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Anabela Mota Ribeiro

Marco Martins

30.11.24

Quando me preparava para a entrevista, vi que havia tantos lados por onde começar. Tantas palavras, tantas disciplinas, tantas práticas artísticas. Então, decidi convocar alguém que não encontrei citada, ainda que o seu universo comunique com o teu. Trouxe a Carolina Maria de Jesus, escritora brasileira, autora de Quarto de Despejo - Diário de Uma Favelada.

“Um operário perguntou-me:

— É verdade que você come o que encontra no lixo?

— O custo de vida nos obriga a não ter nojo de nada. Temos que imitar os animais.”

Trabalhas sobre cada uma destas realidades. Sobre o custo de vida, na componente política e social. O trabalho com os excluídos, os que estão na margem. A noção de nojo, central no teu trabalho. A partir de nojo podemos falar de fisicalidade, animalidade, instinto de sobrevivência.

Essa citação tem dois lados que se aproximam do meu trabalho. O trabalho com o actor e o não actor, em que nunca há uma separação entre o que é físico e o que é intelectual. Essa coisa quase do século XIX continua a estar muito presente na nossa sociedade. Trabalho sobre o corpo e sobre a não palavra. Não por acaso tenho-me aproximado — não gosto de chamar dança, porque dança é um conceito muito lato — do trabalho com o corpo. Sobre o gesto. Isso leva-me muito longe na aproximação a vários tipos de linguagem. Esta é uma vertente. É o que me conecta mais com essa frase.

O meu trabalho social, não sei se é trabalho social. O trabalho social é associado a trabalhar em prol de. Sempre que faço um trabalho que tem uma forte componente social, faço questão de deixar claro aos participantes: “Estamos aqui e vamos criar uma coisa”. Pode ser um filme, uma peça. Não gosto de dar um nome no início, e no fim também não. O facto de essa coisa ser misteriosa é um dos motores da criação. Se começas a criar sabendo muito bem o que vais fazer, escusas de fazer. Já está feito.

 

E a palavra nomeia, já circunscreve.

Sim. Num universo de não profissionais, essa palavra presta-se a muitos equívocos. Quando falas de teatro ou falas de performance, tens um universo de referências diferente daquela pessoa com quem estás a falar. O nosso trabalho é muito como o de um cientista. Vais juntando coisas numa pesquisa. Um texto, um movimento. O próprio processo é o objectivo do trabalho. A viagem torna-se o objectivo.

 

“O alvo da viagem é viajar”, citação de um autor alemão do século XVIII. A partir da citação da Carolina Maria de Jesus podemos falar de fisicalidade. Não vamos segmentar, porque o que carateriza a tua obra é a permeabilidade entre as várias disciplinas. Mas o que está no Alice é a ausência do corpo, é a criança desaparecida. Quando olhamos para outros filmes, peças de teatro, o corpo vai assumindo um protagonismo mais evidente. Quando é que o corpo se presentificou como um núcleo a partir do qual operas?

A reflexão sobre o corpo faz-se diariamente em estúdio, no trabalho com os actores. E tem a ver com essa coisa indefinível que é a linguagem do corpo. Com o que o corpo te transmite. Neste momento estou a fazer uma peça que é uma performance, teatro, dança, um híbrido. Chama-se Perfil Perdido. Uma actriz, a Beatriz Batarda, um bailarino, o Romeu Runa. Cada vez mais, o mistério do corpo é o que me impele.

Quando olho para um actor, olho para o actor e para a pessoa E são duas coisas muito distintas. O bailarino e a pessoa em si: interessa-me o Romeu, não me interessa o bailarino. O desenvolvimento técnico de um actor, a perfeição técnica de um intérprete é algo que vais aprendendo a distinguir da própria pessoa. Do que ela é e do que é o seu instinto. É uma palavra muito difícil, instinto. É uma forma superior de inteligência.

 

Vou dinamitar todo o plano da entrevista para atacar aqui. Instinto, forma superior de inteligência.

Sim. Aquilo a que chamamos instinto, é, para um intérprete e um criador, a forma superior de inteligência. Há criadores que dizem: “Só tenho o meu instinto”. O David Lynch diz isso.

 

Onde é que fica o instinto, no onírico?

