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Anabela Mota Ribeiro

Luís Mira Amaral

21.02.14

Quem é Luís Mira Amaral? É um homem diferente daquele que era quando foi ministro de Cavaco. Dez anos da vida dele. Mais os dez em que ajudou o PSD. Vinte anos, tudo somado. Um homem aos 60 é forçosamente diferente de um homem que é ministro antes dos 40. Mas foi tarde que ele sentiu a facada nas costas, e não aos 40, quando a vida de ministro e todas as outras eram possíveis. Luís Mira Amaral tinha em si todos os sonhos do mundo. Não se pode, a propósito dele, parafrasear Pessoa no começo da Tabacaria: Não sou nada, nunca serei nada… Ele não era menos do que os outros, inferior aos outros – a certeza disto é dele.

Alô, alô PSD: não contem mais com ele. Para o caso de não saberem, Mira Amaral está zangado. Este intróito funciona apenas como teaser de capítulos suculentos. Mira Amaral decide abrir o livro sobre o cavaquistão, de que foi o carregador do piano – a definição também é dele.

Está muito satisfeito na sua nova vida de “o nosso homem em Angola”. Estando em Lisboa. É o presidente do BIC. Novo fôlego quando já não estava à espera que grandes coisas lhe acontecessem.

Gravação de uma hora e meia com mais palavras a serem debitadas por segundo do que é imaginável. Sílabas atropeladas, o que se sabe, se nos lembrarmos dele na televisão. Amável. Num e-mail posterior à entrevista, realizada no meio de Dezembro, recordou o tom despreocupado da primeira parte – vida curiosa, a deste rapaz de Lisboa. Pediu que incluísse “uma nota de extrema preocupação com a actual situação do país, na linha, aliás, das minhas recentes intervenções públicas. Também lhe pedia uma referência ao facto de, chegado aos 65 anos, já não ter quaisquer ambições. O único investimento que ainda tenho a fazer é no futuro profissional da minha filha de 20 anos, com um MBA no estrangeiro numa das melhores escolas”. Fica dito.

 

 

Se era para ser um homem de negócios, porque é que foi estudar engenharia?

Hesitei entre o Técnico e o então Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, actual ISEF. Fui para a situação mais cómoda. A casa dos pais era em frente à igreja de Arroios, a cinco minutos do Técnico, ao passo que o Quelhas era mais longe. No primeiro ciclo e liceu andei sempre na chamada boa-vai-ela, entre a Praça de Londres e [a avenida] Estados Unidos da América, entre o café Roma e a [pastelaria] Suprema. Era um dos meninos das Avenidas Novas. O meu grupo de amigos era o dos aceleras da Praça de Londres. Foi tudo para o Técnico, e fui na onda com eles. Em todo o caso, quando no Técnico perguntavam o que é que queria ser na vida, dizia que queria ser presidente de conselho de administração [riso]. Mostra a minha inclinação.

 

Não só a inclinação, revela a sua ambição. Não queria ser o director de serviços, queria ser o homem que manda.

Sejamos claros, sou caracterizado pela franqueza: queria ser um líder empresarial. Achava que andava numa escola de elite. Tinha consciência de que depois do Técnico ia fazer uma formação complementar em Economia e Gestão. Em casa tinha um pai que tinha feito os preparatórios de matemática em Coimbra. Dizia: “O teu irmão vai ser engenheiro mecânico e vai ser um excelente gestor industrial, tu vais ser o homem do planeamento”.

 

A verdade é que os dois são aquilo que o vosso pai disse que iam ser.

O meu pai teve esse feeling. Acabei o curso, andei dois anos com uma vida fabulosa, a ganhar um ordenado fabuloso, 13 contos e 500 por mês, tinha um Renault R8 Gordini, um carro fabuloso, com que me passeava entre Lisboa e Cascais com os meus amigos e amigas. Vivia em casa dos meus pais mas tinha um apartamento em Cascais. Depois fui para a tropa.

 

Diz que o seu pai teve um feeling do que cada um dos filhos podia ser. A questão pode ser vista de outra maneira: ele formou-os para serem o que ele queria que fossem.

Acho que não. Ambos perceberam que tínhamos mentalidades e aptidões diferentes. O meu irmão é um tipo fabuloso como engenheiro mecânico. Desmontava o automóvel e a mota, às vezes sobravam peças mas ele sabia pegar naquilo tudo. Eu não tinha paciência para esse trabalho de mãos, fabril. Hoje é administrador do grupo Queiroz Pereira.

 

O que é que ainda existe desse menino e disso que estava lá de modo embrionário?

No liceu fui um tipo muito certinho. Os pais levavam-me ao Liceu Camões. O reitor, Joaquim Sérvulo Correia, dava uma disciplina férrea. Só podíamos falar com as meninas, alunas, a 500 metros do liceu. Eu era um tipo tímido, até com as raparigas.

 

Porque é que era tímido?

Por feitio. Talvez me faltasse alguma confiança com o sexo oposto.

 

Porque não era bonito? Na adolescência estas coisas importam.

Não pensava nisso na altura. Só percebi, desculpe a imodéstia, quando algumas miúdas ou mulheres me disseram que era um homem bonito ou atraente. Por mim, não reconhecia isso. Eu era um tipo muito trabalhador e muito bom aluno, ao contrário do irmão, que era mais cábula. Os pais: qualquer dos dois quis fazer um curso superior e não o acabou. Canalizaram para mim a ambição de ter o primeiro filho licenciado.

