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Anabela Mota Ribeiro

Ler e escrever (Plano Nacional de Leitura)

08.01.24

Aprendi a ler com cinco anos, numa escola pública. Até há pouco tempo, não prestei especial atenção ao facto de ter aprendido cedo e ter aprendido bem. Fiz o primeiro ano, que então se chamava primeira classe, duas vezes: a primeira com cinco anos, quando frequentei a turma do meu irmão, um ano mais velho do que eu, e a segunda vez, com seis anos, já numa situação regular.

Há um episódio de que tenho vaga memória e que diz qualquer coisa: o de um pequeno incêndio em casa, eu com seis anos, a pedir que me salvassem os livros.

Pode ser que eu tenha querido ir mais cedo para a escola por gostar de livros, por ter gosto em aprender.

Pode ser que eu tenha querido ir para a escola para acompanhar o meu irmão mais velho e não ficar em casa com a minha irmã de poucos meses.

Entre a minha vontade e ciúme e a cumplicidade de uma professora que deixou que eu frequentasse a escola um ano antes do permitido, aprendi a ler cedo. Quando entrei formalmente para o ensino primário, em Outubro de 1977, tinha cinco, quase seis anos, e já sabia ler bem. Ler e escrever.

Penso que isso me deu um conforto e uma confiança importantes. E, sobretudo, um prazer associado à escrita e à leitura.

Não posso reconstituir com segurança, mas arrisco dizer que ler e escrever surgiram sempre juntas no meu imaginário. Desculpem abusar do uso da primeira pessoa, mas gostaria de contar daquela vez, na terceira classe, em que fiz uma redacção sobre um passeio à Senhora da Penha, em Guimarães. Era uma descrição vívida, tinha o verde do parque, as actividades desse domingo, o cheiro, talvez a alegria. Qualquer coisa deve ter parecido excessivo à minha professora, que duvidou que tivesse sido eu a escrever e que pôs a hipótese de a redacção vir escrita de casa.

Não vinha.

 

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A minha casa não era uma casa de leitura. E a minha avó querida, materna, era analfabeta.

Pensei na minha avó quando concluí o meu mestrado e quando me matriculei no doutoramento, na Universidade Nova de Lisboa. Senti, sinto, uma gratidão pelo país, por todos os que pagam impostos e pelos governantes que implementaram políticas de promoção de serviços públicos de qualidade, sobretudo na educação e na saúde. Fiz toda a escolaridade em escolas públicas com a certeza de que ter um serviço público de qualidade, universal, gratuito ou tendencialmente gratuito, é uma expressão do que é ser civilizado, evoluído, justo.

Que pena que a minha avó tenha crescido num tempo em que a educação não era uma prioridade ou sequer uma possibilidade para todos, e ainda mais para as mulheres.

Esta reflexão que hoje se levou a cabo não é sobre a discriminação de que as mulheres são alvo, ainda hoje, nos mais diversos sectores da vida em sociedade. Mas, como feminista, empenhada num sistema que faz da democracia uma palavra viva, e como cidadã que paga impostos e que luta pela utilização desses impostos em serviços públicos que não deixem alguns pelo caminho, não posso deixar de o dizer e de a recordar.

Dizer é uma forma de combater. A palavra "Não" é uma palavra feroz, ensina Emily Dickinson, e eu quero dizer não a um tempo de injustiça social e de discriminação de género. Quero recordar mulheres como a minha avó, que não encontraram lugar na escola, para, desta maneira, lembrar que, apesar dos passos gigantescos que demos nestes 43 anos, há um caminho importante para fazer. Os desafios são outros, a persistência na acção é a mesma.

O título desta jornada, organizada pela Teresa Calçada, que gostaria particularmente de saudar, incita-nos a olhar para o presente e para o futuro. Neste exercício, obrigatório e difícil, tento não perder de vista o lugar de onde venho. E por lugar quero dizer: a família, a cidade, o país, o tempo, o corpo próprio, a minha identidade.

Sou, somos, essas raízes, um território movediço, feito com os contributos de muitos, uma compreensão de mundo sempre imperfeita, ficções que construímos acerca de nós próprios, a capacidade mágica de fazer planos, projectar-nos no futuro, viajar. Somos pessoas em dúvida, precisamos do espanto, de nos sentir menos sozinhos na perplexidade, sabemos o mundo tóxico, ruidoso, pré-apopléctico. Preciso de ler para me sentir menos confusa, menos ansiosa, para compreender e incompreender, para sair de mim e para me recentrar em mim.

A metáfora da leitura como viagem está talvez um pouco gasta, mas continua a ser, para mim, uma ideia poderosa. A de que, através da faculdade da imaginação, a partir de um conjunto de signos, da clarificação e da estranheza, o mundo se torna menos opaco e o meu mundo interno se abre, se expande, se transforma, é engrandecido por causa dessa acção, absorve e expulsa, integra, está em processo: é vivo.

