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Anabela Mota Ribeiro

Lourdes Sendas

12.04.25

Lourdes Sendas nasceu no norte de Portugal em 1945. Viveu fora. Vive há anos em Setúbal. Foi professora, é artista plástica. Conversámos em sua casa num dia de sol, com os desenhos desta exposição sobre a mesa. Não ouvimos Laurie Anderson nem Chico Buarque. Mas eles estavam no nosso imaginário. Bem como os caminhos da memória que desaguam nestes registos e nestas palavras.

 

Bom, vamos começar.

A exposição tem o tema “pão e água”. Porque é o essencial. A água: somos feitos de água, precisamos de água. É o mínimo de sobrevivência.

Dizia-se que quando alguém era preso ficava a pão e água.

 

Essencial à sobrevivência do indivíduo e da Terra. Para a sobrevivência do planeta é preciso que ele seja irrigado e que produza. Estamos a falar de alimento. 

Estamos a falar de matéria, fui buscar o pão. Quando fermenta, expande e tem aqueles buraquinhos. Pegas numa fatia de pão, vês que tem uns olhinhos…

 

Neste processo, estamos a lidar com o ar, com o fogo (além da água e do que brota da terra). Os elementos e o Tempo vão produzindo coisas diferentes na própria massa orgânica. Os olhinhos não são senão o resultado disso.

Eu nasci em Alfândega da Fé em casa do meu avô. O meu avô tinha uma casa grande. Havia porcos, coelhos, galinhas, cabras. Também havia cavalos. E havia um forno e a casa do forno. E nós, em miúdas, íamos lá muito amassar o pão. Em Alfândega faz-se um pão que tem a ver com os judeus. Ali há muita influência dos judeus. É um pão de azeite e ovos. Esse não tem massa lêveda.

 

Massa lêveda é fermento?

É fermento, sim. Fica um pão baixinho. Tão bom, tão bom, tão bom.

 

Sabes fazer esse pão?

Já não sei. Sei que leva azeite, ovos e que fazem uns cortes em cima.

 

Dizem umas palavras bentas?

Isso é quando se põe no forno. “Deus te abençoe”. Era para aquilo correr bem.

 

Falando de sobrevivência e alimento, não tínhamos falado da dimensão espiritual, bíblica, que é indissociável do pão. Esse forno e essa casa eram comunitários?

Não, aquele forno era só nosso. O meu avô foi comprando casinhas e ligou tudo. Ficou uma casa desconjuntada. Era a casa do forno, era a varanda, era a cozinha, e por aí fora… os quartos das empregadas, a sala de jantar, um corredor grande, claro, uma porta para o curral, o quarto do meu avô, o quarto da minha mãe, o quarto das visitas, o escritório dele. O meu avô era farmacêutico, além de proprietário.

A farmácia era um pequeno espaço com chão de cimento, já não era madeira, armários escuros com balanças de precisão, aqueles frascos bonitos (que eu tenho aqui à entrada), castanhos, meio transparentes, com uma rolha.

 

Neste desenho, vejo os olhinhos da massa do pão e compreendo uma sequência. O plantio, a germinação, a colheita, a moagem, a transformação. Fala-me mais do que fizeste.

Anda tudo à volta do mesmo, que é a água, o movimento, a leveza.

 

Que materiais usaste?

Aguarela, lápis de cor, lápis “aguarelável” (lápis-aguarela), tinta da China. Talvez ecoline aqui.

 

O que é ecoline?

É uma tinta transparente. Mas, uma vez que as pões, já não sai mais. A tinta da China também não sai mais.

 

É bonito a ecoline ser transparente e perene.

Pois. Esse registo fica. Ao passo que outros, posso apagar.  A ecoline dilui-se com a água. Esta, que não se dilui, é tinta da China, mas de cor.

 

Como é o teu gesto? Começas por desenhar num caderno?

Não.

 

São desenhos? Há uma confluência de materiais e de técnicas. Como é que lhes chamas?

