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Anabela Mota Ribeiro

Manuel Carvalho da Silva (2012)

16.03.15

Carvalho da Silva, “sindicalista até morrer!”, é um sociólogo que fala da malvadez à solta. O ex-líder da CGTP mantém a violência do tiro de um canhão: “A manutenção deste Governo é um perigo a cada dia que passa. Tornou-se um factor de apodrecimento aceleradíssimo da democracia portuguesa.” No livro “Vencer o Medo – Ideias para Portugal” e nesta entrevista dispara, previsivelmente, sobre Passos Coelho, Vítor Gaspar, sobre o neoliberalismo. Fala de Cavaco tolhido, que não age e que não conta. Fala de políticas criminosas como foram criminosas as políticas de Pol Pot. De os tiques dos governantes portugueses se parecerem com os dos governantes franceses de Vichy. Do medo que paira no ar como uma nuvem de chumbo.

É investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, cuja delegação, em Lisboa, dirige. A voz dele já não é a voz da central sindical, mas deixa um recado: “A mobilização social tem que ter expressões todos os dias.”

 

 

No seu livro fala de um processo “que desejamos pacífico e solidário, mas que não podemos saber se assim será...”. Há nele uma incitação à desobediência? Precisamos dela?

Precisamos da desobediência, e de forma premente, na interpretação daquilo que na Constituição portuguesa está definido como “direito à indignação”. Precisamos, simultaneamente, ou em articulação, de um acto de desobediência que, sendo forte, tenha como preocupação antecipar grandes descalabros. Ou seja, não devemos pré-anunciar guerras, devemos agir para que elas não surjam. Julgo que é esse o tempo em que estamos. O de uma desobediência que force soluções. Se não houver essa desobediência, e em tempo útil, podemos ter uma situação de guerras.

 

Porque é que o direito à indignação, consagrado na Constituição, não é suficiente para enfrentar os tempos que correm?

Há um livro de um monge italiano, Luciano Manicardi, que me foi oferecido pelo Tolentino de Mendonça, que gosto de citar. O título é “A caridade dá muito que fazer”. Manicardi diz que crise significa dias maus. Dias maus são dias de muita malvadez difusa. Eu costumo dizer: muita malvadez à solta. Assistimos a isso todos os dias. Vivemos debaixo da expressão contínua de malvadez. O conceito de interesse nacional está deturpado. Os objectivos dos nossos credores e agiotas [transformaram-se] na base do interesse nacional.

Os portugueses têm fortíssimas razões para se indignarem. Já não é apenas o interesse individual do trabalhador que, por medidas desajustadas, fica no desemprego, daquele que, em função dos cortes a direitos, fica na pobreza, da classe média que de um momento para o outro se vê desarmada e em situações de carência absoluta. São todas estas expressões; mas é também o interesse colectivo, comummente designado como interesse nacional, que está manipulado. É preciso uma reacção forte, porque quando um país se submete a essa interpretação do interesse nacional é um país ocupado.

 

Segundo a sua leitura, seria uma dupla ocupação. Existe a ocupação da Troika. “Temos um governo externo que manda”, escreve, “definindo o nosso interesse nacional em função dos objectivos e proveitos dos nossos credores”.

Sim. A Troika é uma representação simbólica de poderes: do poder financeiro e económico que domina o mundo, da Europa e dos interesses estratégicos dos grandes poderes políticos e económicos. O que quero colocar em relevo é que este clima gera desalento. Estamos debaixo de uma dupla ocupação. É a ocupação concreta pelas políticas que são impostas e é a subjugação a conceitos, a valores que nos estão a aniquilar. Não há saídas sem responsabilização. E isto mata a possibilidade de responsabilizar as pessoas. Mata a esperança, que é gerada pela razão, e não pela crença.

 

Crença? Que crenças?

O que ouvimos do ministro das Finanças e de outros não são mais do que crenças. Que comprovadamente falharam. Toda a gente sabe que no final do ano vamos ter uma dívida maior, que vamos estar mais pobres. Continuar a dizer que esta é uma saída não representa outra coisa que não uma crença. Quando a racionalidade política é substituída pela crença, a coisa torna-se perigosa.

