Love Letter para Maria de Sousa
Escrevo a ouvir Dido e Eneias de Purcell. Maria assistiu à sua representação, todas as noites, presa à voz de Janet Baker. Foi na Escócia, há muitos anos.
Escrevo uma love letter para Maria, uma carta de amor num quadro de pandemia vírica que a levou. Maria morreu na madrugada de 14. Sabia da probabilidade da morte iminente, sabia como o corpo ia capitular (ou simplesmente dizer: não posso mais), sabia como uma médica e cientista sabe, depois de ter a confirmação de que havia casos de infecção na clínica onde fazia hemodiálise três vezes por semana. Poucos dias antes, já com sintomas, escreveu um poema que é uma despedida — e que é, sobretudo, uma exortação à vida. De uma pessoa que encontra nos dias uma nitidez, um brilho, uma alegria infantil. Que tem uma fome de vida.
Começo pela Escócia e pela música, começo pelo poema que revela a sua coragem e sabedoria, núcleos da vida de Maria.
Esteve para ser pianista. No meio de curso de Medicina impôs-se a escolha, e preteriu o conservatório. “Prevaleceu a importância de dar prazer aos outros.” Uma forma elegante de falar do sentido de dever, daquele Portugal em que uma mulher estuda Medicina. Esteve anos sem tocar. Em Glasgow, jovem investigadora, ouve Janet Baker, uma aparição, outras vozes, e olha pela janela do laboratório.
Vejo devagar essa janela, em duas fotografias, reproduzidas no livro de Maria Meu dito, meu escrito. As galinhas são as mesmas, numa é Inverno e há neve, na outra é Verão. A paisagem é simples: árvores, uma cerca, um casinhoto. As imagens revelam os ciclos da natureza, a rotina de quem vê todos os dias as mesmas ramagens ao fundo, o andar sem tino das galinhas (que comem e mais o quê?), o tempo que pesa de outra maneira quando o vemos à distância de 50 anos. Como escreveu nos seus últimos versos
Momentos então
Eternidades agora
A vida visível daquela janela dá-nos o tempo cronológico da Maria, e tem agora a espessura do tempo histórico, da eternidade. Porque é que Maria quis incluir aquelas fotografias?, o que é que nos estava a dizer?
Neste tempo cronológico em que estou e escrevo, dia 16 de Abril, sinto dificuldade em elaborar um mapa preciso da sua vida. Isto não é um obituário, é uma carta de amor. Mas preciso partilhar com outros o legado, o fulgor de Maria, o privilégio de tê-la conhecido. Porque é que ela fazia tanta diferença.
— E agora, Cláudio, quando quisermos perguntar o que fazer, perguntamos a quem?
— À memória da Maria. E damo-nos descomposturas, para ter a certeza de que ela está viva.
Dar descomposturas (a toda, mas mesmo toda a gente — e daí vem uma fama de ser feroz) era uma forma de gritar: “Não prestes atenção ao que não merece atenção. Observa, interroga, escolhe”. Dito com frontalidade e amor. Estando absolutamente naquele instante e com aquela pessoa, sem dispersões.
(A mim dizia-me: “A impressão que me faz que ande aí num virote. Para quê? Sente-se a escrever”.)
Maria de Sousa nasceu em Outubro de 1939. Pouco antes, o pai, que era piloto da barra, escreveu no diário: “Hoje começou a guerra. Stop”. A escrita diarística, poética, científica, a escrita de cartas, emails, é, para si, um exercício essencial: “Os momentos muito importantes não se podem escoar. Tem de se pôr uma rolha no rio. Tem de se fazer parar o rio, senão aquilo vai tudo. Não temos uma memória infinita e a pessoa não se vai lembrar dos pormenores todos, é impossível. A sensação que tenho é que escrevo, e sobretudo escrevo nalguns momentos, para procurar fazer parar o momento”.
Imagem poética e estranhamente exacta: pôr uma rolha no rio. Estancar o fluir, parar a vida, criar cápsulas, ver no microscópio. Senão aquilo vai tudo, na enxurrada.
Compreender o movimento, o devir, o sentido que as coisas têm esteve na origem da sua célebre descoberta, em 1966. Resumiu-o na primeira entrevista que lhe fiz, em 2014: “As minhas observações demonstravam que os animais timectomizados à nascença ainda tinham linfócitos. E mais, os espaços vazios de linfócitos eram distintos dos espaços onde havia linfócitos, o que significava que as células pareciam saber para onde ir. [...] As do timo iam para o território a que chamámos ‘área dependente do timo’ e que hoje é conhecida por Área T. E achei esse fenómeno de as células saberem para onde vão tão importante que lhe dei um nome: ecotaxis.”
Maria soube sempre para onde ia. Depois do Reino Unido, foi para Nova Iorque. O seu contributo para a ciência foi notável, fez escola, deixou discípulos. Tenho a impressão de que isso era, para ela, o mais importante: a relação com os alunos, a procura do saber, interrogar o que não se sabe. Menos a glória pública, que também teve. Era imensamente discreta. Tinha, por isso, uma relação ambígua com o livro Um mundo imaginado, de que foi protagonista e que inspirou gerações de jovens cientistas em todo o mundo. A autora, June Goodfield, acompanhou durante anos Anna Brito (a Maria Ângela Brito de Sousa), e registou o processo de investigação, a dedicação absoluta, a dinâmica das equipas — aquele estar no mundo.