Registos. Desenhos.

 

Por onde é que começas?

Penso. Primeiro tenho a ideia do que quero fazer. Não há registo, mas tenho a ideia. Depois venho para aqui e as coisas saem-me. É o gesto.

 

O gesto é mais ou menos intuitivo? É uma coisa demorada?

Tudo isto é rápido. É rápido. Quando está quase no fim, começo a pensar: aqui falta um bocadinho desta cor, ou ali falta esta mancha, ou as linhas precisam de mais movimento aqui.

 

Essa descrição não diverge da que faríamos dos ciclos do pão e da água. Há um desenvolvimento que se opera no subsolo. Quando irrompe, é uma coisa impetuosa que ganha uma forma cá fora. Por fim, há um amadurecimento que se pode fazer, apurando. São veios de água, caminhos dentro de ti, que um dia vão despontar e jorrar?

Sim, é o ciclo da vida. Eu fiz agora 80 anos. Neste momento só me interessam as coisas simples, um bocadinho como as crianças. Os miúdos vêem e ficam encantados com uma florinha. Eu também fico encantada com uma formiga. Vou ao jardim e fico pasmada. Faço fotografias. Sei lá, fico ali. Esse lado criança aparece muito agora.

 

É uma compreensão que foste tendo e que agora se tornou nítida – a de que te interessa o pasmo das crianças?

Encanta-me. Vivi em Londres durante alguns anos, fiquei fascinada com Londres. Eu aí não trabalhava, coisa que nunca tinha acontecido. Sempre trabalhei. O Guilherme, o meu marido, trabalhava na BBC. Isto para dizer que ali perto havia uma loja de materiais de belas artes, que tinha um armário repleto de pastéis secos da Sennelier. Gavetinhas, tantas gavetinhas. Gavetinhas do azul mais claro ao mais escuro. Do amarelo claro, ao laranja, aos castanhos…

Essa altura foi importante. Aproveitei para ver coisas que anteriormente não conhecia. Visitava ateliers de artistas. O da Paula Rego, entre outros.

 

Contavas que vem desse período de Londres a compreensão de que te interessa a expressão das coisas simples.

Sim. Punha papéis grandes na parede para fazer gestos largos.

Nesses anos, ia ao British Museum. Tinha visto umas coisas magníficas sumérias, uns deuses com asas, bicos de aves. As asas eram assim [abre os braços], largas. Largas como as asas da Vitória da Samotrácia, que não vi ali, mas que já conhecia.

 

Parece-me que estás a falar da liberdade. Esses gestos, quer dos sumérios quer da Vitória da Samotrácia, apontam nesse sentido.

Este período é já posterior ao 25 de Abril. Anterior ao 25 de abril é a vida em Bruxelas. Também vi no British Museum uma roda da vida com peixes. Acho que era uma representação da vida, com peixes, água, movimento. Como a vida está sempre. Tudo roda, em princípio. [riso]

 

Estas referências soltas, ser criança, liberdade, a tua infância há oitenta anos, Londres há cinquenta anos: tudo entra neste carrossel. São experiências e camadas temporais distintas, que vão ficando soterradas. Por fim, tudo acaba por…

Aparecer. É. O interesse pelo simples, pelo movimento das crianças começa no tempo de Londres. Todas as semanas, havia um dia em que saía de manhã. Comprava um ticket que dava para fazer não sei quantas viagens num dia. Saía às quintas-feiras. Ia ver o museu. Depois voltava e só via uma sala, depois voltava e via outra sala. Pequenos nichos que me interessavam. Lembro-me de ver o Cimabue, os anjos de Cimabue. Era um pintor antigo, anterior à perspectiva. Gosto muito das Anunciações. Antes de ir para Londres, terminei o curso de Belas Artes, de pintura, em Lisboa. E tinha feito um trabalho sobre anjos e demónios [faz um gesto vertical].

 

Essa linha vertical... parece distante, e ao mesmo tempo todos nós somos um pouco anjos e demónios.

