Lilia Schwarcz e Heloisa Starling (s/ Brasil)
Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling quiseram, não “contar uma história do Brasil, mas fazer do Brasil uma história”. Traçar uma biografia, destacar personagens que habitam uma casa grande (e não apenas os senhores), apontar datas fracturantes, movimentos subterrâneos, convulsões que mudam o mundo de lugar. Violência, mestiçagem, desigualdade, liberdade são alguns dos vocábulos centrais. “Brasil: uma Biografia” é um livro que nos permite olhar para o Brasil actual e perceber heranças, continuidades e rupturas.
“Deus é brasileiro”, como diz o ditado? O que quer isto dizer?
Lilia – Como diz Roland Barthes num livro chamado “Mitologias”, todo o povo é profundamente etnocêntrico. Os brasileiros também são. O ditado vem da ideia de que esse é um país sem furacões, terramotos, maremotos. Uma terra abençoada por Deus. O problema desse provérbio, que é muito usado no Brasil, é que pode causar uma grande acomodação. Não é preciso fazer muita coisa. Tudo se resolve no poder mágico das ideias.
É contar com uma força providencial, no fundo.
Lilia – É. Só muito recentemente os brasileiros se têm dado conta de que Deus pode não ser brasileiro.
Heloísa – Essa ideia de um país com uma natureza que tudo resolve, com a ausência de qualquer tipo de exigência porque tudo vai cair do céu, produz um povo que não actua no sentido de construir a sua própria história.
Qual foi o momento de viragem? Quando é que os brasileiros começaram a sentir que Deus podia não estar pondo a mão, resolvendo tudo?
Lilia – A noção de um país pacífico é um dos grandes mitos nacionais. O Brasil nunca foi pacífico. Vejamos o extermínio dos indígenas no primeiro encontro/desencontro com o mundo ocidental. Vejamos o sistema escravocrata que naturalizou um regime de trabalho forçado, cuja base é a violência. Existiram revoltas o tempo todo. O Brasil fez esse caminho inconcluso – a democracia é um projecto sempre em melhoramento, como Heloísa me ensina. Vem vivendo anos de democratização e isso tem dado aos brasileiros a oportunidade de vivenciar os seus direitos civis. Entrámos tarde na linguagem dos direitos civis, do direito à diferença na igualdade.
Heloísa – Construir uma democracia não é fácil.
Em nenhum país.
Heloísa – O povo brasileiro viu-se diante de algumas questões. Saiu de uma ditadura [1964/85], fez uma longa transição. O período dos dois últimos governos militares, do general Geisel [74/79] e do general Figueiredo [79/85], é muito engenhoso. A sociedade teve de se haver com uma escolha: ou temos um governo autoritário ou vamos ter que nos responsabilizar [por nós mesmo]. Foi um momento importante para deixar de pensar que Deus é brasileiro. O segundo momento: ao se deparar com a democracia, o povo tem que se reconhecer dentro de um catálogo de direitos em que todos são iguais. O que, para uma sociedade que tem uma raiz escravista, que passou séculos lidando com o privilégio, é dificílimo. Esta experimentação significa, já no século XXI, ter de reconhecer como meu igual as camadas pobres da população, o negro.
Lilia – É um país que continua sendo campeão de desigualdade. Que continua praticando homofobismos.
Sob vários pontos de vista, nomeadamente em questões ligadas aos costumes, é um país conservador.
Lilia – Muito conservador. É também um país de problemas ecológicos seriíssimos. Que faz uma discriminação silenciosa e perversa. O jogo de lidar com a experiência virtuosa da democracia... As eleições têm sido resolvidas na urna, absolutamente fiáveis, os resultados saem em poucas horas. As instituições democráticas estão consolidadas. Mas é um país com problemas de res-publica muito fortes.
Heloísa – Talvez Deus tenha deixado o seguinte: “Vou ali, não volto já e deixo no meu lugar a democracia e a república para vocês se virarem”.
Lilia – E o jeitinho não funciona mais.