Pois, por isso que o instinto é essa palavra tão complexa. O instinto tem, não sei se lhe hei-de chamar pensamento, mas é algo projectado no futuro.  Quando dizes assim: “O meu instinto diz-me”, estás a projectar. Ao mesmo tempo é uma sensação criada pelas experiências que tiveste, pelo que viste. E uma percepção muito apurada da circunstância onde estás. O instinto é uma coisa que associamos a uma decisão muito rápida.

 

E associamos a um animal.

É um pensamento muito animalesco.

 

Isso é a contaminação daquilo a que chamamos cultura, com todas as aspas? Pensamento analítico, com todas as aspas? Estou a simplificar para perceber do que é que estamos a falar.

Sim. Isso é claro quando estás a dar aulas, ou tu próprio és aluno. Vês pessoas que vão para uma escola de cinema porque a única coisa que lhes ocorre na vida é fazer cinema ou pintar. E depois tens as pessoas que querem aprender a fazer cinema. Aqui tens de modo claro o instinto. Porque essa vontade não se formaliza. Ela aparece como evidente, imediata.

 

Quase incontornável. É uma palavra um pouco pomposa, mas é mesmo isso: não consegues contornar aquilo que se apresenta como o teu caminho. E dessa forma misteriosa, instintiva. Como uma ideia que se planta no teu ser. Ainda a propósito do Romeu Runa, queria compreender melhor o que disseste. De um lado, a capacidade técnica, a perícia do movimento de um bailarino. Do outro, como é que essa técnica é enformada pela personalidade, pela vida da pessoa que executa o movimento. É isso?

Sim. Em relação a um executante de excelência, dizemos que é um virtuoso. O virtuosismo está num certo lugar, tem a ver com a técnica. A beleza, que está para lá desse virtuosismo, tem a ver com o instinto.

 

É interessante reflectir sobre a ressonância que as palavras virtuoso e instinto têm. Imediatamente pensas, para virtuoso, qualquer coisa como um cristal limpo, translúcido. Para instinto, pensas em sangue, vísceras, noutra matéria. Faz-te sentido, esta ressonância imagética que as palavras têm?

Faz.

 

Não te interessa nada o virtuoso limpo.

O limpo para mim é o perfeito, sem rugosidade. Mas é muito misterioso o que te leva até determinado actor, até determinada pessoa. A uma criação. Não é um tema que me interesse, não é uma situação social que queira expor. É uma atracção, uma sedução por determinada coisa, pessoas ou tema. É isso que te faz investir na descoberta. Começar a trabalhar nos estaleiros navais de Viana do Castelo. Ou num determinado acampamento cigano. Antes é só um mistério. E às vezes chegas ao fim e não descobres exactamente o que te interessava ali.

 

Procuras seguir o teu daemon, essa presença demoníaca que te surge, que te inspira, que ainda está por desvelar. E vais à procura.

Sim. E passa pelas pessoas que vou conhecendo nesse processo.

 

Consegues perceber o que é que te interessa na vida daquelas pessoas?

São vulneráveis (palavra muito difícil). Há uma verdade que está intrínseca, ali. É importante sentir que consigo estabelecer uma relação com aquelas pessoas, directa. Apesar de eu vir de uma área totalmente distinta e de os meus objectivos serem totalmente distintos.

 

A tua origem, ou as tuas origens, são outras. Em que ponto do caminho é que estabeleces a comunicação? Ou até identificação. Na vulnerabilidade daquelas pessoas?

É naquilo que é mais animal. No que é mais instintivo. Comum a todos nós.

 

O que é comum ao ser humano é um instinto de sobrevivência?

Um instinto de sobrevivência, um instinto de justiça. Uma moral que transcende. Mas existe um território que é comum. E consigo identificar-me com o que se passa naquela situação, e sentir necessidade de trabalhar sobre ela.

 

A minha primeira associação é com aquela senhora da peça Great Yarmouth – Provisional Figures que falava de depenar frangos. A peça é uma matéria bruta, que está sempre a socar-te. Como é que manténs intacta toda a rugosidade, o ofício duríssimo de depenar o frango, e esqueces o artifício, o virtuosismo? Porque és um virtuoso no que fazes.

Technique, technique, technique! A técnica é muito importante. A técnica é o que te permite em circunstâncias muito adversas, muito distintas, conseguir executar.