Sim. [riso] Debrucei-me bastante sobre isso, sobre a ascensão e a queda, e li o Gilbert Durand, o livro Estruturas Antropológicas do Imaginário. Roubei o livro do Gilbert Durand.

 

De onde?

A um amigo, o Cabrita, o António Cabrita. Eram fotocópias, não era um livro. Mas ele ficou zangado. Um dia foi a Londres e ao ver as minhas pinturas disse: “Ah! Foste tu que me levaste o livro do Gilbert Durand”. [pausa] Já me perdi.

 

Estávamos em Londres e na descoberta. 

No British Museum e nas galerias. Naquela zona há muitas galerias. Um dia passo e estava numa galeria um desenho de um triciclo. Um triciclo grande. E eu fiquei [ar de assombro]: “Que bonito”. Era do Cy Twombly. Gostei bastante daquele registo. Era americano, foi viver para Itália e estudou as coisas da antiguidade.

 

As coisas que vias nessas quintas-feiras são menos desenhos. São escultura, pintura. Mas transportam os mitos da antiguidade.

Sim, sim.

 

Estavas a colher e a alimentar um imaginário, não tanto a técnica.

Tinha tempo para aprender, para ver tudo. Segui bastante o Cy Twombly, vi uma exposição individual na Whitechapel. Nessa galeria onde vi o triciclo, vi também a série das botas e do cão da Paula Rego. Também gostava muito do Baselitz, daquela parte tosca, sem acabadinhos. Eu não gosto de acabadinhos. O Baselitz tem um gesto brusco e ao contrário.

 

Quando olho para os teus desenhos não vejo gestos bruscos. Vejo delicadeza. Mesmo quando os gestos são verticais e o movimento é inteiro. Não é um gesto inseguro. Achas que isso tem a ver com as crianças, com tudo aquilo de que temos estado a falar?

Sim. É mais isso. Os desenhos das crianças encantam-me. Tenho desenhos do meu filho Noé pequenino, muito bonitos.

 

E desenhos teus de criança?

Não tenho. Não tenho nada.

 

Lembras-te de como eram?

Criança, criança, antes da escola, não me lembro. Nem sei se me davam lápis e papel, tão pouco. Sei que depois de ir para a escola, fazia os meus desenhos e fazia os desenhos das outras.

 

O que é que elas faziam em troca? Redações? Equações matemáticas?

Deixavam-me copiar [riso]. Eram desenhos bastante infantis. Lembro-me de um desenho. Mas tenho que contar antes. Eu ia, miúda, para o campo com o meu pai. Depois da hora de acabar o trabalho.

 

O teu pai era médico.

Íamos à procura de cogumelos ou ele ia pescar trutas num riozito. Eu tinha paciência. Ficava sentada a olhar e não fazia barulho. Não se pode fazer barulho quando se está ao pé dos peixes, senão eles não vêm. Ficava a ver e a ouvir e aquilo maravilhava-me. O meu pai gostava da minha companhia, porque não estava sozinho, tinha ali alguém. De vez em quando, lá dizia alguma coisa. Eu gostava muito daquela relação, estava bem com o meu pai.

 

Desenhavas quando estavas com o teu pai, no campo ou no rio?

Não, não. Era só observar. Depois desenhava. No meu tempo tínhamos de fazer ervários. Juntava as criptogâmicas não-sei-das-quantas (sei lá, aqueles nomes em latim), procurava a planta, descrevia-a: “Tem folhas não sei quê, tem raiz tal”. Gostava muito disso. Fazíamos o desenho da planta, púnhamos a planta ao lado. Ficavam uns livros bonitos. Lembro-me de desenhar um prado com um rio e uns choupos, um pescador.

 

O pescador era o teu pai, como é óbvio. E desenhavas a casa e as pessoas da família? Aparecem muito nos desenhos das crianças.

Não me lembro de desenhar a família, não. Desenhava a casa. As casinhas.