Não? Em Portugal usamos uma palavra equivalente ao jeitinho: desenrascanço (em que os portugueses são pródigos). Muitas das coisas que escrevem sobre o Brasil poderiam ser sobre Portugal. Por exemplo, a dificuldade em planificar, organizar, contar com uma presença salvífica, encarnada em Deus ou numa entidade exterior, que tudo resolve.
Lilia – Há um livro fundamental no nosso livro, do Sérgio Buarque de Holanda, “Raízes do Brasil”, escrito em 1936. Parte da nossa origem portuguesa. E parte da figura do ladrilhador e do semeador. Usa estes termos dicotómicos que mostram certas tendências. É um modelo de colonização de que não se sai de forma incólume. Há muito em comum. Para voltar ao Sérgio Buarque de Holanda: brasileiros e portugueses têm um inflacionamento da esfera privada em detrimento da pública.
Aqui, tudo é fulanizado, tratado como se fosse uma questão pessoal.
Lilia – É o império da pessoa, do diminutivo.
Escrevem no livro que no Brasil até os santos são tratados pelo diminutivo.
Lilia – Exactamente. Os presidentes são chamados pelo primeiro nome.
Heloísa – Há um outro autor que também chama a atenção para a influência dos portugueses que incorporámos, o Raymundo Faoro. N’ “Os Donos do Poder” mostra o tipo de Estado – patrimonialista – que se produz a partir da relação com Portugal. Aqui também deve ser forte a burocracia. A quantidade de papel. O documentar tudo.
Traduz-se num controlo absoluto sobre todos os passos.
Heloísa – É uma dimensão importante, que não é exclusiva do brasileiro, e que mostra sociedades que tiveram um longo caminho para começar a pensar a democracia. A democracia é problemática para esse tipo de sociedade. Essa coisa de todo o mundo ser igual é muito complicada na cabeça dessa sociedade.
Ainda se ouve dizer, a propósito da igualdade: idealmente, sim, na prática, ainda não estamos preparados para isso?
Heloísa – No Brasil não se ouve mais isso. Mas ou essa cultura política começa a atravessar o quotidiano das pessoas, e nunca vai estar pronta porque a democracia não tem fim, e novos direitos vão ser colocados em cena, ou não vai caminhar.
Uma coisa [relacionada com a forma como os políticos são tratados]: os ditadores não têm um diminutivo.
Porque são figuras distantes, inacessíveis?
Heloísa – Exacto. Nenhum ditador foi chamado pelo primeiro nome. Nenhum deles tem apelido [alcunha].
Em Portugal, os políticos homens são tratados pelo apelido de família, as mulheres pelo primeiro nome. Normalmente é assim. A ministra das Finanças é a ministra Maria Luís. O seu predecessor era o ministro Vítor Gaspar.
Lilia – A Dilma [Rousseff] é Dilma. A Marina [Lima] é Marina.
Heloísa – O Aloizio é Aloizio Mercadante. O Levy é o Joaquim Levy.
Lilia – Não tem muita regra. Mas não é como com os militares.
Desigualdade, violência e mestiçagem são palavras nucleares para compreender a biografia do Brasil dos últimos 150 anos?
Lilia – Vamos aumentar essa conta.
Heloísa – Com este livro, o esforço que a gente fez foi dizer que o Brasil não é uma coisa ou outra. O Brasil é uma coisa e outra. Concordo com você: o Brasil tem uma sociedade muito violenta, muito desigual e isso tem a ver com a mestiçagem. Mestiçagem nas suas duas faces – que é um conceito importante que a Lilia trabalha de uma maneira nova. O que está faltando [nessas palavras nucleares] é que, simultaneamente, essa é uma sociedade que desde a sua origem, desde o encontro com os portugueses, luta desesperadamente pela construção da liberdade.
E são diferentes conceitos de liberdade.
Heloísa – Nas minas, no século XVIII, era autonomia. Em 1940, são os direitos civis. A forma como a liberdade vai aparecer, o nome que ela vai receber varia no tempo. O conteúdo é dado pelo tempo e pelas demandas das pessoas. Mas a liberdade é um traço de permanência.