Não me distraía com coisas secundárias, tinha objectivos claros. Quando havia miúdas ou automóveis, aparecia para conviver. Não andava com os melhores alunos do Técnico, andava com os borgas, na coboiada. Quando não havia miúdas nem automóveis, ia para casa estudar, e eles iam jogar cartas, perder tempo estupidamente.

 

Foi um muito bom aluno?

Conseguia ter as melhores notas. Já notavam em mim uma ambição.

 

De onde vem essa ambição?

É natural. Achei desde novo que tinha algumas qualidades intelectuais, que podia liderar outros.

 

Liderar outros, ser um líder, sempre foi um fito?

O meu fito era ter qualidade de vida, viver bem.

 

Como é que se vivia em sua casa? Qual era o quadro dos seus pais?

O meu pai fez os preparatórios para a Faculdade de Ciências, para entrar para a Academia Militar. Depois, tinha uma pequena deficiência cardíaca e não o deixaram entrar. Foi jogador da Académica de Coimbra. Veio para Lisboa e entrou para o Ministério das Finanças, onde esteve a vida toda como funcionário. A mãe fez o 7º ano do liceu em Beja; o meu avô não a deixou vir para Lisboa fazer um curso superior. O meu pai conheceu a minha mãe quando foi, como alferes miliciano, para Beja, fazer a tropa. Era funcionária dos CTT, onde esteve 20 anos. O regime salazarista não a deixava chegar a funções de chefia.

 

Por ser mulher?

Exactamente. Quando entra o Marcelo Caetano abre um concurso internacional e a senhora foi das primeiras a atingir lugares de chefia. Pertencia a uma pequena, média burguesia. Não tinham dinheiro para me dar Ferraris, nunca me faltou nada, nem a mim nem ao irmão.

 

Como é que germina em si o desejo de subir na vida, de ser o presidente do conselho de administração? Quem era o presidente do conselho de administração que conhecia, ou de ver na televisão, ou de ler nos jornais, que pudesse servir de referência?

Havia o meu professor de electrónica, Carvalho Fernandes, que era presidente da Standard Eléctrica. Havia outro, que foi meu professor de Economia no Técnico, o Prof. Daniel Barbosa, presidente do Banco de Fomento.  

 

Que sinais via neles?

A boa posição na vida. Uma posição – ou numa empresa de electricidade ou num banco, coisas de que intelectual e profissionalmente gostava. Havia um misto de gostar do que eles faziam e do status social, ao qual, como burguês inveterado, sou sensível. A questão de um jovem que andava a pedir o carro emprestado ao pai de vez em quando, mas que não tinha carro próprio, e que via tipos chegarem ao Técnico de chofer, num bruto Mercedes. Depois, outra coisa com imensa piada: um ministro do Dr. Salazar, o Dr. Correia de Oliveira, foi dos primeiros tipos em Lisboa a ter um Porsche, um 911. Eu ia fazer umas ceias ao Gambrinus…

 

Como é que ia fazer umas ceias ao Gambrinus enquanto estudante?

Não tinha dinheiro para jantar, mas a ceia era uma sandes de carne assada e uma cerveja, ao balcão. E para isso, a mesada chegava. E quem é que via sair do Gambrinus, de jantar? O Dr. Correia de Oliveira, ministro de Salazar, de Porsche, ao lado do motorista. Achava um desperdício o tipo andar de Porsche com o motorista a guiar! Foi das únicas vezes na vida em que me senti socialista, achei que a riqueza estava mal distribuída [riso]. Todo esse status, do automóvel, do chofer, eu, francamente, gostava.

 

O que é que o carro representa para si? Já falou inúmeras vezes de carros, e sei que tem uma paixão por carros.

Primeiro, é um bem utilitário, para a gente não andar a pé, para ser mais cómodo. Segundo, é o prazer de conduzir.

 

De que é que gosta, que é que lhe dá esse frisson?

A adrenalina que a gente sente ao entrar muito rápido numa curva. Sentir a meter a mudança, a travagem no momento exacto, controlar o carro na curva e sentir o risco de bater. O barulho do motor, para mim é uma sinfonia. O terceiro aspecto, que não é despiciendo: a estética do carro. No meu grupo da Pastelaria Roma, a um Fiat, um Opel, chamava-se um carrito. Aos carros de que a gente gostava dávamos um título feminino: era a “Porscheta”, a “Alfeta”, a Ferrari. Havia aqui um conteúdo afectivo.

 

Não é afectivo, é sexual.

Está bem. Mas é o lado afectivo da vida.

 

Era um objecto de desejo, tal como as mulheres eram um objecto de desejo.

Exactamente.

 

Não sendo eu entendida nos carros que tem, tem uma “Porscheta”, uma “Alfeta”, uma Ferrari?

Posso dizer-lhe o que é que comprei. Estava no Governo quando um jornalista d’ A Capital me perguntou numa entrevista de verão: “O que é que quer ter para este verão?”, “Um Porsche e um iate na marina de Vilamoura”. Isto deu primeira página d’ A Capital: “Ministro quer um Porsche”. Acho que o Prof. Cavaco Silva não gostou nada. Ele nessas coisas tinha uns tiques salazaristas, não gostava destes sinais. Quando disse isto comparei-me com o Dr. Correia de Oliveira, pensei que o Dr. Salazar também não devia gostar de ver o Dr. Correia de Oliveira a andar de Porsche.