 

O Governo segue esta estratégia, confia na eficácia deste caminho. Há uma leitura diferente da sua.

Muitas vezes se diz que não há governante que não quisesse fazer melhor pelo seu povo. É uma falácia. Em certa medida, não há seres humanos maus. Até conseguem fazer-se reposições da vida do Hitler nas quais ele tem afecto pela sua cadela. Mas os caminhos que os seres humanos percorrem, ou são sustentados por valores – por uma ideologia concreta – que têm viabilidade do ponto de vista da vivência colectiva, ou resultam em desastres. É com esta preocupação que as coisas têm de ser feitas. Não ponho em causa as preocupações pontuais do ministro das Finanças ou do Primeiro Ministro [PM]. Não é na dimensão dos afectos que está o problema. Mas o caminho que [escolheram] é desastroso.

 

Porque é que considera que estamos na emergência de uma nova era?

Em 2011, na conferência anual da Organização Internacional do Trabalho, o relatório apresentado pelo director-geral despertou-me para essa noção. A observação tem uma enorme actualidade. Os valores, os dogmas, as instituições que nos conduziram até aqui estão em falência.

 

Este é o fim da era pós-Segunda Guerra, do projecto europeu que emergiu depois de 1945, e que ruiu num processo irremediável com a queda do Muro do Berlim?

Não. Pode ser mais profundo do que isso. Muito, muito mais. Qual será?, não sei. Se uma nova era está em emergência? Na minha opinião, está, indiscutivelmente. Quando se analisa a evolução do peso relativo dos países no mundo, e fazemos considerações sobre a dinâmica do desenvolvimento da China ou do Brasil ou da África do Sul ou de outros países, estamos a falar dos contornos do que há-de ser a nova era. Que está em fermentação. Pela nossa acção, há-de resultar qualquer coisa concreta, com mais solidez do que aquela que agora se poderia afirmar.

[O fim] da Segunda Guerra e da queda do Muro são factores muito importantes; poderíamos falar de um outro: da internet, e do que isso veio significar para a movimentação financeira, para a manipulação financeira...

 

... e juntar, já agora, a China como potência, nesta nova equação.

Sim. A maior parte dos comentários, a maior parte dos economistas, comparando o crescimento e as condições vida na China com o crescimento e as condições de vida nos Estados Unidos, na Europa, normalmente faz comparações a partir do produto per capita; esquecem-se de questões fundamentais. É que a cultura dos chineses, no que diz respeito à habitação, à alimentação, às coisas mais estruturantes da vida, são totalmente diferentes das nossas. Por exemplo, a capacidade de poupança de um chinês, com o mesmo nível de vida, médio, de um europeu, é talvez o dobro. Outro aspecto: a ideia de que a China está a modernizar-se aculturando-se ao Ocidente é um erro. É uma situação passageira.

 

Acha que esta aculturação ao capitalismo é uma coisa passageira?

O que vai ser a própria evolução do capitalismo, não sabemos. Mas a cultura está para além do sistema capitalista. Há uma coisa que, se reflectirmos um pouco, não é difícil concluir: não vai ser a cultura ocidental que se vai impor à cultura chinesa. Ela pode ter – está a ter – fortíssima influência nesta fase de transição. Mas estamos a falar de um povo que tem uma presença organizada no mundo de milénios, anterior às civilizações agora dominantes. As dimensões culturais são múltiplas, e muito profundas.

Queria voltar à questão inicial: as mudanças inerentes ao que chamei uma nova era parecem mais do que um mero reacerto. Porquê? Observemos as dimensões da crise do sistema capitalista e das suas contradições. As dimensões são financeiras, económicas, políticas, climáticas, energéticas, de relações comerciais...

 

Está a dizer que é todo o edifício que está em colapso, prestes a sucumbir. Não é possível refazer portas e janelas, é preciso ir aos alicerces?

