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Anabela Mota Ribeiro

Luís Fernando Veríssimo

12.11.16

Luís Fernando Veríssimo é o autor mais popular no universo da língua portuguesa. Vendeu mais de cinco milhões de livros. Goza de uma reputação única – por causa do humor, da ironia, da faca afiada sobre a sociedade brasileira, sobre o mundo. Por causa da qualidade. Mestre da crónica, de prosa curta e enxuta, publicou mais de sessenta títulos (entre romances, contos, banda desenhada, colectâneas). Nasceu em Porto Alegre, em 1936, é filho do escritor-referência Érico Veríssimo. Esteve no Folio, o festival literário de Óbidos, em Outubro, onde participou numa mesa com Nuno Artur Silva e Ricardo Araújo Pereira. Foi então que o Gato disse que todos devíamos comer Veríssimo!

  

“Aquele Estranho Dia que Nunca Chega” é o título de um dos seus livros. Estamos esperando Godot, o Messias, a paz, o dinheiro? O que é que pode “animar a malta, [que] é o que faz falta”, como canta Zeca Afonso?

O mundo eu não sei, mas no Brasil a gente espera, há anos, que chegue o tal futuro do país do futuro. O descompasso entre as nossas expectativas e a nossa realidade só aumenta com o tempo.

 

Os começos de século, com as suas transições, são sempre períodos de redefinição das placas tectónicas do mundo. Turbulência, mais ou menos gravosa, é palavra obrigatória por estes dias. Vamos ficar como?, dar onde?

Nos aviões, avisam quando estamos passando por uma zona de turbulência e nos mandam apertar os cintos. Acho que não há mais nada a fazer a não ser apertar os cintos e esperar que passe a turbulência.

 

Que homem é este, cheio de medo, que está nascendo e crescendo no século XXI?

É como no poema do Yeats: “Que monstro, sua hora finalmente chegada, se arrasta na direção de Belém para nascer?” Esperemos que o monstro nos poupe.

 

Acho que estou a perguntar pelos medos. São a causa escondida do comportamento do homem? O que é que nos faz avançar, ter ímpeto?

Ao contrário do que diz a poesia, só viver é absolutamente necessário. Navegar é uma opção.

 

Um dos seus personagens mais famosos é um analista freudiano. O que é que ele foi encontrando no porão do ser humano? Se achar melhor, pode apertar a objectiva e apontar para o Brasil.

O analista de Bagé, cidade do Rio Grande do Sul que fica perto da fronteira com o Uruguai e que tem fama de ser terra de machos, acha que não há nenhuma aflição humana que um bom joelhaço não resolva. Nada pode ser pior do que um joelhaço certeiro, segundo o Analista.

 

Todas as infâncias têm um gato sarnento debaixo da cama?, uma noite desamparada?, uma mãe severa e asfixiante?, um pai omnipotente? O que pode contar de si e de como isso formou a pessoa que é? A sua timidez vem de onde? E a língua afiada?

Tive uma infância normal, muito feliz, sem traumas que deixassem marcas. A timidez não sei de onde vem, mas já foi muito pior. A lingua afiada, não sei se tenho. Uso mais a ironia, que geralmente não é cortante.

 

Quando é que a escrita foi o instrumento encontrado para expressar a sua personalidade e opinião? Podia ser fiscal das finanças, líder empresarial, médico do coração, menino que vende laranjas? Porque é que, bem vistas as coisas, é quem é e faz o que faz?

Comecei a escrever tarde, com mais de 30 anos. Fora algumas traduções do inglês, nunca tinha escrito nada, e não tinha a menor intenção de ser escritor, muito menos jornalista. Não tinha diploma de nada e fiz várias coisas que não deram certo até começar a trabalhar em jornal, onde fazia de tudo, até o horóscopo. Quando, eventualmente, me deram um espaço assinado no jornal e comecei a fazer crónicas, descobri, um pouco tardiamente, minha vocação.