Antes desta exposição, fiz uma na galeria municipal, na Casa da Cultura. E desenhei as plantas das casas onde me tinha sentido bem. A casa do forno, a casa onde o Noé nasceu. A planta que desenhei já não é exatamente a planta da casa, mas sim a memória da planta.

 

O Noé nasceu em casa ou no hospital em Bruxelas?

Nasceu no hospital que eu escolhi. Porque havia dois hospitais e um tinha sido desenhado pelo Victor Horta. Allors.

 

Engraçado, saiu-te esse allors, pensando em Bruxelas, na língua francesa, nesse tempo.

O hospital desenhado pelo Horta tinha os cantos redondos. Foi muito engraçado o processo, as consultas.

 

Em que outras casas te sentiste bem?

Desenhei a memória da casa do meu avô, onde nascemos com a parteira. A casa de Londres. Sacavém (quando o Noé foi para a escola primária, que era em frente). Aquela exposição, já aqueles trabalhos, eram sobre as sensações que tinha tido, as memórias lá vividas, e as cores. Tinha a ver com um lado mais sensorial.

 

Qual é a sensação que vem com o amarelo (bem sabendo que não há um amarelo, há uma infinidade de amarelos)?

Para mim é a luz.

 

Azul.

Azul é o céu. Pode ser também o mar, mas não é o mesmo azul.

 

Qual é a cor do pão?

É um ocre clarinho. É este ocre clarinho que se passeia aqui, estás a ver? [aponta para o desenho]

 

Qual é a cor do inverno?

É vermelho. É o quentinho do forno, da lareira.

 

Qual é a cor da aridez? A aridez também é precisa para chegarmos ao verdejante e ao fruto.

A aridez é aquela cor do deserto, o amarelo muito pálido, muito pálido. Ocre claro, muito claro. Tudo quase branco. E um toquezinho de verde. Um toque.

 

Eu estava a fazer a correspondência dentro de mim das cores que te propunha. Quando disse aridez, vi preto.

Ah.

 

A associação que fazemos é puramente subjetiva. Eu disse aridez e fez-se escuro. O que é que para ti tem a cor preta?

Ai, o preto é o corte. É..., é a faca.

 

E o grafite, a cor do lápis?

É também a faca. É tudo preto.

 

No desenho que agora temos à nossa frente, a tonalidade predominante é azul. Mas são dois azuis muito diferentes.

Um é azul turquesa.

 

O nascimento é de que cor?

Depende. O nascimento de quê?

 

De uma criança.

Cores de conforto. Aconchego.

 

Aqui é um verão vivo? Este cor-de-laranja.

Sim, queima.

 

O que é que queres dizer mais?

A minha ideia é que esta exposição é o fechar de um ciclo. “Pão e água” apareceu depois de eu estar mal do coração. Este desenho, por exemplo, baseou-se naquilo que eu via no ecrã, quando fazem uma ecografia.

 

Estas podem ser as linhas do corpo, os sinais vitais.

Dentro do coração. As linhas de um ecocardiograma. Vês os buracos da passagem do sangue do ventrículo para a aurícula. E parece que estão estragados, abîmés

 

Abismada, foi o que disseste?

Não. Abîme.

 

Abîme é um abismo.

Sim, também. Estragados.

 

Certas palavras estrangeiras ou metáforas surgem no teu discurso para dizer coisas especiais ou sensíveis. É um falar poético. Dizer abîmé é mais poético do que dizer obstruído.

Vou buscar o francês e as metáforas, porque eu não sei falar de outra maneira.

 

Este rosa quase lavanda, o que é que representa?

É o que tu quiseres. Tem a ver com as flores da Primavera. Com o renascer. O pão e a água.

 

 

Pão e Água, ou o movimento perpétuo

é uma conversa entre Lourdes Sendas e Anabela Mota Ribeiro para a exposição Pão e Água, inaugurada na Casa da Avenida, em Setúbal, a 12 Abril 2025