Sim, tem de se ir muito ao fundo. A União Europeia tem de se recompor? Claro. Mas a UE não vai ter acesso às matérias primas nas mesmas condições. Nem pensar! Em muitos aspectos, o sistema, tal como vinha sendo delineado, o nosso estilo de vida, o estilo de vida para que somos todos os dias chamados, não é sustentável.

Esta noite [entrevista realizada quarta-feira de manhã] estava a ouvir a evolução dos resultados eleitorais no EUA; ouvi um comentador dizer que Obama ganhou no acompanhamento ao furacão Sandy. O sistema – e ali está o coração o sistema – mostrou-se incapaz de lidar com uma catástrofe como aquela. Tudo deixou de funcionar. Esta situação pode ter despertado em muitos americanos a ideia de que o problema ecológico é importante. E Obama surgiu como mais sensível para o observar.

 

As guerras começam, tantas vezes, pela escassez de cereal...

Isso é complementar do que eu estava a dizer. Grande parte das guerras, hoje, dos conflitos dolorosos que causam miséria e morte, são provocados pelos efeitos das alterações climáticas cruzadas com esta lógica de mercado (em que a utilização da terra não tem nenhuma racionalidade).

 

Voltamos a falar da possibilidade – será uma inevitabilidade? – de um cenário de guerra. Noutra passagem do livro diz: “Quase sempre estas situações desaguam em guerras”.

Quase sempre. Procuremos agir para que isso não aconteça. Por essa razão, num dos textos que fazem parte do livro, e que apresentei numa conferência na Quinta das Lágrimas, em 2010, digo que a globalização é – deve ser – universalismo, multilateralidade e multiculturalidade.

 

Estamos a dias da chegada de Angela Merkel a Portugal. A chanceler chega dia 12, segunda-feira, e dois dias depois é a greve geral marcada pela CGTP. Que reacção prevê para cada um destes dias? É um homem habituado a ler estes cenários...

Sou sindicalista até morrer! [sorriso] Negava-me a mim próprio se dissesse que não sou sindicalista. Não estou em actividade, mas as raízes mais fortes da minha formação vêm do sindicalismo, das leituras que o sindicalismo me permitiu.

Não gosto de fazer antevisões. Os pronunciamentos que ouvi sobre a vinda de Merkel são diversos, têm alguma contradição. A contradição que resulta de dizer que não nos submetemos e, ao mesmo tempo, de reconhecer um papel de supremacia no exercício do poder à senhora Merkel. Esta dicotomia tem que ser trabalhada para se encontrar caminhos de eficácia. Não me pergunte como, não tenho solução. Era interessante que surgisse um posicionamento bem sustentado... Mas isso implicava que houvesse nas instituições do poder uma abertura e uma sensibilidade, e não a temos. Primeiro, porque o Governo está submetido ao pensamento e à acção que Merkel representa; e por outro, o presidente da República não conta. É uma infelicidade para o país.

 

Cavaco disse na terça-feira, depois de um longo silêncio, que o PR não tinha de intervir ao sabor da opinião pública.

Um presidente que não acompanha no dia-a-dia o sofrimento, os anseios, as contradições que o povo vive, e que procura não fazer leituras, interpretações, construção de dinâmicas, então, o que é que está a fazer? Está à espera de pareceres técnicos, sejam eles de interpretação jurídica [ou de outra ordem], e que são coisas complementares?

 

Ainda voltamos a Cavaco. Para já, retomamos a tópico da vinda de Merkel.

Não tem que haver falsas expectativas. Estar à espera que Merkel venha expressar entendimento pelo sofrimento do povo português, seria um exercício de hipocrisia sem sentido. Vejo formadores de opinião a dizer que Merkel devia ser solidária e tal... Para quê? Para subjugar mais o povo português? A questão fundamental era que ela percebesse que as suas políticas não são futuro. E que isso chegue ao povo alemão.

 

O que é que seria preciso fazermos aqui para que Merkel e o povo alemão o percebessem?