 

O seu detective particular Ed Mort é só uma maneira de falar da sua paixão pelo filme noir? É um eco da sua vida dos Estados Unidos? Aqui tivemos o detective Dennis McShade do escritor Dinis Machado: bebia leite porque tinha uma úlcera e citava Rimbaud. O que é tão fascinante nestes personagens e ambientes?

O Ed Mort é uma paródia do típico herói noir da literatura e do cinema americanos. Tem, sim, muito a ver com o meu contacto, desde garoto, com a cultura popular dos Estados Unidos. Acho que o herói noir é uma versão moderna do cavaleiro andante da literatura medieval, com seu próprio código de honra, campeando sua superioridade moral num mundo corrupto.

 

O seu detective tem modos grosseiros? O que lhe interessou foi a subversão?

Minha intenção foi a paródia literária. O Ed Mort tem todas as características do herói americano, menos a invencibilidade. Jamais resolve um caso, quando é pago é com cheques sem fundo e nunca fica com a loira. Enfim, uma versão subdesenvlvida, brasileira.

 

Mort de Morte? Esse é que é, sempre, o grande tema? Tem medo da morte?

A morte é a última coisa que eu quero que me aconteça.

 

Que pensa uma pessoa que vai para os 80? Lembro-me daquela passagem do “Brás Cubas” de Machado de Assis: uma coisa é ouvir falar da morte de César ou de Sócrates, outra coisa é a morte de uma pessoa amada. Outra ainda é a pessoa pensar a sua própria morte.

Pois é. A gente se distrai e quando vê está com 80 anos. Há algo de errado, aí, em algum lugar. Procuro não pensar na morte, na esperança de que ela também me esqueça.

 

O que é ser livre? É ter o que comer?, é poder expressar opinião?, é ser feliz?, é não ter medo da morte?, é ter a certeza do amor?

Existe o ser livre “para” e o ser livre “de”. O ser livre para pensar e dizer o que se quiser e pegar um avião para Paris quando der saudade do arenque do Chez George, e o ser livre da fome, da miséria, de ter nascido no lugar errado na hora errada. A palavra “liberdade”, sozinha, não quer dizer nada.  

 

A sua persona pública é um bloco enxuto, sem falhas ou raízes à mostra. Onde fica o seu continente obscuro? Que sabe dele? Freud é uma constante nos seus títulos e prosas. Fez psicanálise? O que aprendeu, mais do que tudo?Esse olhar psicanalítico atravessa os seus textos e o modo como observa a sociedade?

Gosto muito daquela frase “conheça-se a si mesmo, mas não fique íntimo”. Não quero intimidades comigo mesmo. Quanto à psicanálise, concordo cm o analista de Bagé, que a considera uma frescura, embora possa ajudar algumas pessoas.

 

Outra personagem sua: a Velhinha de Taubaté, “a única pessoa que ainda acredita no governo”. Ela é antiga, mas faz novamente todo o sentido, nessa época em que ninguém confia em ninguém?

É, no Brasil, hoje, quase ninguem acredita no governo. O consolo é que essa desconfiança de política e políticos parece ser um fenómeno mundial.

 

Tem escrito sobre o ódio. O ódio ao PT, o ódio a Dilma, o ódio aos políticos, o ódio ao sistema. O ódio é o mais poderoso dos motores?

Acho que nunca tivemos nada parecido, no Brasil, em matéria de ódio e intolerância entre extremos, como agora. Culpa, em grande parte, do próprio PT e dos seus escândalos de corrupção, mas também de uma radicalização que se aproxima perigosamente de uma clássica guerra de classes.

 

Como restabelecer a confiança, então? Ou esta é uma pergunta ingénua..., e a gente vai levando, enquanto isso?

Eu sou um dos ingénuos que ainda acreditam no poder de auto-regeneração da democracia. Com o uso continuado, ela acaba funcionando.

 

Pode ser que o Brasil rebente depois da olimpíadas. Mas e até lá?, como lidar com a ebulição social e económica?

Não tenho a menor idéia. Mas não vamos desesperar. O tal jeitinho brasileiro está desmoralizado, mas talvez apareça um jeitão.

 

Aconteça o que acontecer, 20 milhões de brasileiros saíram da pobreza nos anos Lula. Não é um acontecimento menor, pois não? Era inevitável que a factura aparecesse agora?