Depois de sair do Governo, quando regressei à banca, com a remuneração variável do ano no BPI, que o Dr. [Artur] Santos Silva me deu, comprei um Porsche.

 

O seu primeiro brinquedo foi já depois de ter sido ministro?

Saí do Governo sem um tostão, mal tinha dinheiro para pagar a casa. Ganhava 620 contos líquidos.

 

São 3000 e tal euros, não há uma grande diferença em relação aos ordenados de um ministro de agora.

Não há, não. Comprei um Porsche lindo, azul-escuro, estofos bege. Foi a concretização de um sonho. Se não me tivesse distraído nos anos que andei no Governo tinha-o tido mais cedo. Consegui-o aos 55 anos. Depois até mostrei o carro ao Dr. Santos Silva: “Foi a sua variável que me permitiu comprar isto”, e ele disse que o carro era muito bonito.

Mas tenho um MGB descapotável, um clássico de 1973 que comprei em segunda mão. Quando passeio com ele em Cascais os ingleses param. Os meus carros são esses dois.

 

Na sua infância brincou com Dinky Toys? Quais eram os carros com que brincava?

Havia os Dinky Toys e já tentava comprar modelos que fossem Porsche, Ferrari, Maserati, Alfa Romeu. Organizávamos corridas nos passeios do Liceu Camões, corriam uns Dinky Toys contra os outros. Em casa, com o irmão, eu desenhava os volantes dos automóveis, e ele, em papel prensado forte, cortava e construía. A casa tinha um corredor enorme, passávamos um pelo outro a guiar com os volantes de papel.

 

Quem é que lhe deu a confiança em si mesmo para perceber que tudo estava ao seu alcance?

O facto de ter excelentes notas quer no liceu, quer no Técnico. A melhor nota que tive no 5º ano do liceu, actual 9º ano, foi a História, não foi a Matemática nem a Física. O que mostrava que gostava também do conteúdo social, político e económico das coisas. E outra coisa que costumo dizer a alguns amigos de esquerda: sempre tive uma grande preocupação social. Em miúdo, vivemos uma época em Beja, e perguntei à minha mãe: “Porque é que andam ali uns meninos sem sapatos e eu tenho sapatos?”.

 

Para mantermos a terminologia do automóvel: alguma vez se estampou na escola? Teve algum período estroina em que se descentrou daquilo que tinha decidido que a sua vida ia ser?

Não. Quando comecei na estroinice já andava no terceiro ciclo do liceu, a base era sólida.

 

O seu irmão era mais estroina?

Na altura era tímido, ele era muito mais extrovertido. Curiosamente, com a evolução dos anos, se calhar devido à vida social e à política, fiquei mais extrovertido do que ele. Ultrapassei-o, ele é mais reservado.

 

Competiam? Ou sempre amigos?

Tivemos grandes guerras entre os dois. E andámos à chapada e à lambada.

 

As turras eram pela disputa da atenção dos pais?

Sim, ciúmes desses, de miúdos. Ele fez uma coisa... Caí num tanque de lavagem de roupa. Ele, com três anos, foi à sala onde estava a família reunida; sem conseguir falar, puxou os pais para os levar até ao tanque. Teria morrido afogado se não fosse ele.

 

Porque é que se comove a falar disso?

Se estou vivo devo-o a ele. Depois, houve todo um percurso comum até eu entrar para o Governo.

 

Nessa altura deixaram de se dar?

Não deixámos, mas ele achou que eu me tinha tornado uma figura pública. Achou que eu já não era só o engenheiro que até aí tinha sido com ele. Devo dizer, a guiar automóveis é muito melhor do que eu.

 

Ele sentiu orgulho em si?

Felicitou-me vivamente. Quando entrei para o Governo, foi o pai que ficou de mãos na cabeça.

 

Porquê?

Ele foi funcionário das Finanças do Dr. Salazar. Um tipo só chegava a ministro aos 60 anos. Ver um filho com 39 anos chegar a ministro…, achou que o mundo estava perdido [riso].

 

Onde começa a ambição política?

No liceu nunca tive ambição política. Quando estava na tropa, em Nampula, (apanhei quatro anos de tropa, entrei aos 25 e saí aos 29, sou de uma geração sacrificada…), apareceu um jornal, o Expresso, que foi uma referência para mim. Tive este raciocínio: “Não sou de esquerda, nunca me revi nos tipos contestativo-associativos, mas também não me revejo neste regime que sempre me cheirou a bolas de naftalina. Com esta guerra colonial que está condenada, não vamos a lado nenhum. Não vou alinhar com socialistas nem comunistas. A Ala Liberal, com o Francisco Sá Carneiro e o Expresso, é a minha gente. Estes são os tipos em que me revejo politicamente”.

 

O Expresso seguia para Nampula?

Seguia. Eles nem queriam que assinasse, aquilo era perigoso e subversivo. Tive ambição de ser ministro quando ele [Francisco Sá Carneiro] ganha as eleições, torna-se primeiro-ministro do Governo AD, e é o Eng. Álvaro Barreto ministro da Indústria. Pensei que gostaria de ser ministro da Indústria do Dr. Sá Carneiro.

 

Porque é que não era de esquerda? O que é que o desgostava quando olhava para as movimentações da esquerda contestatária?