Nós, como os gregos, os espanhóis, os italianos, temos que agir e ajudar a desmontar a [narrativa], sob a qual se desenvolvem estas políticas, de que os alemães e povos do centro e norte da Europa – que representam os credores – são os trabalhadores, os cumpridores, e que os do sul são preguiçosos, devedores, etc. Não é fácil. Ainda por cima quando foi inculcado, até à exaustão, que andámos mesmo a viver acima das nossas possibilidades, e que os alemães e outros vieram aqui numa atitude altruísta oferecer-nos dinheiro que gastámos de forma incorrecta. Foram do interesse da Alemanha as opções adoptadas neste caminhar da UE. A indústria alemã, os interesses estratégicos alemães, beneficiou de políticas que foram impostas a Portugal e a outros em troca dos meios que aqui foram disponibilizados.

A outra questão é que os alemães (e não só) devem perceber que não têm o direito de se voltar para um grego, para um português, para um espanhol e ter as atitudes de sobranceria que assumem. Estão muito longe de ter um resquício de fundamento para essas atitude.

 

Não falou ainda do problema da dívida. E diga o que disser do que nos foi inculcado ou do comportamento dos alemães, a verdade é que a nossa dívida é colossal.

É enorme. Admitindo que vivemos acima das nossas possibilidades: temos então de pôr os pés no chão. Mas não temos de empobrecer. Nunca este caminho – primeiro vamos empobrecer porque empobrecendo vamos resolver os problemas. Nós queremos pagar a dívida.

 

Defende que ela seja renegociada?

Digo-o desde a primeira hora: é indispensável. Podem fazer discursos contra a renegociação, insultar os que a defendem e dizer que esses não a querem pagar... É mentira. Quem quer pagar a dívida, a sério, tem de ter condições para a pagar. Precisamos, para isso, não de destruir emprego, mas de ter emprego. Há uma série de mentiras que é preciso denunciar. Aponto uma: criou-se nas pessoas a ideia de que isto está a acontecer na Europa porque não há dinheiro.

 

Diz que há.

Imenso, imenso. Muitas vezes é dinheiro sujo. Está mal distribuído, e cada vez está pior. E está a ser mal utilizado, neste jogo especulativo extremamente complexo. Se há dinheiro para comprar a dívida alemã a juros negativos, ou para fazer certos investimentos em certos grupos financeiros a juros negativos, é porque há muito dinheiro.

 

Merkel vai ter eleições no Outono do próximo ano...

É um dos dramas para nós.

 

O drama é ainda faltar quase um ano?

É. E o drama redobrado é se ela ganha as eleições. O que não é improvável.

 

Se por um lado, Merkel tem de responder perante o seu eleitorado, por outro lado, há o modo como vai ficar nos livros de História. Acha que a chanceler alemã quer ficar com o ónus de pôr em risco o projecto europeu?

A questão não é querer. Ela interpreta um determinado quadro. Há uma influência fortíssima daquilo que genericamente se cataloga de neoliberalismo, e que domina a Europa. A Europa tornou-se a frente avançada do neoliberalismo de há uns anos para cá. O grande desvio começa em Maastricht. Percebe-se que tenha sido na Europa que o neoliberalismo mais atacou: estavam aqui sediadas as maiores conquistas sociais. A senhora Merkel não é nenhum líder político em quem se vejam capacidades próprias, pensamento profundo.

 

Acha que é uma peça da máquina?

É.

 

Tem menos desígnio do que parece? Tem menos desígnio do que poder?

Isso é verdade. O que não significa que, se ela quisesse, não pudesse usar o poder.

 

Usar o poder num outro sentido – é o que está a dizer?

Claro.

 

Volto ao livro: “Não podemos tolerar por mais tempo esta escabrosa experimentação social, uma espécie de crença movida por interesses de classe”. Mais à frente fala de aprendizes de Pol Pot. Pergunto-lhe se isto é uma radicalização do seu discurso...

É, um pouco para fazer um alerta.

 

É porque o que diz é muito grave. Perguntamo-nos imediatamente: em quem é que está a pensar quando fala de aprendizes de Pol Pot?