O índice de mortalidade infantil no Brasil caiu dramaticamente nos anos Lula. Pra mim, isto redime qualquer governo. E tem-se a impressão que o que despertou o ódio da direita foi o sucesso do PT na área social e não seus pecados éticos.

 

Uma parte dos seus anos de formação, foram passados nos Estados Unidos, onde o seu pai leccionou. Como é que funciona a cabeça de uma criança americana? Mais disciplinada?, mais voltada para o espaço social, mais auto-confiante?

Eu tinha sete anos na primeira vez em que fomos para os Estados Unidos, em 1943. Não tinha condições de fazer qualquer observação sociológica aproveitável. Estava muito ocupado matando alemães e japoneses nos meus briquedos solitários, influenciado pelo clima da Segunda Guerra Mundial. Quando fomos pela segunda vez, eu tinha 17 anos e convivi com a juventude americana, mas numa época pre-revolução sexual, pre-tudo.

 

Esse aspecto é sempre mencionado na sua biografia. Foi importante mesmo?, e porquê? Ou é elemento “exótico”?

Minha primeira escola foi americana. Praticamente me alfabetizei em inglês. Depois, na adolescência, comecei a me interessar por política acompanhando a política americana. Era a época da Guerra Fria, do macartismo, etc. Esta experiência me influenciou, obviamente. Hoje tem até gente que diz que eu escrevo em inglês traduzido.

 

O seu gosto pelo jazz é associado aos Estados Unidos. Lembrei-me de um músico brasileiro que fez carreira no circuito de jazz norte-americano: Moacir Santos. Gosta muito ou assim assim?

Já fui mais fanático pelo jazz. Hoje estou muito desinformado. Sempre digo que só confio em jazzista que esteja morto há pelo menos 20 anos. Moacir Santos foi um grande músico. Você sabia que ele lançava discos no Brasil com a alcunha de Bob Fleming porque só com nome americano seria ouvido pelo público brasileiro?

 

Não, sabia, não. Um grande músico português, José Mário Branco, escreveu nos anos 70, no pós-revolução dos cravos, que “a cantiga é uma arma contra a burguesia”. E o humor, também?

Não sei se o humor é arma. Se for, é arma de autodefesa.

 

O humor é para si um músculo muito treinado? Ou faz graça por dá cá aquela palha? (Expressão portuguesa antiga e popular que designa a facilidade extrema.)

Não sou um humorista espontâneo. Para contar uma piada sou um fracasso. Meu humor, se existe, é mais uma questão de técnica, produto de leituras e influências, do que de vocação.

 

Vendeu milhões de livros, tem muito sucesso desde muito cedo. E agora, isso fá-lo feliz?

Não tive sucesso desde muito cedo. Comecei tarde, e meus livros só começaram a vender, alguns mais e outros menos, a partir de “O analisa de Bagé”. Claro que gosto disto. É o que paga o uísque das crianças.

 

Sobre que é que gosta de escrever? Ou seja, se não tivesse obrigações com jornais, dinheiro para ganhar, et cetera e tal, e tendo já escrito sobre tudo, escolhia o quê?

Com toda a sinceridade, escolheria não fazer nada. Minha real vocação é para aposentado.

 

Quando faz quadrinhos, é um menino de cinco anos?

Sou, um pouco. Os desenhos são sempre infantis, as ideias às vezes são adultas.

 

Quando é que a sua vida não teve um grande enredo, não foi um grande livro?

O pior de se pensar na vida como um livro é que a gente sabe como o nosso livro acaba. Acaba mal. Acaba com a gente na horizontal, como na música do Billy Blanco.

 

Agostinho da Silva disse que “o brasileiro é o português à solta”. Como é, aos seus olhos, o português? Sei que peço uma generalidade, mas se tiver resposta...

A lingua falada no Brasil e na Africa é o português de Portugal com mais espaço, está certo. Adoro Portugal e os portugueses, a começar pela sua fala sem consoantes. E os pastéis de nata, claro.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Dezembro de 2015