 

É preciso dominá-la de tal maneira que podes quase instintivamente, ou, pelo menos, facilmente, esquecê-la. Esquecê-la como forma de manter aquele objecto inteiro. É isso?

Sim. A Carmo, essa senhora, é o centro daquele espectáculo, é o centro dramatúrgico. Fui convidado a trabalhar em Great Yarmouth para um festival inglês. Um trabalho sobre a comunidade portuguesa que trabalhava nas fábricas. Sentei-me num café durante dias a entrevistar pessoas. Comecei a marcar ensaios. As pessoas não queriam de todo fazer aquele espectáculo. Por várias razões. A vida que contavam do que se passava lá, à família, era toda outra. Eles eram os emigrantes de sucesso em Inglaterra, para todos os efeitos. Não tinham qualquer vontade de aparecer.

 

E tu querias vê-los para lá da cortina.

Depois, o trabalho era tão duro, sob condições tão difíceis, que não tinham nenhuma vontade de, ao fim de um dia de dez horas, e mais duas de caminho, irem para uma sala de ensaio. Falar outra vez da vida deles.

 

Estou a pensar que a resistência não era só em relação à família. Falar contigo era dizerem alto, dizerem a si mesmos: “És um loser. Vieste para aqui para ser o grande vencedor, o emigrante bem sucedido, e afinal...”.

A Carmo foi aquela pessoa que estava lá todos os dias. O espectáculo era só para ser com emigrantes portugueses. Mas não tinha pessoas suficientes. Passava os dias à espera. Comecei a entrevistar ingleses. Decidi fazer uma mistura de portugueses e ingleses. Não conseguia entrar na fábrica. Não deixavam. Ouvia falar da morte dos animais. Aquela ideia de que matavam 15 perus por minuto... Eles falavam muito da morte. A determinada altura, fiz como fazem os detectives. Como o Hitchcock. “Faça lá o gesto de matar um peru”. E ela fez uma vez e ficou abalada. “Então, agora faça 15 por minuto. Você faz na fábrica.” Matança em série.

Ao fazer, desbloqueou uma série de coisas. Era como se tivesse acesso a uma intimidade enorme, que passa pelo corpo, mais do que pelo que dizes. Tens uma maior facilidade em te esconder atrás de palavras. O teu corpo conta outra história. O que muda são as circunstâncias. Mas a técnica pressupõe repetição.

 

Para chegares a fazer quase instintivamente.

No caso da Carmo, estás a falar de um espectáculo ao vivo, uma performance ao vivo. Por isso, a pureza do gesto — a gente diz sempre verdade, que é uma palavra que eu gostava de não usar tanto, mas é isso —, a verdade do gesto será sempre condicionada pela presença, todos os dias, de uma audiência. Maior, menor, diferente. Ainda por cima fizemos espectáculos no mundo todo. Ao repeti-lo muitas vezes, o que estás a fazer é a construir uma representação daquele gesto. Isto é uma definição de arte. Aquela coisa do Picasso: “A lie that tells a bigger truth”. Aquele gesto que faz no primeiro dia é irrepetível. O gesto que ela faz na fábrica, é o gesto que ela faz na fábrica. Tens que criar ao longo dos ensaios um novo gesto.

 

Outra citação do Picasso: Je ne cherche pas, je trouve”. Eu não procuro, eu encontro. Dito de outro modo, primeiro encontramos, depois procuramos.

É isso, é isso! Aquela frase dos cowboys: “Shoot first, ask later”. [risos] Claro que preparo muito os filmes, mas há uma altura em que já não há lugar para perguntas. O melhor é começares a filmar. As perguntas surgirão.

 

Já metemos ao barulho, a partir do Alice e da ausência do corpo, a peça em Great Yarmouth, a peça com o Romeu e a Beatriz. Uma confluência de caminhos e de linguagens. Era evidente, quando começaste, que o teu cinema não ia ser apenas o cinema como o aprendeste, que as peças de teatro não seriam assentes no texto?

Não. Havia uma relação muito evidente com as imagens, uma construção através de imagens.

 

Construção da história, da narrativa?