Se formos ver as experiências Pol Pot no mundo (e há de diversos matizes), elas sustentavam-se em crenças. Crenças que substituíam a racionalidade política e sustentadas em valores que apontei. Quem reflectir mais profundamente sobre estes problemas vê similitudes. Não estou com isto a dizer que está aqui em potência um Pol Pot. O que estou a dizer é que os horrores da Humanidade partem desse caminhar, dessa experimentação, que vai sem parar. Se pegar em alguns discursos de governantes nossos, quando falam do interesse nacional, e comparar com discursos de governantes franceses do Governo de Vichy, encontra similitudes. É uma coisa que arrepia. Não estou a dizer que os nossos governantes estão num estádio de demência do ponto de vista político e que estejamos às portas de uma subserviência ao nazismo. Agora, os mecanismos mentais que conduziam os franceses do Governo de Vichy, quando falavam do interesse nacional francês, naquele contexto de ocupação alemã, os tiques, as expressões usadas, têm a mesma origem. Temos de ter isto em atenção.

Para onde caminhar quando o ministro das Finanças sistematicamente apresenta a inevitabilidade, a inevitabilidade, a inevitabilidade? Ele próprio já vem reconhecendo que o país vai ficar pendurado durante décadas... Mas se isso é uma evidência, se os altos responsáveis do FMI dizem que este caminho não dá, se o próprio Durão Barroso a espaços tem de vir dizer que este caminho não dá...

 

Porque é que nada muda? Neste contexto, ou cai o Governo, ou há uma revolta popular, ou Cavaco intervém. Quais são as possibilidades, na prática, de acontecer alguma coisa?

[Nada muda por duas razões:] as relações de forças que se constituem para um projecto e esse próprio projecto. É um problema que se coloca no plano nacional e no plano europeu. Se o neoliberalismo está a ganhar, se as forças conservadoras e mais retrógradas estão a ganhar, é porque os outros estão a perder. É uma evidência. A questão está em ir construindo relações de forças e apresentação de propostas que comecem a gerar esperança, que levem as pessoas a dizer: “Vale a pena ir por aqui”.

 

Não há alternativas?

Alternativas, existem. Não quero negar que o partido A, o partido B, o partido C têm alternativas e as afirmam como alternativas possíveis de serem encetadas. Mas o povo não as reconheceu como tal, ainda. É preciso trabalhar para que o povo as reconheça. Não adianta dizer que um dia o povo há-de estar connosco e há-de vir connosco. Para o país sair do buraco em que está vai ser necessário conciliar posições muito diferenciadas.

 

Está a dizer que todos vão ser chamados, e ter de ceder? Está a falar de um governo de salvação nacional?

Não sei como é que do ponto de vista político-partidário ou do funcionamento das instituições [essa conciliação] se vai encontrar. O que defendo é que é indispensável salvaguardar a soberania do povo. O povo tem que ser chamado e responsabilizado.

 

Vou continuando a tentar traduzir o seu discurso: agora está a dizer que seria preciso convocar eleições, no caso de Cavaco destituir este Governo.

Não deve haver soluções sem haver eleições, perante a situação em que nos encontramos. Mas pode ter que haver uma solução passageira que, datada, substitua o descalabro que estamos a viver. Se formos para eleições, num prazo não muito longo, mas com este Governo no poder, podem-se criar situações muito complicadas. Estou convencido, e digo isto com uma certa dose de medo, de que há gente que está no poder e que, se puder, como diz o povo, escavacar tudo – pôr em cacos – para impedir ou dificultar que os que vêm a seguir encontrem soluções, o fará sem hesitar.

 

É a tal malvadez à solta de que falava?