A leitura é um lugar de partida. Do que mais gosto é de não saber onde vou dar, da aventura de não conhecer o destino. E quando parece que chego, essa outra coisa é que é linda, está sempre adiante. Aprender tem que ver, no meu glossário, com o desconhecido. Ou, para citar Millôr Fernandes, cultura é tudo o que amplia a minha ignorância. O mesmo se pode dizer da leitura. É porque leio que sou mais consciente da minha ignorância, é porque escrevo e leio que o meu mundo se torna, para citar Camões, um "largo mundo alumiado".

Sou afortunada se encontro mestres que me sugerem portas, caminhos. Sublinho: sugerem, em vez de uma imposição ou indicação assertiva, e me dão as ferramentas para que eu possa abrir outras portas, encontrar outros caminhos, tornar mais largo o meu mundo. Uma subtileza iluminante é uma qualidade rara, preciosa. Conheci-a com a professora Maria Filomena Molder, minha mestre, que um dia, estava eu no segundo ano de faculdade, trouxe Dante para uma aula de Filosofia Medieval.

 

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“No meio do caminho em nossa vida, eu me encontrei por uma selva escura porque a direita via era perdida...”; “Nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per una selva oscura, ché la diritta via era smarrita.”

Começa com estas palavras célebres a Divina Comédia. Trago-as para falar da selva oscura e de como considero indispensável ter figuras tutelares para avançar no caminho. Amparo é uma palavra muito boa. Curiosamente usamos mais a palavra desamparo. Precisamos de amparo. Da fantasia de uma pessoa que lê para nós uma peça de Strindberg e nos fala do sonho, que nos escuta como meninos que sempre somos.

Dante escolheu o poeta Virgílio, que ele admirava enormemente, para o acompanhar até às portas do paraíso. Eu encontrei Maria Filomena Molder como quem recebe uma mão que segura, como quem encontra.

Esta imagem de Dante em Florença, com Beatriz, reflecte um cruzamento de linhas, uma sintonia.

 

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Esta imagem de William Blake, de uma série fabulosa que fez para a Comédia, é uma imagem de alguém que não está sozinho, de alguém que talvez tenha menos medo porque tem condições para decifrar enigmas, enfrentar perigos, que tem a quem perguntar, alguém que o pode ouvir.

Muitas vezes, a leitura é esse outro, é essa outra voz, um diálogo connosco. O cinema, o teatro, as artes plásticas, as artes são vozes, são outros que nos ajudam a situar na nossa selva oscura. Muitas vezes, também, a literatura está dentro destes vários suportes, explicitamente, como na imagem que vimos do filme Fanny e Alexander, de Bergman, ou enquanto ponto de partida para uma outra obra de arte, como no caso de Carta de uma Desconhecida de Max Ophuls, um filme de 1948 que parte de um livro de Stefan Zweig.

 

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Na cena mais famosa desse filme, uma jovem interpretada por Joan Fontaine, viaja num parque de diversões com o seu apaixonado, um pianista bem sucedido. O cenário é uma cabine de um comboio, dois bancos, uma janela, imagens desenhadas que dão uma ilusão de movimento, uma música encantatória. Viajam sem sair do lugar e fazem paragens que são ficcionais (mas não na imaginação deles) em Veneza, na Suíça, vão às memórias de infância dela, chegam a uma estação, recomeçam a viagem, nova digressão, novo mundo vasto, novo mundo alumiado...

Os três minutos desta cena são uma forma de leitura fascinante. São uma experiência diferente da que tive quando li as páginas do livro de Stefan Zweig. Mas apesar de serem mais taxativas, como o cinema sempre é, porque tem cara e lugar e uma configuração que não esquecemos mais, mostram como a memória, ter um enredo, criar e contar uma história, são um aliado precioso para a vida, são formas de salvação. Aquela personagem não mais estará sozinha enquanto puder recordar o pai como recorda naquele banco de comboio, junto do seu apaixonado.

Eu não me sinto sozinha porque sou um ser narrativo. Porque aprendi a ouvir a História do mundo, porque tento escutar a minha história.

 

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Paula Rego, a nossa maravilhosa Paula Rego, quis que o seu museu se chamasse Casa das Histórias por isto mesmo. Frequentemente ela fala da importância de ter uma história para começar a desenhar e a pintar, ela fala da singularidade dos nossos contos tradicionais; ou seja, fala de identidade individual e colectiva. Vou ler um excerto de uma entrevista que lhe fiz aquando da inauguração do museu:

"… vi no outro dia na televisão um programa com umas velhas e uns velhos a contarem histórias antigas portuguesas – algumas bastante obscenas. Essas histórias são uma grande, grande influência. A Gulbenkian, graças a Deus, deu-me seis meses dinheiro para eu poder estudar contos folclóricos. Estudei os italianos, estudei franceses, estudei portugueses. E não há como o conto português.

