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Anabela Mota Ribeiro

Posso ter cem florins de prazer contigo? (exposição sobre prostituição em Amesterdão)

06.02.14

Lovely. Putain. Sugar. Helga. Loose Woman. Lulu.

Estes são alguns dos nomes das mulheres que encontramos nas salas do Historisch Museum de Amesterdão. Numa das salas, no andar de cima, entro no simulacro de um quarto. O espaço é exíguo, a cama estreita, a colcha enrugada sobre a cama estreita. A mesa de cabeceira, o je t’aime escrito com o dedo no pó da mesa de cabeceira, o perfume barato. Aos pés da cama, sento-me no maple para ver a velha Henriette, a Henriette Espanhola, desfiar memórias num vídeo contínuo.

Henriette tem o cabelo esticado num rabo de cavalo. A boca é fina, quase severa de tão fina. Irá pelos 70 anos. Ou então está longe disso, e foi só a vida que lhe deu um ar gasto. Desconheço se há uma afinidade etimológica entre gasto e agastado. Mas gostaria que houvesse.

Todas as prostitutas têm um ar agastado com a vida. Uma fúria que o tempo não consegue desvanecer. Que está no ar distante e desinteressado das que nos olham por detrás das montras do Bairro Vermelho.

Amesterdão é a cidade da prostituição. Passear nas ruas do Red Light District é um percurso turístico. O bairro ergueu-se debruçado sobre o porto, escancarado para os marinheiros que procuravam

fun fun fun

depois de meses de alto mar.

(O que procuravam eles?, o que se procura quando se procura uma prostituta?).

Henriette aportou na cidade quando era ainda jovem. Julgavam-na espanhola, mas provinha da Suíça. De uma Suíça esquartejada pelo aprumo e pelo asseio. Seria fácil imaginar uma história para Henriette. Mas a ficção resulta sempre mais pobre que a realidade. Era boa no que fazia, garante ela olhando a câmara, era realmente boa. Fez sucesso e dinheiro, di-lo com o mesmo empenho que outros usam para falar dos negócios que proliferam longe. O dinheiro fácil, abundante e fácil, fê-la prosseguir: «Se não tivesse tanto dinheiro, pararia». Fica provado que não se trata apenas de dinheiro, de cheta. Às vezes, simplesmente, já não é possível parar.

Que vida poderia ter Henriette depois daquela vida? E para que quereria ela desfazer-se daquela vida? Aquela vida quer dizer a vida de meretriz que vende

fun fun fun

como quem vende tabaco e ostras e vinho, também procurados por quem procura o prazer no corpo de uma mulher.

Aquela vida não parece importuná-la mais do que esta importunaria. Para o vídeo, Henriette é uma mulher seca, que não lacrimeja como as porto riquinhas. «O nosso único pecado», pronunciam estas num tom exaltado, de costas voltadas para a câmara, «é vender o corpo para sustentar as nossas famílias». Não recorre à lamúria como outra, que se justifica: «É claro que não queria esta vida para a minha filha».

Porque haveria ela de querer mudar de vida?  

Os casos difíceis seguiam para ela, para a sua casa, cujo reflexo se desenhava no canal. E esses pagam sempre bem. Os bons clientes apreciam a bizarria. Nas Massage Parlour, num tempo em que a prostituição era proibida, usavam-se expressões como Russo (sado-masoquismo), Francês (sexo oral) e Grego (sexo anal) para disfarçar a bizarria. A bizarria corresponde a todas as histórias que já ouvimos sobre bizarria; nada, portanto, de realmente bizarro.  

Há em Henriette uma satisfação indisfarçável quando fala da sua competência. Quando desdenha dos alemães e dos ingleses, «ordinários», quando elogia a afabilidade no trato dos suecos e dos holandeses. Quando diz que nunca foi com japoneses. «Não, não, o meu pai esteve num campo japonês durante a guerra, não, não». Quando recusou alguns cuja cor a repugnava; sem alguma vez dizer, de qualquer modo: «Não vou contigo porque não gosto de ti».

Não gosto de ti é uma coisa que não se diz.

Um cliente, no pedestal do poder, acenando com notas e virilidade, não suportaria ouvir uma prostituta dizer que o não quer, que não gosta dele.

(Que procuram eles? Procuram que gostem deles? Procuram um corpo que faça de conta que gosta deles?)

Esquivou-se sempre aludindo a compromissos inventados na hora, à urgência do cliente com hora marcada, prestes a chegar, já aí. O tempo deixaria de ser livre.

Henriette Espanhola é uma loose woman. Perdida para a honra, que é o que isso quer dizer. Os que procuravam o colo de uma mãe talvez lhe chamassem Sugar. Ou Putain, os que aspergiam arrogância e superioridade. Não parece mesmo nada incomodada com isso. Quem domina quem no confronto prostituta-cliente? Quem cede mais da sua honra no confronto prostituta-cliente?

Daqui a alguns anos Henriette morrerá. Que pessoas acompanharão o seu féretro, que dirão da sua vida? É costume enaltecer a virtude, obnubilar o desvio. Que dizer de uma mulher pecadora? Teria sido ela a estar lá, com aqueles homens? Que parte de si manteria incólume, impenetrável à ameaça do mundo?