É. É a tal malvadez à solta e a interpretação dessa crença de que [o neoliberalismo é o caminho]. A manutenção deste Governo é um perigo a cada dia que passa. Tornou-se um factor de apodrecimento aceleradíssimo da democracia portuguesa. Tornou-se um factor de crescimento da desconfiança entre o povo e os actores políticos, e está a contaminar as relações entre as instituições. Se olharmos a justiça, a instituição militar (que é sempre muito importante..., talvez haja menorização dela no país), se olharmos outras instituições, vemos que a manutenção deste Governo, pelas suas políticas concretas, é um perigo. Julgo que com isto lhe digo o que podem ser caminhos. Quem tem de intervir? Os partidos políticos, a Assembleia da República, o Presidente da República.  

 

Quando olhamos para o passado e para as mudanças de paradigma, elas normalmente acontecem com uma revolução, com qualquer coisa que rasga e inaugura uma nova era. Para o bem e para o mal.

As grandes mudanças são feitas da convergência de reformas e rupturas. Com revoluções ou sem revoluções. Se a sua expressão tem uma amplitude mundial, temos de dizer que há revoluções em curso. Mais silenciosas, menos silenciosas.

Tivemos em 1974 uma revolução a sério que nos mostra que é possível uma revolução sem sofrimento do povo, sem conflito, sem violência; e que nos mostra também que uma revolução muda contextos (às vezes muito importantes) mas não muda a mentalidade das pessoas de um dia para o outro. Aspecto fundamental: há uma enormíssima transformação social em curso, há estilos de vida dominantes que estão a ser postos em causa e que vão ter que ser reformulados. Este é o tempo que vivemos, mas a mudança não tem de ter a expressão que outras tiveram.

 

Voltemos a Cavaco. “E quando o PR, primeiro magistrado da nação, não tem incorporação de memória histórica, dimensão ética e moral, visão estratégica e se limita a ir no desastre, o sofrimento do povo aumenta e as interrogações sobre o futuro do país ampliam-se”. É uma porrada valente.

É, mas é o que penso. Os anos em que convivi com Cavaco Silva, como PM e mais tarde como PR, propiciaram-me uma observação do ser humano e do actor político. Tem uma percepção dos problemas sociais, naquilo a que eu chamaria uma “observação primária”, que, em muitos casos, até é melhor do que a de outros políticos situados à sua esquerda. Essa sensibilidade talvez tenha a ver com as suas origens, com o percurso que fez. Mas é numa abordagem primária.

Uma das coisas que mais me impressionam na personalidade de Cavaco Silva é ter feito um percurso político muito longo, e ter inculcado muito pouco daquilo a que chamo cultura (na verdadeira acepção da palavra).

 

O quê, em concreto?

Capacidade de olhar a sociedade, de interpretar, de ser capaz de descodificar os comportamentos. Mostra uma limitação... É um homem sempre a fugir da abordagem mais profunda dos problemas. Faço comparações entre ele e um Lula da Silva. Lula não teve a formação académica que teve Cavaco, é um operário; mas quando o vemos a intervir, independentemente das valorações que cada um faz sobre ele, [percebemos] que está ali um poço de cultura. Um poço de capacidades de interpretação do ser humano, dos contextos em que o ser humano vive. Cavaco é um homem tolhido neste aspecto. E não é capaz de agir.

 

O que é que acha que lhe tolhe a acção?

Isto: a falta de segurança na interpretação. A falta de bases. Ele não tem uma formação ideológica sustentada, que é importante, e que qualquer um dos presidentes da República que tivemos, tem. Mesmo Ramalho Eanes, que era um militar. Jorge Sampaio tem um lastro fortíssimo, Mário Soares tem um lastro fortíssimo. Cavaco não tem. (Não estou a pôr em causa a base primária de valores e sentimentos, que tem ao nível do comum.)

 

Gostava de ser presidente da República?

Não! [riso] Essa questão não se coloca, ponto final.

 

No dia 14 de Novembro há uma greve geral. As manifestações têm sido nos últimos meses diferentes das que durante anos tivemos.

Têm sido muito grandes. E muito pacíficas.

 

Acha que é sobretudo uma questão de dimensão? Desde a manifestação de 15 de Setembro, o povo português mostra estar farto do rótulo de ser um povo manso, ao contrário dos gregos e dos espanhóis. Esta saída para a rua vai mudando a cada manifestação?