Achava, com algum espírito económico que tinha – não tinha a formação, mas o bom senso – que aquelas teorias eram máquinas de criar pobreza. Não havia uma óptica de criação de riqueza, era mais um objectivo igualitário de distribuição. Como era um regime de direita autoritário, a luta contra o capitalismo confundia-se com a luta contra o regime do Dr. Salazar. Mas já na altura sabia distinguir. O meu objectivo era viver num país como a França, a Alemanha ou a Inglaterra, uma grande economia de mercado, com uma democracia económica e social, com um poder de compra e uma vida decente para nós.

 

Os esquerdistas do Técnico não apareciam de Porscheta na faculdade e esses sinais de consumo era uma coisa que abominavam.

Uma coisa que sempre lhes disse, e afrontei-os às vezes: “Tenho preocupações sociais mas o meu modelo para chegar lá é diferente do vosso. Vocês querem ir pela distribuição da pobreza, eu acho que primeiro é preciso criar riqueza”. Depois aceito que o Estado intervenha para redistribuir, entre os que ganham mais e os que ganham menos, senão o sistema não é sustentável. Achava que os regimes comunistas em que se reviam eram um total bluff. Não sendo filho de um grande capitalista, tinha essa costela burguesa. Já ia para o Técnico a vestir bem, não ia de jeans rotos e camisolões. Hoje, como professor do Técnico, transpus isto para os meus alunos.

 

Não os deixa aparecer de camisolão e de jeans rotos?

Podem aparecer como querem, só que eles distinguem-me um bocado porque acham que sou dos tipos mais bem vestidos [riso].

 

Sempre gostou de vestir bem.

Sempre gostei de bons restaurantes, bons hotéis, vestir bem, bons automóveis. Digo-o à vontade porque o que tenho obtido é à custa do meu trabalho. Não herdei fortuna nenhuma, por todos os sítios onde tenho passado ninguém me chama incompetente, preguiçoso ou vigarista. Posso dizer com todo o à vontade como disse no Prós e Contras ao Carvalho da Silva: “Trabalho tanto ou mais que vocês, com uma única diferença: gosto dos sinais exteriores da burguesia”.

 

De riqueza.

Não diria de riqueza. Qualidade de vida. Não ando em iates nem em aviões executivos.

 

Estamos a discutir o grau de riqueza.

Para mim os sinais exteriores de riqueza são esses.

 

Quando é que passou a desejar ser rico?

Nunca pensei. Se alguma vez pensasse ser rico não tinha estado no Governo dez anos. Ao fim de pouco tempo de estar no Governo tive propostas para o sector privado a ganhar balúrdios, e não fui. O meu objectivo de vida sempre foi ganhar bem para poder viver bem.

Quando me aconteceu a história [da reforma] na Caixa, fui insultado e enxovalhado de forma vergonhosa no país. A minha filha era aluna no Colégio São João de Brito, e a professora de português, que não sabia que ela era minha filha, falou de um texto, não sei se do Gil Vicente, de um tipo que só tinha ambição de ganhar dinheiro; diz: “Esse tipo é o Mira Amaral”. A miúda sai da sala a chorar copiosamente. Era um insulto que estavam a fazer ao pai. Está a ver quão injusto era isto? Ganhava bem, mas se tivesse a ambição de ser rico nunca tinha aturado o Governo nem o sector público, tinha-me estado nas tintas.

Isto para lhe dizer que a minha ambição foi trabalhar com o Dr. Sá Carneiro. Como é que entro para o Governo? Nem tem nada a ver com o PSD. Depois de vir da tropa consegui matricular-me na Universidade Nova, no mestrado em Economia.

 

Isso em 1982, depois foi mestre em Economia.

Exacto. Tive professores de referência, Miguel Beleza, Manuel Pinto Barbosa, Manuel Sebastião, Abel Mateus, Diogo Lucena. Defendi tese com “muito bom”. Depois fiz cursos executivos de gestão.

 

Qual dessas pessoas que conheceu durante o mestrado foi fundamental para fazer a ligação com o cavaquismo e com o Governo?

Miguel Beleza.

 

Mais novo.

Mais novo do que eu, sim. O Luís Miguel Beleza era da geração do Diogo Lucena, que foi meu aluno no Técnico, e que depois foi meu professor de Economia. O Diogo Lucena, o António Guterres (o aluno mais brilhante que tive), o José Tribolet. Fui dos melhores alunos do Miguel Beleza, pedi-lhe para ser assistente dele, para consolidar, dando aulas aos miúdos, aquilo que tinha aprendido. E aí, a irmã Leonor andava aflita com o deficit da Segurança Social. “Vê lá se me arranjas um tipo para gestor financeiro da Segurança Social”. Estava na altura no Banco de Fomento. Ela convidou-me, estive dois anos como presidente do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.

 

Foi a primeira vez que esteve num organismo público e politizado?

Mas como vê não teve nada a ver com o PSD, foi a minha ligação universitária. Aprendi sobre finanças públicas, orçamento de Estado, e pus as finanças da Segurança Social na ordem. Depois é ela, quando o Prof. Cavaco Silva toma a liderança do PSD, que me sugere.

 

Conheciam-se?

Só tinha encontrado o Prof. Cavaco Silva duas vezes. Telefona-me, estava a formar Governo, pediu-me para ir à sede do PSD. Andavam a dizer que podia ir para secretário de Estado da Indústria e da Energia, que era a área de que gostava. Cheguei lá e convida-me para ministro do Trabalho e Segurança Social. Nunca pensei em ser ministro do Trabalho, estive umas horas a pensar e depois aceitei.

 

Porque é que não aceitou logo?