Construção de objectos a partir de imagens, de manipulação de imagens. Podia ser pintura, podia ser fotografia. Andei no Ar.Co. Não tinha muito jeito para pintar. Comecei a filmar cedo. Percebi que havia pessoas que faziam a sua vida a ser realizadores em Portugal. Não tinha muita relação com o cinema português. Estou a falar dos 15, 16 anos. O cinema que via era outro.

 

O que é que te formou na adolescência? Esse cinema que vias e que era outro, era o quê?

Os meus pais levavam-me bastante ao cinema, felizmente. Via de tudo. A minha mãe tinha um gosto francês. Ia buscar-me à escola e víamos Godard e Truffaut. O meu pai era um cinema mais americano. A televisão também era um bom sítio para ver cinema. Ford, Nicholas Ray, Douglas Sirk, Hitchcock. Ah, o aparecimento dessa instituição que era o videoclube, para mim, foi uma revolução! Era como hoje a internet. Tinhas um videoclube ali na esquina onde ias buscar todos os filmes que quisesses. Não eram os melhores filmes do mundo, mas foram os filmes que me formaram.

 

Ver trash também é importante.

Muito, muito trash. Um cineasta que é muito importante para mim é o John Carpenter. O The Fog é uma obra-prima.

 

Achas importante ver trash para formares o teu gosto, para aprenderes a distinguir?

Ou até para fazeres trash, tu próprio, se quiseres. Para encontrares a tua linguagem, deves ser exposto a muita coisa. Sobretudo, não deves ser conduzido para classificações muito cedo. “Isto é cinema para festivais”, “Isto é cinema do Le Monde”, “Isto é cinema de autor”... é tudo tão evidente. Há coisas que estão nas fronteiras, que não são isto nem aquilo.

 

Lá aparece outra vez a noção de “sujo”.

Gosto dessas fronteiras entre o sagrado e o profano, o erudito e o que é tirado da televisão. Há filmes que se impõem por si. São planetas. Há cineastas com uma linguagem superior. Isso é uma descoberta incrível.

 

Se fizermos um retrato do artista quando jovem, quais são as primeiras constelações? Que filmes e realizadores se impõem como planetas? Podes trazer já artistas plásticos, literatura, tudo o que depois aparece com tanta força.

Há uma descoberta em miúdo. De Spielberg a Ford. A primeira vez em que olhei para um filme enquanto objecto artístico, lembro-me perfeitamente: foi quando vi o Blue Velvet. Ainda é um filme muito marcante. Todo o Lynch é importante para mim.

 

Ficas muito chocado se te disser que não suporto o Lynch? Tenho aversão. Não consigo entrar naquela cabeça.

É muito natural. Todo o trabalho dele é feito do uncanny.

 

Para provocar algo que não se pode explicar, a repulsa até.

Há um certo gosto por universos claustrofóbicos, que eu tinha até uma determinada altura da minha vida. Personagens encerradas sobre elas próprias.

 

Só não percebo é o “até uma determinada altura da minha vida”.

Hoje gosto de coisas muito diferentes.

 

O que marca os teus personagens é serem obsessivos. O primeiro título a espelhar isto é Como Desenhar Um Círculo Perfeito. Um filme centrado na obsessão de um rapaz pela irmã. O Nuno Lopes no São Jorge é um homem preso na sua raiva, à volta de si mesmo. Raiva, dor, tristeza, e já não conseguimos separar estas coisas. Outra peça que ilustra o que quis dizer: As Criadas, do Genet. A semelhança entre as duas actrizes é levado ao limite. A dada altura já não sabemos quem é a Beatriz Batarda e quem é a Sara Carinhas.

E estão presas no seu universo.

 

Num território estreito. Outra peça, também representada no espaço-estúdio do D. Maria, com os dois rapazes...

On An Average Day, Num Dia Igual Aos Outros.

 

Os rapazes, que eram dois irmãos, tinham uma luta física que era sexual, ao mesmo tempo. Por isso apontaria a obsessão e a claustrofobia como núcleos. Vais declinando de modos diferentes, mas estão em tudo o que fazes.

É verdade. Outro filme que adoro, The Conversation, do Coppola: novamente a obsessão.

Ainda sobre os anos de formação: o meu pai gostava muito de Ford. No Ford há coisas de que gosto muito, As Vinhas da Ira. E outras de que não gosto.

 

Adoro esse filme! Lembras-te daquele momento em que eles vão meter gasolina e aparece o gasolineiro a perguntar: “Quantos litros?” E ele: “One”.

