não era comum, na minha geração, serem as mulheres a quererem a separação. Fi-lo sem pensar nas consequências práticas de uma separação – é uma coisa cara. Habituei-me a administrar bem os meus dinheiros, a casa, as coisas. Os meus filhos eram adolescentes. Percebi o que era ser-se mulher na idade boa da vida.

 

Que quer isso dizer?

É poder seduzir pessoas (não tem que ver necessariamente com cama). Estar à vontade para resolver onde é que se quer ir, com quem é que se quer estar, como é que se recebem pessoas em casa. E isso a tempo, e não na viuvez. Ter 40 anos e recriar tudo isso bem, sem perseguições, litígios, conflitos.

 

A Clarice Lispector, escritora que admira, teve um percurso semelhante, ela que viveu anos a ser a mulher do senhor embaixador. É preciso confiança para rasgar a convenção, perceber que há uma vida que se vai começar.

Eu tinha duas vidas. Quando mudei para o Rio, em 1979, casada, comecei a trabalhar no jornal O Mundo Português. Todos os dias ia de ônibus de Ipanema até à Cinelândia (o lugar mais povão que se possa imaginar). O jornal era numa rua de putas, ladrões, botecos. Eu fazia os percursos do povo por aquelas ruas. É importante sentir esse anonimato. Percebemos como é que circulamos naquele ambiente, como é que nos defendemos se há um incidente. Depois tinha a vida de pessoa da zona sul do Rio, saía para jantar fora em restaurantes bons. Por isso, eu tinha já desenrascanço no dia a dia. Algumas amigas portuguesas que viviam no Rio nunca tinham andado de ônibus.

 

As pessoas que conheceu e com quem se deu não eram apenas as da comunidade portuguesa. A abertura aos jornalistas, poetas, intelectuais do Rio germinou em si.

Como dizia o António Alçada, gosto muito de quem gosta de mim. O Millôr Fernandes, conheci-o porque o quis entrevistar. Hoje, sempre que vou ao Rio estou com o Millôr. Quando se está dentro, o circuito acaba por ser muito pequeno.

 

Contou a sua história no livro Casas Contadas. Mas é possível contá-la, também, a partir dos encontros que teve. Que encontros apontaria como os fundamentais para a pessoa que é hoje?

O António Alçada foi uma pessoa importantíssima na minha vida. Uma pessoa que me fez vir para Portugal, simbolicamente, foi o Mário Soares. Em 1987 fez a primeira viagem como presidente ao Brasil e levou uma comitiva de 150 pessoas. Eu vivia há 13 anos no Brasil e fiquei de boca aberta. Portugal era um país que sentava à mesma mesa o ex-comunista José Luís Judas e o coleccionador de arte Jorge de Brito (que não podia ser mais conservador). O reencontro com o presente do meu país fez que eu tivesse o impulso de voltar. O que aconteceu ainda nesse ano. Outras pessoas importantes: a Elsie Lessa, que me disse: “O mais importante que você tem é o seu capital vida. Não desista de fazer coisas”; a Tônia Carrero, que me escreveu numa carta: “Você e o Raul [Solnado], que glória!” Depois de me separar, saía imenso com ela. Ela usava um shortinho, eu roía as unhas, não usava saltos altos. Conversávamos muito de coisas de mulheres.

 

O romance com Raul era glorioso, mas improvável.

Foi uma ligação muito importante. Eu não estava nada disponível para romances, vim com três filhos, queria era perceber como é que se vivia aqui. No Brasil, nessa viagem, ele não tinha dinheiro brasileiro e eu emprestei-lhe o que tinha – ele achou aquilo uma coisa transcendente. As coisas aconteceram naturalmente. O Raul era um grande sedutor, fazia aquele ar muito frágil, que era uma grande arma. Explorava imenso as suas distracções, entornava xícaras, copos…, e deu certo. Não foi uma paixão louca. Nunca tinha visto o Raul no teatro, não sabia A Guerra de cor. Em Cuba, no começo da relação, sentou-se e contou-me a história da sua vida. Sem ser para fazer rir. No Rio, deixava-me recados: “É o Raul lusitano…”. Pouco a pouco, ficou uma ligação intimíssima, criativa, fundamental.