O meu registo mental não estava para a Segurança Social, estava mais para a Indústria e Energia.

 

Quem é que estava na Indústria?

O Eng. Santos Martins.

 

Que já tinha sido convidado.

Sim. Julgo que ele [Cavaco] terá convidado o António Capucho para ministro do Trabalho, não aceitou, a Leonor Beleza sugeriu-me a mim. Pensei: “Isto é um Governo minoritário, vai ser para seis meses, vou fazer uma perninha para ver como é”. Quando o Prof. Cavaco Silva me convida, eu tinha pedido a demissão de presidente do IGF da Segurança Social para entrar na Caixa Geral de Depósitos e substituir o Dr. Filipe Pinhal, que tinha ido para o BCP. Foi a época em que a banca se expandiu em Portugal. Como não me considero pior que os outros também podia ter a mesma carreira que os outros gestores bancários tiveram – florescente. E sabe quem é que me substituiu na Caixa, quando aceitei o convite do Prof. Cavaco Silva? Foi o Dr. Tomás Correia, que é o actual presidente do Montepio.

 

Tudo nomes que conhecemos passados 20 anos. São os mesmos, no essencial.

Não devo nada à política. Fui para o Governo e perdi dinheiro, o que ganharia na banca.

 

Durante dez anos perde dinheiro, mas há um mundo que se abre, e é um investimento a longo prazo. O que faz depois de sair do Governo dá para comprar uma “Porscheta”.

Se não tenho entrado para o Governo, tinha comprado uma “Porscheta” mais cedo. É isso que alguns dizem, que não aceito nem admito, que se não tivesse ido para o Governo… Não me queixo, mas é injusto dizer que foi com o Governo que arranjei estas posições.  

 

Ofende-o dizerem que foi através do Governo que conseguiu estas posições; e ofende-o dizerem que só quer dinheiro. São coisas diferentes.

Estive dez anos no Governo, se tivesse objectivos de dinheiro chegava-me um ou dois anos para me pôr ao fresco, aceitar os convites e ir ganhar dinheiro.

 

Está arrependido? Justamente porque esses que eram da mesma geração mais rapidamente foram presidentes do conselho de administração dos grandes bancos.

Tenho mixed feelings. A minha experiência do Governo de contacto com os empresários foi fabulosa. Saí do Governo com os empresários portugueses todos a elogiarem-me. O meu contacto com a classe política – por aí estou arrependido. Se soubesse o que sei hoje não tinha entrado para o governo do Prof. Cavaco Silva.

 

O que é isso do “se soubesse o que sei hoje”?

Percebi que como líder político, um tipo tem duas opções: ou é político profissional, está a fazer carreira, ou, se não é, é um erro estar lá dez anos. Só vale a pena entrar para o Governo como entrou o Dr. Catroga, ou o Morais Sarmento ou o José Luís Arnaut com o [Durão] Barroso.

 

Ou seja.

Amigo do primeiro-ministro. Como dizem os meus amigos, nunca passei da Infantaria, nunca cheguei ao Estado Maior no cavaquismo. Andei sempre a fazer o trabalho de sapa, a carregar o piano. Quando chegava a altura dos louros e do poder, era sempre para os outros, nunca para mim. Era ingénuo, vi o Prof. Cavaco Silva como uma alternativa ao meu líder, que era o Dr. Sá Carneiro. Entrei para o Governo com grande entusiasmo, mas percebi ao fim de algum tempo que estava farto daquilo.

 

Porque é que ficou dez anos, então?

É que depois percebi uma coisa. Quando o Eng. Oliveira Martins se zanga com o Eng. Falcão e Cunha e saem os dois do Ministério das Obras Públicas, vem a seguir o Eng. Ferreira do Amaral e aproveita o trabalho todo que tinham feito. Quem montou o plano rodoviário foi o Eng. Oliveira Martins, quem montou a máquina da Junta Autónoma das Estradas para fazer as auto-estradas foi o Eng. Falcão e Cunha. Os dois saíram, quem é que teve os louros todos da festa? O Eng. Ferreira do Amaral. Foi o super-ministro das Obras Públicas. Eu engoli vários sapos: “Não vou deixar que me façam isto. Se sair, fiz o trabalhinho todo e outros vão colher”.

 

Carrega com o piano e depois senta-se ao piano, e não é outro que se senta ao piano.

Exactamente.

 

Alguma vez as suas relações com o Prof. Cavaco Silva se entornaram?

Nunca se entornaram por causa dos vários sapos que engoli. Tive frieza, em nome disto que disse, (as pessoas julgam que sou muito emotivo, mas não sou tanto quanto pensam), [e decidi]: “Vou ser o carregador de pianos do cavaquismo até ao fim”. Toda a gente dizia que devia ser ministro da Economia, e só era ministro da Indústria. Havia um Ministério do Comércio que não fazia sentido económico existir, mas que havia porque o Prof. Cavaco Silva não podia dar o poder da Economia todo. Aguentei estoicamente, sempre, nesta perspectiva: “Se vou sair a bater com a porta, é sempre o mais fraco que se trama, e depois vem outro que aproveita o trabalho que fiz e sai em ombros”. Saí em ombros em termos dos empresários portugueses.

 

Um dos sapos que engoliu foi o Prof. Cavaco Silva não lhe ter dado a Economia?

As pessoas diziam que queria ser ministro das Finanças, e é verdade. E eu dizia: “Ele nem o Ministério da Economia me dá, quanto mais o das Finanças”.