Lilia – A mestiçagem é uma questão fundamental. Durante muito tempo, a noção oficial de mestiçagem teve a ver com mistura. É uma perspectiva. Eu acho que não há mestiçagem sem separação. É próprio da mestiçagem acumular mistura e separação.
Pode explicitar esses aspectos?
Lilia – O Brasil carrega modelos de inclusão muito claros. Sobretudo em termos culturais, somos um produto mestiçado. Desde que o Brasil não é Brasil. Desde antes de os portugueses chegarem. Essas populações praticavam a antropofagia, que era o contacto entre diferentes grupos que levava a um produto diferente. Antropofagia era um contacto ritual, comer o inimigo significava comer a sua alma, comer a sua força e deglutir algo novo. A entrada dos africanos de maneira compulsória (o Brasil recebeu de 40 a 48% das populações africanas que saíram para trabalhar nas plantações da América), gerou outro tipo de mestiçagem. Houve uma mestiçagem cultural desde esse momento? Claro que sim. Veja a nossa linguagem. Veja a nossa culinária. A nossa religião é profundamente mestiça. O candomblé não veio directamente de África, modificou-se no Brasil. A capoeira é uma criação brasileira resultado da mistura.
Ao mesmo tempo, excluiu-se muito. Não há como negar que a sociedade do açúcar é pautada pelo trabalho escravo. Isto criou sociedades profundamente divididas. O universo da casa grande: o Brasil exportou uma determinada arquitectura que separa rigidamente os espaços sociais dos espaços do serviço.
Heloísa – Tem no Brasil, até hoje, elevador de serviço.
Em Portugal, os prédios de há 50 anos tinham elevador de serviço.
Lilia – Nós continuamos a exportar [esse modelo]. Em Miami, onde estão os brasileiros agora, estão introduzindo o elevador de serviço.
Heloísa – Nos prédios que os brasileiros endinheirados estão fazendo em Miami, há o quarta da empregada e o elevador de serviço.
Como é que os empregados eram e são chamados no Brasil? Aqui, houve um tempo em que eram “criadas de servir”. Agora são “empregadas”.
Lilia – Nos inventários são os “bens semoventes”. Os bens eram divididos em bens imóveis (propriedades), móveis (ouro) e semoventes (os escravizados, com o gado). Os escravos podiam ser leiloados, penhorados, segurados, mortos.
Não se fala criado, hoje. É doméstica. O trabalho doméstico não era registado, não tinha limite de horas, a pessoa vivia no mesmo local mas apartada (na área de serviço).
Foi uma grande cartada de Dilma, no período que antecedeu as últimas eleições: o estatuto da empregada doméstica. Milhões de mulheres foram tocadas pela medida.
Lilia – Foi uma grande cartada da democracia. É um projecto que fomos criando no sentido de limitar o horário das empregadas domésticas.
É importante perceber como é que essa matriz se foi metamorfoseando nas últimas décadas. A abolição data de 1888. Na Constituição não há qualquer espaço para falar de escravidão. Mas há uma herança que está longe de desaparecer. Não podemos entender estes tumultos recentes sem perceber o subterrâneo, a história que lhe dá origem.
Heloísa – A escravidão continua. Não a escravidão do século XVIII, mercantil. Mas continua a ter formas de trabalho escravo no interior do Brasil. Há um esforço da polícia no sentido de o detectar.
Lilia – O trabalho com a borracha era um trabalho escravo. E era pós-abolição. Os trabalhadores eram colocados em locais isolados da Amazónia, sem nada, em regime de escravidão. Dito isto: 1888 foi nada? Não. Foi a lei mais curta e mais popular que existiu no Brasil.
Lei revolucionária. Não tendo resolvido tudo, marca um antes e um depois.
Lilia – Concordo totalmente. Sabe-se hoje que Pedro II não estava no Brasil e que fez isso tentando garantir um terceiro reinado para Isabel. Não conseguiu. Na batalha pela República, os negros foram leais a Isabel. “Sabemos que a Monarquia nos deu a abolição. Não sabemos o que a República fará.” O problema é que durante muito tempo essa lei foi vendida pelo Estado como um presente!, e não como um processo de luta. Muitas das cartas de alforria eram compradas pelo próprio escravo. E sabe qual era a primeira condição para ser reconduzido à escravidão? A infidelidade. A linguagem da dependência e a linguagem do favor perpetuou-se na lei da abolição. Isso sem esquecer os racismos que começam logo após.