É lindo, isso. Lindo, lindo, lindo. A personagem do Henry Fonda impressionou-me muito. O meu filho Leonardo vai fazer 14 anos. Todos os anos escolho uns quantos filmes para ele ver. E começo a pensar nos filmes que me marcaram na infância. A minha mãe estava em Paris. Estamos a falar de ter 14, 15. Foi a altura em que o Kurosawa ganhou a Palma de Ouro com o Ran. Havia uma grande retrospectiva dele no Pompidou, com storyboards, as roupas. Foi uma experiência muito forte, no sentido de que um filme era feito por muitas pessoas. Um filme tem essa coisa da ilusão, até hoje: quando é bom, esqueço-me de que aquilo foi feito. Aquilo está a acontecer, e isso é magnífico.

 

É assinalável que o teu encontro com o Kurosawa tenha sido, não numa sala, mas numa exposição. Perceber o modus operandi deve ter sido impactante.

Sim. É uma coisa que depois te arrasta para a escola. A compreensão de que um filme tem várias dimensões, e que essas dimensões funcionam em universos paralelos. Tenho a certeza de que quando vi o filme não percebi nada do filme. Percebi o essencial. Mas fiquei fascinado. Fascinavam-me aquelas caras, a cor, o contraste, os ambientes.

 

É interessante falares desses anos de formação e apontares realizadores e filmes. Quando sistematizava algumas ideias para a entrevista, dei-me conta de que os teus interlocutores, sejam pessoas com quem interages, sejam aqueles que convocas para esses objectos, vêm menos do cinema do que da literatura ou das artes plásticas. Esta peça com o Romeu e a Beatriz, Shakespeare e Sophie Calle estão lá, mas não estão cineastas.

Pois não. Ah, está o Koudelka. Adoro aquela coisa da folha, que é uma aula sobre ficção e realidade do Koudelka. Ele agarra numa folha e rasga [demonstra]: “Isto é a realidade”. Depois faz assim [imita o som da folha a rasgar]: “Isto é ficção”.

 

O cinema está lá, mas é uma presença menos taxativa. Como se estivesse lá no subterrâneo.

Não acho interessante pôr o cinema enquanto cinema. No outro dia estava a ver uma entrevista da Laurie Anderson, que fez tudo na vida. Cinema, música, invenções, física. Ela disse: “No princípio, ser artista multidisciplinar era uma palavra que me enervava. Agora estou ok com ela”. Eu também não gosto. As pessoas do teatro estão sempre a dizer: “Vê-se mesmo que vens do cinema. Isto é muito cinematográfico”. Consigo perceber o que é que vem do cinema. Tem a ver com a montagem, com a edição.

 

Noção de ritmo?

Sim. As minhas peças não têm ritmo de teatro. Têm um ritmo que se aproxima mais do cinema. A forma como trabalho a luz. As Criadas era um plano sequência, se quisermos falar em cinema. Acho que tem um corte, uma elipse. Todas as outras peças estão construídas sobre elipses atrás de elipses, e às vezes elipses dentro da própria cena. Isso é o cinema. A elipse é das coisas mais belas no cinema. Da gramática do cinema, é a mais extraordinária. Demoras muito a aperfeiçoar.

 

Estávamos a falar dos anos de formação. Gostava de ir até à formação mais sistemática, nos Estados Unidos, aqui no Ar.Co., na Coruña. Como é que te ajudou a encontrar o caminho?

O período de formação da Escola de Cinema foi fundamental. Tive professores fabulosos. Apanhei o António Reis, o Paulo Rocha, o Seixas Santos. Tinham uma ética perante o cinema que me guiou a vida toda. Não era uma escola de artistas. Tinha uma componente mais técnica do que teórica. Ias para lá para ser técnico. As escolas de arte, muitas vezes, têm esse problema. Entras e dizem-te que vais ser um artista. E convences-te de que vais ser um artista antes de fazeres o que quer que seja.

 

Técnica de menos.