Quando regressou a Portugal, os amigos achavam que estava maluca, porque ia trocar Nova Iorque pelo Porto. Durante quatro anos, preparou a transição, e assistiu ao florescer faseado das flores: mais cedo no Porto, mais tarde em Boston e em Nova Iorque.
Maria amava as flores.
— Flores por perto. Keep blossom.
Wear your tribulation like a rose: verso-essência de Auden, o poeta preferido. Veste a tua tribulação como uma rosa. Talvez isto queira dizer: a poesia e a ciência como formas de procura, tentativa de descortinar as regras do desconhecido, com delicadeza e urgência. A poesia como aquele lugar onde as palavras parecem saber para onde ir. Como as células do timo.
Na conversa de uma semana que resultou no livro Este ser e não ser — cinco conversas com Maria de Sousa (feito para assinalar os 50 anos da sua descoberta e distribuído na comunidade científica), começámos por falar das rosas do jardim: de como teriam sobrevivido à intempérie da noite passada. Tão desprotegidas. Maria lembrou que têm espinhos, pétalas, que ferem e deslumbram. E juntas compreendemos que o aroma da rosa não se vê numa TAC, não se isola no microscópio. Não quer dizer que não exista, que não se sinta, que não opere milagres. O riso de Maria, expressão daquele gozo de estar viva e fazer coisas, não aparecia numa TAC. Mas aparece agora cada vez mais. É aquilo que nós, amigos da Maria, cúmplices de uma viagem, pessoas que foram tocadas pela sua presença, mais ouvimos. Ouviremos o riso, teremos a lembrança, saberemos que é isso que no-la devolve à esfera da vida. A sua presença está nisto. Escreveu-o num último poema, em inglês, que era uma outra língua materna, e que teve tradução do poeta e médico, e aluno da Maria, João Luís Barreto Guimarães.
Porque posso morrer e vós tereis de viver
Na vossa vida a esperança da minha duração.
Os últimos dois anos e meio de Maria de Sousa foram uma Primavera inesperada. Foi mesmo um florescimento, quando podia ser um definhar árido e doloroso. Uma insuficiência renal obrigou-a, a partir de Dezembro de 2017, a fazer hemodiálise três vezes por semana. Nos restantes quatro dias, continuou a trabalhar, a estudar, a acompanhar alunos e investigadores. Manteve-se igual a si própria: lúcida, corajosa, combativa. Com alegria na vida. Apesar do enorme esforço físico que isso representava.
Nos últimos meses, voltou a escrever poesia, em inglês. O poema-despedida não é uma peça isolada. Foi escrito no dia 3 de Abril, antes mesmo de fazer o teste que confirmaria que estava infectada com Covid 19. O teste foi feito no dia 6, no dia 7 à noite foi internada no Hospital Curry Cabral, e depois transferida para os cuidados intensivos do São José, onde morreu na madrugada de 14.
Os dias anteriores ao teste foram de enorme apreensão: tinha sintomas. E exasperava-se com o funcionamento da clínica NephroCare no Restelo, onde era paciente. Numa das muitas conversas telefónicas que tivemos já em isolamento, repetiu-me as palavras que usou para manifestar a discordância (e mesmo indignação) pela não-observância de alguns cuidados: "Falo consigo [directora da clínica] não como utente, mas como sua colega, como médica e cientista. Isto não faz sentido". E queixou-se-me do frio. Disse o mesmo ao médico e amigo Hélder Araújo, a outros amigos.
Esteve desde sempre consciente do perigo. "Se alguém na clínica estiver infectado, vamos todos num instante." Foram duas semanas, no seu caso, entre o início da sintomatologia e o fim. Alegadamente, foi infectada na clínica. Um bombeiro confirmou-lhe que havia várias pessoas infectadas. A sua cuidadora, Aurora, passou a dormir em sua casa. Feito o teste no mesmo dia, o resultado foi negativo. Segundo uma notícia da RTP, a clínica abriu um inquérito para apurar responsabilidades. Aguardo, aguardamos.
A notícia da morte de Maria deixou muitos, muitos numa tristeza profunda. Na impossibilidade de nos despedirmos dela, fizemos (cerca de 150) um velório por Zoom. Deixou-nos mais apaziguados, porque foi uma forma de velar e chorar a nossa amiga. Espero não perder o que me ensinou. Entre essas coisas, está a faculdade e a disponibilidade para encontrar a beleza; por exemplo, nem há um mês, numa das sessões de hemodiálise, ouviu um programa de Martim Sousa Tavares na Antena 2 e ficou a pensar na pergunta que aí era feita: porque é que a voz humana não chega?, como é que se passa para os outros instrumentos?
Publicado originalmente no Jornal de Letras em Abril de 2020