O que é que fica de uma sociedade esclavagista, mais do que tudo?
Heloísa – Fica o nó da origem escravista. Que reaparece no Brasil contemporâneo das mais diferentes formas. Tem uma canção que Chico Buarque fez recentemente com João Bosco. “Sinhá”. Profundamente dolorosa. É bem o Chico filho do Sérgio Buarque falando.
Como é?
Heloísa – Chico flagra o momento anterior à tragédia. O escravo vai ter os olhos furados pelo senhor porque viu a mulher branca no açude. O escravo diz: “Não faz isso, não”. No final da canção, a gente descobre que o escravo é filho da senhora, da Iaiá.
Há um censo feito pela Lilia em que as pessoas dizem: “Eu não sou racista”. “Conhece alguém racista?” “Sim. Meu pai, minha mãe, minha avó...”. Todo o mundo é racista, menos o próprio.
O racismo é uma herança óbvia da escravatura, desse período. É a principal?
Heloísa – O racismo e a violência. A violência que, na sociedade brasileira, está cada vez mais escancarada. Não é que tenha aumentado. Está é para quem quiser ver.
As pessoas têm embaraço em dizer que são racistas?
Lilia – Nessa pesquisa, 97% diziam não ter preconceito e 99% diziam que conheciam alguém que tinha. O detalhe é que não pedíamos nomes, as pessoas é que queriam dar. E eram todos próximos. “A minha avó não entra no elevador com [um negro]”: era um clássico! O racista é o outro.
As acções afirmativas não têm, por milagre, a possibilidade de acabar com o racismo num país que sempre foi racista. Mas é inegável que trouxeram isto: não é mais possível dizer “Eu não tenho esse problema”. Este é um turning point no Brasil. As acções afirmativas trouxeram o estudo de África nas escolas. “Para quê estudar África?” Houve um momento em que a elite achou que era desnecessário. Mas o Brasil é um país negro e mestiço, também.
E muito. Cerca de 60% a 70% da população é constituída por negro e pardo. Por pardo, deve entender-se mestiço?
Lilia – Não. É et cetera. Esse é um país que se define por cores. O que já é um problema. O Brasil é branco, até há pouco tempo era vermelho (agora é indígena), amarelo (os orientais), preto (negro). E aí vem essa quinta categoria que é pardo. Pardo: ninguém é. É categoria de acusação. Ninguém se autodefine como pardo. De novo, é o racismo silencioso. Pardo é: nenhuma das anteriores. Todos nós sabemos que pardo é moreno. Só que os morenos não dizem: “Sou pardo”. Dizem: “Você é pardo”. “Não, você é que é.”
Heloísa – Nas notícias policiais, até há pouco tempo, o criminoso era sempre pardo. Não era mestiço, não era mulato. Era pardo.
Lilia – Pardo vem de pardal. Pássaro vagabundo, sem cor.
A palavra que me ocorreu quando estavam a descrever pardo foi pobre. Pode ser o que sobra de todas as categorias e que, sobretudo pela pobreza, não cabe em nenhuma delas. Faz sentido?
Lilia – Todo.
Heloísa – Pardo e pobre: as duas coisas estão associadas.
Lilia – A sociedade constrói marcadores para determinar hierarquias. Se diz: “Só estudo o racismo”, está cristalizando o problema. Essas marcas de diferença estão associadas a outras. Raça associa-se com frequência a género e a classe social. Se fizer uma política de bónus (não de quotas), como fizemos na Universidade de São Paulo... “Pessoas que durante três anos estudaram na escola pública, ganha tantos pontos”...
Heloísa – Se fizer isto, muda a cor da universidade.
Lilia – Serão pessoas de classe social mais pobre e serão negros.
Heloísa – Em Medicina, você não via negro. A partir de políticas [de promoção dos que vêm] da escola pública, mudou a fisionomia.