[riso] Andar nessa escola foi muito formador. Havia uma coisa que eu precisava de saber mais, que era escrita de guião. A minha ida para os Estados Unidos tinha a ver, ainda, com o fascínio pelo cinema norte-americano dos anos pré-escola. Na NYU tive aulas com o Arthur Miller! Tive essa sorte. E com o Spike Lee. No Conservatório, estudas Ozu, Mizoguchi, Cassavetes. Não, por acaso dás cinema americano clássico: houve um período em que só víamos o Johnny Guitar.

Voltando um bocadinho atrás. Uma das coisas dos videoclubes, é que nos anos 80 (nasci em 72) havia muito cinema americano dos anos 70, que acho que é o mais fabuloso do cinema americano. Um cinema ainda social, do Sidney Lumet, coisas do género.

 

Vais então para os EUA para aperfeiçoar a escrita de guião.

Sou disléxico, não escrevia muito bem. Tinha vontade de aprender uma coisa que na escola não se ensinava. Dramaturgia. Depois lembro-me de estar numa aula de um professor convidado. Ao meu lado, uma série de pessoas que estavam a tentar uma carreira como cineastas. Já tinham escrito muitos guiões. Percebi que não queria ficar ali. Aquela coisa da indústria, não era o que queria. Essa foi a experiência americana.

 

Aprender a escrever: já não é pouco.

É muito, é muito. Aprender a construir dramaturgicamente um guião. Mesmo que seja para destruir. Aquilo de que muitos realizadores falam: chegares ao plateau para filmar e teres um plano, mesmo que o destruas. Dá confiança. Quando o Alice aparece, aparece como um ovni. As pessoas agarraram-se muito à estética, mas havia uma forma de pensar um guião que era distinta da corrente até ali, em Portugal.

 

Há uma coisa importante no Alice, que é trabalhares com o Nuno Lopes e com a Beatriz Batarda. Há um sentimento de comunidade e de tribo que, independentemente da disciplina, se mantém. Se aponto o Nuno Lopes e a Beatriz, tenho que trazer também o Gonçalo M. Tavares e o Ricardo Adolfo.

O Carlos Lopes, que é o meu director de fotografia, sempre.

 

São os teus cúmplices. Não posso dizer que são os actores, porque eles são criadores, também. É como se fosse uma orquestra da qual és maestro?

Sim. A tua família artística é uma coisa que vais construindo. Isso passa-se com a Beatriz. Ainda agora estávamos a fazer a peça em Viseu. Eu estava cá atrás na plateia, ela estava a fazer a peça. E é como se houvesse um fio invisível que me liga a ela. Consigo saber o que é que ela está a pensar, o que é que ela vai fazer, o que é que ela está a tentar compensar, onde é que ela está a tentar chegar. E ela, igual a mim. É uma cumplicidade que demora muitos anos. E uma admiração enorme. E uma curiosidade. Quando a curiosidade acaba, acaba a relação artística.

 

Como é que consegues ter essa cumplicidade, a intimidade que te faz sentir o fio invisível, e ao mesmo tempo ter o mistério que te faz perguntar: “O que é que esta pessoa vai fazer a seguir?”. As duas parecem incompatíveis.

Não, porque não é uma relação amorosa. É uma relação construída com grande amor, mas que se passa a outro nível. Se gostares muito de um criador, da Pina Bausch ou do Almodovar, tens sempre curiosidade. E és sempre surpreendida de alguma forma. Sabes que o que vem aí faz parte de um discurso continuado ao longo dos anos, e tens curiosidade.

O Romeu é uma descoberta nova. Eu tinha uma enorme admiração por ele, pelo trabalho dele com Alain Platel, e curiosidade de o ver em cinema. Começou em teatro, comigo. Um bocadinho para experimentar [riso]. Não lhe disse, mas estava a ver se tínhamos uma cumplicidade. Tenho que gostar das pessoas com quem trabalho. Se não gostar, se não conectarmos, por muito que a ache extraordinária, pode ser um pesadelo.

 

Está a aparecer-me a palavra “incestuosidade”. A relação que descreves com a Beatriz é de uma irmandade, mas às vezes tudo parece roçar em incestuosidade. Ou com o Nuno Lopes. No Como Desenhar Um Círculo Perfeito essa incestuosidade acontece de facto. A incestuosidade, já o Freud dizia, existe como elemento latente. Com os nossos pais, com os nossos irmãos. A maior parte das vezes, felizmente, não é perpetrada. A relação com os teus cúmplices: é como se eles fossem o teu corpo.