Talvez Henriette fosse a menos agastada de todas. Aparentemente a vida não a devastou como às outras.

«Posso ter cem florins de prazer contigo?»

Cem florins correspondem a um período de tempo e a um pedaço de corpo. Correspondem, em última instância, a posse e a satisfação.

À entrada do Historisch Museum passa no vídeo uma imagem que impressiona. Num plano aproximado, as mãos de uma mulher lavam-se uma à outra, sob a água corrente do lavatório. Lavam-se longamente, quase se abraçam. Ambas as mãos sabem porque se lavam assim, cúmplices. Há o desejo vigoroso de apagar, mandar pelo ralo, com a água suja que em breve será dos esgotos, as marcas do que se passou.

O que se passou não foi nada do outro mundo. Um homem e uma mulher copularam. Não se beijaram, não se fundiram. Os papéis estão distribuídos; ela é a prostituta, ele é o cliente. Pode imaginar-se o que se passa entre eles. Não se pode saber o que intimamente pensam e sentem. Ela faz a parte dela; reserva-se o direito de não o desejar, não o querer, não sentir prazer com ele. Ele quer cem florins de prazer, seu prazer, com ela, seu instrumento. Talvez não lhe ocorra o modo como ela esfrega as mãos depois de ele sair. O modo como as mãos de reconciliam, em paz, em casa, uma com a outra. A ferocidade com que se esfregam, esfregam-se muito bem, querendo arrancar e mandar pelo ralo aquela marca.

Que importa?

Diz-se que a prostituição é a mais velha profissão do mundo. Quase sempre se omite que o utilizador é o mais velho utilizador do mundo.

Em Amesterdão, a história da prostituição conta-se em quatro séculos e confunde-se com a história da cidade. O Historisch Museum apresentou esta história chamando-lhe «Love for Sale». O título é bom, na apropriação da canção de Cole Porter. Chico Buarque compôs um tema inequivocamente dedicado às Anas de Amsterdam:

«Sou Ana do dique, das docas

Da compra, da venda, das trocas, das pernas,

Dos Braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das fichas

Sou Ana das loucas

Até amanhã

Sou Ana, da cama

Da cana, fulana, bacana

Sou Ana de Amsterdam (...)

Arrisquei muita braçada

Na esperança de outro mar

Hoje sou carta marcada

Hoje sou jogo de azar

Sou Ana de vinte minutos

Sou Ana da brasa, dos brutos, na coxa

Que apaga charutos

Sou Ana dos dentes rangendo

E dos olhos enxutos

Até amanhã, sou Ana

Das marcas, das macas, das barcas, das pratas

Sou Ana de Amsterdam»

As mulheres que aparecem na exposição, bem como as 20 mil que se crê venderem o corpo na capital holandesa, não exclusivamente nos limites do Bairro Vermelho, são Anas de Amsterdam. O seu amor está à venda. Amor é um eufemismo para designar um pedaço da sua coxa, onde se apagam charutos, no espaço de vinte minutos.

O cartaz da exposição tem uma mulher de perna cruzada, de ventre redondo, que observa a rua a partir da montra onde se exibe. Ao contrário do Red Light District, onde as prostitutas são observadas pelos transeuntes, na exposição os transeuntes são observados pelas prostitutas. «Love for Sale», escreve-se no texto que acompanha a exposição, «mostra o que se passa num mundo onde o sexo é pago». Condensa quatro séculos em pintura, fotografia, vídeos, documentos, recriação de espaços (na mezanine do primeiro andar, logo depois de cortinas de tule branco, quadros de grandes dimensões revelam cenas de sexo explícito. À entrada da exposição há uma indicação que adverte: «Pode escolher não ver»). A informação está exposta em grandes painéis e delimita as fases de aceitação, tolerância, proibição e legalização da prostituição na cidade de Amesterdão. A palavra é dada às prostitutas. Falam das suas motivações, dos seus sentimentos. De medo e de repugância.

É de manhã. Maria tem calçadas galochas e luvas de borracha. Lava o vidro da sua montra, deixando-o a brilhar. «O vidro faz-me sentir segura». Por isso é importante que fique asséptico, que lhe dê a ilusão de um contacto que, mesmo perpetrado, não chega a existir. Porque há um vidro de permeio, mesmo quando o cliente entra, depois de acertado o preço.

Maria conserva parte de uma beleza que deve ter sido efusiva. Antes de a vida lhe ter posto, como um emplastro, a cor macilenta no rosto e a melancolia no olhar. Num dia calmo vai com cinco homens. Num dia bom vai com dez, vai com vinte. A maneira como se lhes dirigem, a coacção que pode sentir no olhar deles, a assertividade que usam na abordagem (as palavras coacção e assertividade foram as que empregou), fragilizam-na sobremaneira. Maria tem o olhar murcho das flores que deixaram de o ser. Anseia pelo momento em que partem para acender um cigarro.    

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2002