Lilia – A convivência com a diferença não é só uma obrigação: é uma vantagem. Aumenta o seu repertório.
O outro, sobretudo se é pobre, sendo negro, sendo amarelo, é visto normalmente como uma ameaça. A atitude dominante não é a de achar que aumenta o meu repertório.
Heloísa – O desconhecido, o estranho é sempre uma ameaça.
Lilia – É uma ameaça, também, porque ele tira a minha vaga. Concordo com a ideia de que raça, existe uma, a humana. Raça é um conceito biologicamente falacioso. O que os homens fazem é construir em cima de raça, e constroem raças sociais.
Há uma canção escrita por Chico e Caetano e interpretada por Tom Jobim, Miúcha, também Chico e Caetano, “Vai levando”. Quando se olha para a fúria das manifestações recentes, a esperança de que “a gente vai levando”, já não funciona. Sobretudo depois de 20 milhões de brasileiros ascenderem à classe média. Parece que estamos numa situação pré-cataclísmica, que qualquer coisa vai mesmo ser mudada de lugar.
Heloísa – A gente só tem noção da História depois que ela passa. Mas quero arriscar dizer: talvez o Brasil esteja vivendo nesse momento o início de um novo capítulo da História do Brasil. Em 2013, as primeiras marchas talvez sejam o ponto de inflexão. O processo que começou em 88 com a redemocratização encerrou-se. O passado não é mais. Mas o futuro não é ainda. É para este tempo que os brasileiros têm que construir uma agenda – com ferramentas que a democracia os obriga a manipular. Como você disse, tem 20 milhões de brasileiros que saíram de uma posição...
Que querem manter.
Heloísa – Querem direitos. Que é que estava se reivindicando em 2013? Transportes, saúde. Que é que estava se dizendo? Que há um profundo gap entre o governo e a população.
O génio saiu da lâmpada, não quer voltar mais para o interior. E uma vez cá fora, exige direitos.
Lilia – Quem chegou num lugar, não volta [atrás]. Falamos tanto da ascensão da classe C... Tem consequências. Tem um filme muito bom, “A Família Braz” (de Dorrit [Harazim e Arthur Fontes], que acompanha uma família que faz esse caminho. Sai da favela, passa a comer comida japonesa, viaja para o exterior pela primeira vez, anda de avião pela primeira vez, entra na universidade pela primeira vez. Tem acesso. Tem o sonho da casa própria, o sonho do carro, o sonho da mobilidade.
Heloísa – Havia uma discussão recente que dizia assim: “Esses milhões de pessoas foram incorporados como consumidores”. Desde 2013 estão mostrando que não são consumidores. São cidadãos. Isso significa que querem que a agenda de direitos se expanda e se complete.
Os direitos têm que ver com o básico, a vida de todos os dias.
Heloísa – O transporte nas grandes cidades brasileiras é de facto apavorante. Lembro uma classe média tradicional nervosa, dizendo: “A gente agora vai para o aeroporto, parece rodoviária”. Mas não estamos lidando só com consumidores. O que é positivamente bom é o facto de estas pessoas se comportarem como cidadãos.
Brasil faz parte dos BRIC’s. No passado recente, o comportamento dos países emergentes tem sido muito diferente. O crescimento do Brasil não é o mesmo que era não há muitos anos. Por causa destas questões sociais e desta convulsão, há quem comece a desconfiar seriamente que o Brasil possa chegar onde prometia. Há um custo social que entra na equação de uma maneira muito forte.
Lilia – Sabe que há um bom tempo que dou aula nos Estados Unidos. Comecei em Brown, depois Columbia, agora Princeton. Vi essa emergência do Brasil e essa queda vertiginosa. Acho que não é nem o céu nem o inferno. Quando comecei a ser chamada para dar aula no exterior, eu causava uma profunda decepção. Não sou morena, não tenho tatuagem, não tenho pena no cabelo, não sou exuberante. Esperavam um Brasil exótico. A imagem do Brasil, antes dos BRIC’s, era a do país da capoeira, do candomblé.