 

Porque é que acha que o Prof. Cavaco Silva não lhe dava esses ministérios?

Aqui há tempos estive num júri de uma tese de mestrado com duas pessoas do ISEG, que tinham sido colegas do Prof. Cavaco Silva. Perguntaram-me assim: “O senhor, como economista que também é, não conseguiu explicar ao Prof. Cavaco Silva que aquela divisão entre Indústria e Comércio não fazia sentido?, devia ser um Ministério só”. “Estão a cometer o erro habitual, estão a ver o Prof. Cavaco Silva como vosso colega, professor de Economia, e ele no Governo actua como líder político”. Se vê um tipo que tem personalidade forte, não sendo ele da sua confiança pessoal, não lhe vai fazer isso. Ele só vai pôr em pastas fortes tipos da sua confiança pessoal.

Em todo o caso, há um episódio revelador da diplomacia e algum savoir-faire que ele tem. Quando o Prof. Braga Macedo estava para sair do Governo dizia-se que havia duas soluções internas para ministro das Finanças: ou eu ou a Dra. Manuela Ferreira Leite. Depois podia haver uma solução externa. Ele convidou, e bem, o Dr. Eduardo Catroga, foi um grande ministro das Finanças. No dia em que o convidou telefona-me e trata-me por Eng. Mira Amaral, em vez de me tratar por Sr. ministro da Indústria. Percebi logo que algo se passava, estava a gerir-me psicologicamente.

 

Era assim que se dirigiam a uns e a outros normalmente, numa reunião de conselho de ministros?

Sempre. Manteve sempre esse formalismo comigo. Nunca houve uma ligação afectiva pessoal entre os dois, foi uma ligação sempre fria e impessoal. Nesse dia aparece-me ao telefone: “Sabe Eng. Mira Amaral, gostaria de lhe ter dado isto em primeira mão, tem um novo colega no Governo”. Em oito anos tinham entrado e saído ministros, nunca me tinha passado cartão. “Vai ter como colega o Dr. Eduardo Catroga, se calhar já sabe”, “Ouvi na TSF agora, Sr. Primeiro-ministro, obrigado”, “Sei que os dois são muito amigos” – o que é verdade – “vão fazer uma excelente equipa em conjunto” – o que foi verdade – “e agora queria afirmar-lhe o meu apoio, o meu grande apreço ao trabalho que está a fazer”. Como em oito anos nunca tinha afirmado nada, era um pouco excessivo. O que concluo disto é que o Dr. Cavaco Silva achava que eu tinha a expectativa de ser ministro das Finanças, e como não me deu o lugar, teve a atenção de me gerir psicologicamente.

 

É público que as suas relações com a Manuela Ferreira Leite não são as melhores. A disputa vem desse tempo?

Não, não vem desse tempo. A senhora não tinha categoria para passar de secretária de Estado. Ministra da Educação já foi uma promoção um pouco excessiva. Ele [Cavaco] não tinha outra solução. Posso contar-lhe aqui com toda a franqueza. Estava eu como administrador do BPI… 

 

Parêntesis: como é que vai para o BPI?

Era quadro do Banco de Fomento antes de ir para o Governo. Acabou o Governo e passei a quadro do Banco de Fomento. Depois fui dirigir a banca de investimentos. O BPI comprou o Banco de Fomento, tornei-me quadro do BPI, cheguei a administrador do BPI. Gosto de vincar: não tem nada a ver com o PSD. Não devo nada ao PSD nesta matéria. Quando estava no BPI, o Dr. Durão Barroso pede-me para resolver o problema de Cahora Bassa, um problema que se achava insolúvel. Resolvi com as tarifas que consegui arranjar. Tenho a honra de ter resolvido o último contencioso português, coisa que ele nunca me agradeceu. Tratou-me pior do que se trata uma mulher de limpeza, que também se deve tratar bem.

 

Durão?

O Durão. Depois a Dra. Manuela Ferreira Leite, há um dia que me telefona, pede-me para ir lá, estava muito aflita porque o Prof. António de Sousa, presidente da Caixa, não controlava aquilo. Precisava de um tipo para controlar a Caixa, e não o podia substituir antes do fim do mandato. Entrei como vice-presidente, com expectativa de que ia ser o presidente no fim do mandato. Não fiz exigências nenhumas, só disse: “Tenho 57 anos, já tenho garantido que me vou reformar [pelo] BPI, venho para cá se me derem o mesmo ou mais. Isso tem que ser garantido”. Foram ver a legislação, com os anos de descontos que tinha para a Segurança Social e para a Caixa Geral de Aposentações, o cidadão Mira Amaral não precisou de nenhuma lei específica: eram as condições normais, podia reformar-me pela Caixa em vez de me reformar pelo BPI. Uma reforma até ligeiramente superior à do BPI, porque entrava para a Caixa como vice-presidente, e no BPI era só administrador.

Mas não foi isso que me motivou. Já tinha a reforma de ministro, dava-me para viver. O que me motivou foi a perspectiva de poder vir a ser presidente da Caixa – o que a senhora me deu a perceber. Chegou ao fim, chama-me lá, explica-me o modelo de gestão da Caixa. Oiço tudo, digo que não aceito, e a senhora diz-me uma frase que nunca mais lhe perdoo: “Então isto é uma grande promoção e o senhor ainda refila?”. Esquece-se que me tinha pedido para aguentar aquilo que o Prof. António de Sousa não aguentava e ainda me ofende? Nesse dia acabaram as relações com ela. Até hoje. Está a ver a diferença entre ela e o Prof. Cavaco Silva, que, no dia em que nomeou o Catroga, soube-me gerir psicologicamente?