 

Tinha 46 anos quando o romance começa. Uma altura em que normalmente as grandes histórias de amor já estão arrumadas.

Mas estão longe de estar arrumadas. Há um verso do Drummond de Andrade que diz: “Na perigosa curva dos 50 derramei nesse amor”. São fases de grande viragem.

 

Porque há um desejo de manter uma efervescência da juventude? Porque a partir dessa curva da vida passamos a ser mortais?

Não se tem aos 50 anos a noção do ocaso. Têm-se agora, com 66. Por isso é que há urgência em viver. Se há 20 anos me perguntassem: “Queres ir a Paris?”, eu responderia: “Não me dá jeito, vou daqui a seis meses”. Hoje vou. Sabe Deus se amanhã não parto uma perna ou estou tonta. Depois dos 50 e tal pergunta-se como se sobrevive no futuro, se esse futuro existir. Tem-se a noção da precariedade, sim. De cada vez que vou ao Brasil, tenho consciência dos que já morreram, dos que estão perto de morrer. É complicado esse confronto. A maior parte das vezes já sou a mais velha dos lugares onde estou. Tenho a sorte de ainda ter energia, resistência, actividade.

 

Há um momento da vida em que começamos a replicar os nossos pais, mesmo sem disso ter consciência? Como eram os seus pais?

Sou completamente diferente dos meus pais. O percurso que fiz não tem nada a ver com o percurso deles. São tempos muito diferentes, é o antes e o depois da Segunda Guerra. O meu pai era um médico conhecido em Lisboa, de feitio talvez seja parecida com ele. Era uma figura forte, respeitada, educou-nos com uma grande exigência. Eu fazia frente, era mais rebelde do que os meus irmãos. A minha mãe era de uma grande inteligência, intuição, lia muito. Deu-me um sentido estético da vida, as mesas de almoçar e de jantar bem postas, as coisas limpas e arrumados, o estar-se bem na vida. Tinha uma grande preocupação que eu acabasse o meu curso, trabalhasse, fosse independente – o que não era comum.

 

A sua formação é católica. Essa dimensão nunca perdeu importância na sua vida, mesmo no Brasil, onde mudou tanto?

Sempre foi uma dimensão importante. Descobri no Brasil uma igreja de alegria na qual as pessoas acreditavam no reino de Deus sobre a Terra. As pessoas intervinham. Essa formação religiosa não tem a ver com o cumprimento dos rituais, integra a personalidade das pessoas. Não se está em pecado mortal porque não se foi à missa e se está na praia ou a fazer o almoço. Se acreditar na vida eterna, estou menos angustiada, não estou em solidão. Se tenho o privilégio da Fé, não estou sozinha.

 

Disse que se comoveu até às lágrimas quando soube que tinha ganho o prémio Máxima de Literatura.

Pois foi. É um trabalho muito solitário, exposto. Imagine pessoas como a Teolinda Gersão ou a Hélia Correia, que têm textos maravilhosos e já foram premiadas: não é todos os dias que são citadas na imprensa. Não estava nada à espera de ganhar. É muito comovente um reconhecimento. Tive a sorte de na minha vida terem acontecido coisas interessantes. Acredito que todas as vidas são contáveis. É também um testemunho do meu tempo.Tinha as facturas, as cartas, imensas coisas anotadas; sustentei a minha narrativa em coisas concretas. O Rui Zink disse no outro dia que cada homem é um livro em movimento. Eu acrescentaria: cada mulher é um livro em movimento. É uma boa definição. 

 

 

Publicado originalmente na Máxima em 2010