E era uma imagem muito sexualizada? De corpo exposto.
Lilia – Muito. Sobretudo da mulher.
Heloísa – Era a mulata.
Lilia – A visão comum é a de que toda a brasileira tem uma coisa sensual. Depois disso virámos o país das favelas e só se falava da violência das favelas. Não digo que não somos. Assim como não digo que não somos o país do candomblé. Ao contrário: o meu argumento é que somos. Mas não somos só. Depois foi a voga dos BRIC’s. De repente, o país das favelas virou o país da solução. De repente éramos a solução criativa para o mundo. Eu já dizia que isso era uma bolha que ia estourar... Veja o movimento pendular. As pessoas não prestavam atenção ao facto de não termos enfrentado os problemas estruturais. Transportes, saúde, educação, desigualdade.
Portanto, o Brasil crescia, prometia, mas era um gigante com pés de barro.
Lilia – Exactamente. Não tinha jeito de não estourar. Junto com isso, uma grande promoção do Brasil.
Com a Copa, as Olimpíadas.
Lilia – Parte das manifestações era para dizer: “Não queremos estádios, queremos dinheiro para professor”.
Também se considerou que, uma vez que havia esse comprometimento com o exterior, pelo menos até 2016, não havia outro remédio senão crescer. E que a bolha ia rebentar a seguir.
Lilia – A verdade é que a maquilhagem não dá conta. Para construir isso tudo, é preciso tirar de algum lugar. O cobertor era curto. O Brasil fez uma promoção para o exterior sem que existisse a compensação...
Heloísa – E não contaram com o povo brasileiro. Tem uma população que vai colocar uma agenda de direitos no lugar do estádio de futebol. Foi essa equação que, quando se vendeu o Brasil para a Copa ou para as Olimpíadas, não se considerou.
Grande erro?
Lilia – Penso que sim.
Heloísa – E teve consequências para os governos.
O livro é uma biografia do Brasil. Pensemos que é uma biografia de uma família. Quem é quem?
Lilia – O Brasil é a família composta e complexa. Este Brasil que estamos trazendo como biografia compõe o mando, géneros, gerações e trabalho.
Heloísa – E traz tanto os grandes personagens, o pai e a mãe, os personagens médios, os filhos, como traz os personagens que estão ao rés do chão, e que vão ser determinantes no momento em que o país tiver que fazer escolhas.
Lilia – E, como toda a biografia, traz a trajectória do imponderável. Terminamos desconfiados.
Heloísa – Por isso dizemos que achamos que vai começar um capítulo novo. O máximo que pode pensar é o seguinte: há uma agenda a ser construída. As questões dessa agenda estão colocando uma desfasagem entre o Estado e a sociedade. Os direitos. A luta contra a corrupção.
Por onde é que essa agenda vai?
Heloísa – Eu espero que vá pelos valores republicanos.
Lilia – Há um movimento (a gente é contra), que é forte, pelo impeachment, pela direita, pelo governo militar. Isto é muito plural.
Está tudo a acontecer – essa é a noção que fica.
Lilia – E isso é impressionante. Esses lados todos que não são convexos. O livro está em primeiro lugar no top de vendas há dez dias. Estando dividindo o primeiro lugar com os livros de colorir! [riso] Acho que é um livro republicano, indignado. E é um livro de duas mulheres. Os nossos historiadores são todos homens.
Heloísa – Vou roubar uma frase da Lilia. Ela fala que o nosso presente está carregado de passado. O passado fornece as ferramentas. Talvez o facto de o livro estar a receber essa aceitação do povo brasileiro tenha a ver com o momento que esse povo está vivendo e o desejo de saber mais da sua História. O Guimarães Rosa dizia que um livro é quase sempre maior do que a gente. Não sei se esse é maior. Se for, uma parte do tamanho dele vem de poder oferecer a um público não académico alguns elementos para pensar a sua própria história.
Lilia – Não é o [Jacques] Le Goff que diz que os historiadores voltam ao passado com as perguntas do seu tempo? Então acho que a gente está voltando com perguntas, que são minhas e da Heloísa, mas que são do nosso tempo.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015