As saídas para a rua, as mobilizações, as lutas que o movimento sindical (neste caso, a greve que a CGTP convocou e à qual estão a aderir imensas organizações) são absolutamente indispensáveis. Podemos estar a aproximar-nos de um tempo em que, por mais que isso incomode alguns, a mobilização social tem que ter expressões todos os dias. Designadamente expressões de rua.

 

Por outro lado, fala-se dos milhões que se perdem de cada vez que isso acontece, de como isso dá cabo da economia.

Não são as manifestações que dão cabo da economia. As maiores manifestações que se têm realizado têm sido ao fim de semana. O número de greves em Portugal é menor do que noutros países europeus. É uma conversa que não tem sentido. Infelizmente é retomada ciclicamente. O que eu digo é que precisamos de muito mais mobilização social. Não haverá uma responsabilização das pessoas para sair da crise sem essa mobilização.

Respondendo sinceramente à sua pergunta, e com a consciência de que isto vai ser lido por muita gente, dir-lhe-ia que ainda existe muita subjugação às inevitabilidades e a estes slogans (que vivemos acima das nossas possibilidades, que somos todos responsáveis, que não há outro caminho, que é pela purificação na pobreza que nos vamos salvar...). Tem havido evoluções positivas, mas ainda estamos mais num clima de desalento do que num clima de “vamos a isto” para encontrar alternativas.

 

Olhamos para a manifestação de 15 de Setembro e interrogamo-nos se o sucesso dela não se deve ao facto de ser apartidária. Teve um carácter diferente daquela que se lhe seguiu, no Terreiro do Paço, convocada pela CGTP. As pessoas estão...

... compartimentadas?

 

E zangadas com os políticos. E descrentes da classe política.

Cada dia que tivermos um Governo como o que temos actualmente, cresce a desconfiança em relação à política e aos políticos. Não encetaremos nenhum caminho de mudança e de resposta à crise sem uma governação que seja reconhecida pelo povo como uma governação com ética, transparente, rigorosa.

As manifestações são diferentes. Não secundarizemos o papel dos partidos. Responsabilizemos os partidos. Nesse sentido, a manifestação de 15 de Setembro foi importante. Não secundarizemos a mobilização sindical. O lugar do trabalho na sociedade actual é central. Esta destruição dos valores do trabalho, o ataque sistemático dos trabalhadores, o anunciar como medidas positivas a destruição de 60 mil empregos na administração pública, o encerramento disto ou daquilo..., só na tal loucura das crenças. A base da economia é a base produtiva. Os impostos recaem sobre quem? 80% dos impostos recaem sobre o produtivo, os outros 20% [recaem sobre o] outro lado. Um desequilíbrio enorme.

 

O grande falhanço deste Governo, mais do que tudo, é a economia e a incapacidade de criar postos de trabalho?

O Governo segue caminhos que são contrários a qualquer possibilidade de haver investimento (e de haver criação de emprego e crescimento). Mas o fracasso associa o económico e o social e o político.

 

Porque é que o título do seu livro é “Vencer o Medo”?

Por isto que estava a dizer. Porque as pessoas estão atrofiadas na sua capacidade de acção. Porque muitas estão colocadas num sofrimento individual. Acentuou-se o individualismo. Lançou-se uma espiral regressiva que toma qualquer direito de qualquer indivíduo como um exemplo de excesso. “Se aquele tem e eu não tenho, que aquele deixe de ter para ficar igual a mim”. Isto vai caindo, caindo, isolando as pessoas. Diz-se que o Estado social não é sustentável – ou seja, que a resposta colectiva não existe. Que não há dinheiro para a saúde, para a segurança social – cada um que tente salvar-se. Que não há políticas de emprego – cada pessoa, ela própria, e só por si, que cuidar dos seus problemas. Isto gera medos muito grandes. O contexto global também gera medos. Então, o desafio é mesmo vencer o medo pela razão, pela afirmação de valores de progresso. Não temos que nos subjugar e aceitar o empobrecimento.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012