Porquê?

Há neles uma espécie de brutalidade bela. Que não há em mais sítio nenhum, nenhum, nenhum. O grande mestre disso foi o Leite de Vasconcelos [etnógrafo que fez a recolha de contos populares e lendas]. Temos essa tradição oral que vem do passado, de uma beleza mórbida. Essa beleza só existe aqui e tem a ver com a vida portuguesa de agora – não tem a ver só com o passado. Por isso chamo a isto a Casa das Histórias, está a compreender? Não é porque os quadros contem histórias. A mim, todos os quadros contam histórias. Essa crueldade bela é uma tradição a que ninguém liga nenhuma. Tentei, tento que os meus bonecos tenham uma ligação com essa coisa portuguesa. É só isso que quero dizer."

Era o começo da entrevista. 

Gosto desta brutalidade bela de que fala Paula Rego. Gosto de, com ela, na pintura, apurar o ouvido, a minha capacidade de ler em diferentes suportes, de diferentes maneiras.

 

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Como já disse antes, ler é para mim um lugar de partida. E ler é, frequentemente, um detonador da experiência da escrita. Uma escrita mais elaborada, reflexiva, que ganha autonomia em relação ao objecto de onde provém, ou uma escrita que funciona como comentário directo do objecto sobre o qual me debruço.

Gosto de escrever sobre os livros que estou a ler. Dir-se-ia que o faço desrespeitosamente, porque escrevo com a caneta que tenho à mão e me aproprio da página como se ela fosse uma folha onde posso anotar o que é convocado por aquela leitura. Escrever, sublinhar, comentar são, então, uma forma de ligação com o texto, para mim mais respeitador, mais sacralizado, porque sintoma de uma relação amorosa. Quem eu sou está naquele vínculo, naquele corpo a corpo com um texto que é de outro e depois é meu também.

É uma relação de dois que é, ao mesmo tempo, uma relação com muitos, com uma constelação de personagens, com quem temos uma ligação empática. Se Brás Cubas, o personagem criado por Machado de Assis em 1880, não nascesse a 20 de Outubro, que é o dia dos meus anos, provavelmente a minha simpatia por ele não seria tão imediata ou séria. E se não fosse por causa dele, que não existe deveras, nem nasceu no dia 20 de Outubro, a não ser no instante criativo de Machado de Assis, eu não iria à Rua de Brás Cubas no Porto, encontrar numa placa a existência de um Brás Cubas que existiu deveras e que fundou a cidade de Santos, no Brasil, no século XVI.

Como é fácil supor, Brás Cubas, para mim, é o outro, e não este, conhecido pelos seus feitos e valentias num tempo longínquo. O Brás Cubas com quem me dou foi criado por um mulato numa sociedade de matriz esclavagista, Machado de Assis, que cita Shakespeare, traz uns fumos de Schopenhauer, vive no aroma de uma flor amarela e mórbida da melancolia, falta-lhe ímpeto cesariano, conquistador, que encontra, na escrita das suas memórias, uma forma de se relacionar com a eternidade. Ele, que teve uma vida falhada, encontra no exercício da escrita uma forma de se perpetuar, de nos ligar ao seu nome, a uma biografia.

Foi assim que o li na minha dissertação de mestrado. Suspeito que vai acontecer o mesmo com Bentinho e Capitu, personagens que começo a entranhar no doutoramento que já avança, bem como Pedro e Paulo, os gémeos de Esaú e Jacó.

Esta imagem dá ideia de como eles vivem já comigo. Há nela intuições, pistas, tentativas de desvendar qualquer coisa que não sei ainda.

Sei que vou encontrar nestes personagens cintilações de quem sou, do que é o mundo, algo que me fará sentir mais acompanhada. Viverão em mim anos, como Brás Cubas vive. E que prazer ler e ler e ler e não perceber ainda. Espero que vivam com sofreguidão, que provoquem convulsão, que aconteça comigo o que Agustina explica na sua autobiografia quando descreve o acto da escrita: “Escrever é entrar no coração das pessoas, beber-lhes o sangue, avançando sempre, criando enredos e fazendo saltar os personagens das páginas. Há pouca gente que percebe que escrever é uma espécie de danação em que às vezes se têm encontros com Deus”.

Se substituirmos escrever por ler, o efeito produzido é o mesmo. Porque ler é lugar de partida, ler é lugar de encontro.

Obrigada.

 

 

Lido no encerramento da jornada: "Presente- futuro: a urgência da leitura", organizado pelo Plano Nacional de Leitura. Gulbenkian, 6 Novembro 2017