 

A pega é essa?

É esta frase, que é uma frase assassina. Depois queria-me ir embora, telefona-me o Barroso: “Vocês, as estrelas do PSD só nos dão chatices”. O Barroso a dar música. “Veja lá se chega a acordo com o Prof. António de Sousa”.

 

E porque é que andou, tão publicamente – ouviu-se muito cá fora – em contenda com o António de Sousa?

Lá fiz um acordo com o Prof. António de Sousa. Tinha de gerir toda a parte bancária e também tinha que ter a banca de investimentos. Ele aceitou que ficasse com a banca de investimentos, e ao fim de um mês rompeu o acordo comigo e tomou conta da banca de investimentos. Aí escrevi um papel para me ir embora. Só que o Barroso, entretanto, resolve ir para Bruxelas e fiquei em standby até ao próximo Governo. Quando entrou o Governo meti o papel.

Nesse momento achei, e acho ainda hoje, que nos dez anos do Governo, nos 20 anos que estive a ajudar o PSD, tinha trabalhado com gente que não merecia toda a lealdade e dedicação com que trabalhei com eles. Quando me fazem isto na Caixa, senti que o cavaquismo tinha sido uma facada nas costas, que tinha perdido 20 anos da minha vida.

 

São os dez anos de Governo e os dez anos a seguir?

Embora ao serviço do BPI, fui sempre ajudando o PSD. Senti: “Se não tenho vindo trabalhar com estes tipos estava na minha vida bancária, tinha muito mais dinheiro do que tenho hoje. Enganei-me com esta gente quando fui trabalhar para o Governo e para o PSD”. Fui insultado e enxovalhado nos jornais, chamaram-me tudo.

 

O assunto da sua reforma foi muito comentado.

Há pessoas com reformas superiores à minha e com toda a razão, tem a ver com o nível de vencimentos que cada um tem. Não tenho a maior soma do país, nem pouco mais ou menos, mas fui insultado. Nesse momento fui-me abaixo. Passei o pior ano da minha vida quando saí da Caixa, em Setembro de 2004. Há duas coisas que me valeram nessa altura, a minha filha e a minha casa de Cascais. A miúda andava no São João de Brito (agora já está na universidade), chegava a casa às seis da tarde e aparecia aos saltinhos, agarrada a mim: “Papá, tenho dúvidas, vem-me explicar a matemática e a física”. Era um bálsamo.

 

Foi pai tarde.

Fui, casei-me aos 35 e fui pai aos 44, sou pai, avô. Percebi o quão importante é ter uma família e uma miúda para me aguentar. Andava completamente despassarado.

 

Chegar a casa às seis e meia da tarde, neste contexto, é muito sintomático de não ter nem reconhecimento social nem um projecto entusiasmante.

Com esta cena fui para a prateleira do BPI, estava lá o dia todo e não fazia nenhum. Pegava no carro e ia para Cascais passear a pé no paredão ou andar de bicicleta na ciclovia, ou sentava-me a ver o mar. Andei um ano nisto. Se não fossem estas duas coisas tinha dado o berro, tinha entrado numa depressão profunda. Resolvi o problema de Cahora Bassa de graça, andei dois anos a negociar com os sul-africanos as tarifas para Cahora Bassa. Meti 900 milhões de dólares no Tesouro português sem lhes exigir um tostão. No mínimo deviam ter algum reconhecimento – que não tiveram – por mim.

 

Sentiu-se dorido porque não lhe estavam a reconhecer…

É mais do que isso. Se esta cena me acontecesse aos 40 anos, recuperava. Quando esta cena me acontece aos 59 anos de idade, já não tive tempo de recuperar. Este estado do espírito, vou com ele para a cova. Não sou o mesmo tipo que era antes disto. Deixei de ter disponibilidade para o PSD. Hoje a única disponibilidade que tenho é: se um líder do PSD, que seja amigo, com quem me dê bem, me telefone para dar umas opiniões, eu dou. Andar na lutar pelo PSD, não contem comigo para mais nada.

Quando o Dr. Luís Filipe Menezes ganhou o PSD, numa sexta-feira à noite, segunda-feira estava no Altis a jantar comigo. Queria que fosse vice-presidente da comissão política e ministro sombra das Finanças. Disse-lhe que não contassem comigo, porque não era o mesmo Luís Mira Amaral que conheciam antes da Caixa.

 

Nesse sentido, foi ouro sobre azul o contacto com os angolanos e com Américo Amorim. É o homem do BIC.

Que vem de onde? Enquanto administrador do BPI, era o CEO, embora não residente, do Banco de Fomento de Angola. Durante dois anos fui o responsável dos Bancos de Fomento de Angola e Moçambique. Ia lá todos os meses. O homem que geria o banco era o Dr. Fernando Teles. Quando o Sr. Américo Amorim e a Isabel dos Santos convidam o Dr. Fernando Teles para sair do Banco de Fomento e fazer um novo banco em Angola, (BIC Angola), e quando resolvem abrir em Portugal o BIC português, o Dr. Fernando Teles lembrou-se de mim. Dava-se muito bem comigo, dizia que era das pessoas com quem gostava de trabalhar no BPI. É por eles que volto a ter esta oportunidade que tenho hoje em dia. Acabo por ter sorte.

 

Mais do que tudo, isto deu-lhe um entusiasmo e um reconhecimento social que sentiu que perdeu com o episódio da Caixa?

Aos 65 anos não tenho as ambições que tinha aos 50. As ambições que tive: podia ter sido ministro das Finanças, podia ter sido presidente da Caixa, da EDP, da PT, da GALP, podia ter sido isso tudo, não tinha menos competência que os que lá têm andado. O bloco central político-financeiro que manda no país nunca me quis dar essas oportunidades.

 

Porquê?

Porque não sou um yes man. O que eles querem é gente que alinhe com eles sem lhes criar ondas. Não tive nada disso. A partir dos 60 não tinha as ambições que tinha tido. Tive a sorte de os meus accionistas do BIC me convidarem para formar um novo banco. Foi uma tarefa apaixonante, coisa que nunca tinha feito. Em 11 de Janeiro de 2008 deram-me os cheques para a mão e disseram: “Faça o banco”.

 

Quem é que lhe disse isso?

Américo Amorim, Fernando Teles e Isabel dos Santos, na constituição da sociedade. Em Maio de 2008 tínhamos o banco a funcionar. Em 2008 ainda tivemos saldo negativo. Em 2009 já deu um pequeno lucro. E em 2010 vem a ter um lucro maior, apesar das dificuldades do país.

 

Ambições políticas, nenhumas?

Já não tenho nenhumas ambições políticas. Estou à frente de um banco a fazer o que gosto. Estou satisfeito e tranquilo com o que faço, com três accionistas impecáveis que nos deixam (à comissão executiva) gerir o banco. Tenho uma equipa com colegas impecáveis. Ultrapassei toda essa fase do vazio, mas não ultrapassei a mágoa e o ressentimento pelos líderes do PSD. Só há três pessoas a que estou grato, e não esqueço: José Sócrates, António Guterres e Luís Filipe Menezes.

 

Dois socialistas em três homens políticos.

Nenhum deles me deve nada politicamente. José Sócrates telefona-me quando faz o acordo de Cahora Bassa a dizer: “Sei que isto é possível graças ao seu trabalho”. Leva-me a Moçambique, em público, em frente do Governo moçambicano, faz-me um grande elogio – que eu tinha sido decisivo para o acordo. Estou farto de o criticar com a política económica actual, mas não me posso esquecer disto. António Guterres, sempre me elogiou: “Gostava que fosse meu ministro”. E o Luís Filipe Menezes diz em público que eu seria o ministro das Finanças ideal. Dos outros todos não digo isto.

 

Houve uma fase da sua vida em que estava muito nos jornais, disse que foi vilipendiado. Porque é que acha que suscita esta reacção junto da opinião pública?

Modéstia à parte, acho que trabalhar para o Governo foi marcante. Ainda há pouco tempo fizeram um inquérito no Expresso, para saber quem eram os dois melhores ministros das Finanças e da Economia da democracia portuguesa. Fui eleito junto ao meu amigo Miguel Cadilhe, como ministro das Finanças, e eu como ministro da Economia – coisa que nem fui, só fui da Indústria. Acho que marquei em termos empresariais. Sou um alvo fácil para um país de inveja, de coisas menores. Não sou politicamente correcto. Sou franco, aberto.

 

É uma pessoa de frases simples e directas – descreve-o assim Miguel Cadilhe no prefácio do seu livro E Depois da Crise?.

É meu amigo. Eu era mestre em Economia e quando chegava ao conselho de ministros tinha a mania que sabia de Economia, que era o único ministro em condições de discutir a política económica e financeira com o Dr. Miguel Cadilhe.

 

Nunca se sentiu inseguro na vida?

Senti-me inseguro em dois momentos. Quando saí do Governo e regressei à banca. Tinha estado dez anos sem lá estar, e vi tipos mais novos que eu, que sabiam mais da matéria. A tal angústia do tipo que não é político profissional (andei a perder o meu tempo e não domino os assuntos como dominava). E depois da cena da Caixa, em que o mundo que tinha construído, trabalhando para gente que achava que era do meu partido, tinha desabado.

Um ano depois da Caixa, uma senhora que ia no eléctrico, pôs a cabeça de fora e começou a insultar-me: “Vocês é que deram cabo das finanças públicas com as reformas que têm”. Paguei para a minha reforma, as reformas têm base contributiva, isto não caiu de borla, não é? Ainda há dias na televisão, o Louçã fez demagogia sobre mim. O que tenho de reforma, não devo ao Estado português, é o que qualquer cidadão teria, com os ordenados que eu tinha, com o que descontei. Pode dizer que devo ao PSD uma notoriedade pública que não teria se não estivesse no Governo. E o apreço da classe empresarial.

 

E contactos. Com uma agenda faz-se negócio, e a notoriedade nos contactos também vem desses dez anos.

Se estivemos a fazer um trabalho leal e honesto, porque é que se há-de preocupar de ter essa notoriedade e esses contactos?

 

Onde é que aprendeu a fazer negócios? Com quem e em que circunstâncias aprendeu a fazer negócios?

Aprendi nos tempos do Banco de Fomento, e sobretudo nos tempos do BPI. Quando saí do Governo reaprendi tudo. O BPI é um grupo financeiro fabuloso.

 

Uma última pergunta: porque é que fala tão depressa?

É do entusiasmo. Tenho algum entusiasmo no que digo. Uma vez no Brasil falei depressa e na televisão ninguém me percebeu.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011