Há uma alteridade. Dão o corpo. E os nossos filmes, as nossas peças, são sempre nós. As pessoas muito cúmplices não percebem a que nível é que a comunicação está presente porque ela tem níveis indizíveis. Acontece-me com o director de fotografia, com o Gonçalo M. Tavares. Exigência máxima. É algo que vem da família. Somos menos exigentes com quem não é da família. Porque não temos essa proximidade, não temos esse conhecimento.

 

Também é preciso ter a certeza de que o outro não se vai embora, quando dizes: “És capaz de melhor”.

Isso é muito importante. E que é tudo recuperável. Todas as discussões.

 

A família. Eu disse tribo e comunidade, mas devia ter dito família.

É tribo, gosto mais. Uma coisa de igualdade, embora o cinema seja muito piramidal.

 

Há uma cena no filme que fizeste com o Pistoletto em que o Gonçalo M. Tavares está a escrever. Parecia que estava a foder. E é preciso dizer foder. Dizer fornicar ou fazer amor não chega para falar da entrega física tão grande. Registas isso. O sexo parece que não está lá, e domina a expressão corporal. Isto faz-te sentido?

Sim, faz. Esse momento é dos mais especiais em tudo o que filmei. Primeiro porque é um momento de uma grande intimidade. Quando filmei, sabia que nunca mais ia filmar aquilo. Tinha demorado muito tempo a convencê-lo. Esteve muito tempo antes de começar a escrever, porque não queria fingir que estava a escrever. E depois, escrever como ele escreve, que é uma coisa animal. Essa pulsão dos corpos, essa pulsão visceral, espero que esteja sempre presente no meu trabalho. É também como eu me relaciono com ele. O momento de criação é um momento de morte, mas também podes dizer de sexo.

 

De fecundação?

De fecundação, sim. Neste último filme há uma imagem que ias adorar. Eu faço câmara nos meus filmes. Quero ser o primeiro espectador do meu próprio filme. E quero sentir-me o mais próximo possível do meu actor. Havia uma cena que não estava a correr. Eu estava muito envolvido dentro da própria cena. A Beatriz estava de costas para a câmara. Quem faz de marido dela é o Kris Hitchen (aquele actor famoso que faz o último filme do Ken Loach, o Sorry We Missed You). Eu ia dizendo: “Faz mais assim”.  Ia-lhe espetando o tripé nas costas. Ela, como não queria cortar, continuava a fazer. Ficou com um rasgão nas costas.

 

A palavra é líbido. Schopenhauer fala da vontade da espécie, da voz da espécie, e de como isso se manifesta, em O Mundo Como Vontade e Representação. É disso que estamos a falar.

E isso é independente do género. A forma como filmo o Nuno é a mesma forma como filmo a Beatriz.

 

Por acaso não me surpreendia nada se tivesses uma irmã gémea. Sempre olhei para os dois, a partir dos dois gémeos do Círculo, como um casal fusional, como o teu masculino e o teu feminino. Ao mesmo tempo, eles não são masculino e feminino. É um bocado estranho.

Estava com uma crítica inglesa no outro dia, a falar sobre o meu trabalho.  Precisava de um co-produtor e fiz um pequeno ciclo num cinema em Londres, com a minha produtora. A crítica disse: “Temos que parar com essa coisa de, quando um homem é sensível, fala-se do seu lado feminino. Merda! Porque é que os homens não podem ser sensíveis sem ser femininos?”.

 

Uma das frases mais sensíveis de que me lembro é do Nuno Lopes no São Jorge. Quando vai ao restaurante cobrar a dívida e diz: “O seu peixe vive melhor do que eu”. É um estremeção. O filme está todo nesta frase. Podemos ver a sensibilidade daquele brutamontes na relação com a ex-mulher, com a criança, mas para mim, onde ela aparece de uma maneira mais acabada, é nessa frase.

Essa frase não existia no guião. Nem a cena dos peixes. Eu estava a visitar uns sítios para fazer a cena da cobrança. Queria assim um chef Avillez da vida. O restaurante tinha aquele aquário. Aquele aquário intrigou-me. Um dia estávamos a filmar e achei que era melhor pôr a câmara no Nuno, fascinado a olhar para o aquário. No dia seguinte fomos filmar outra vez, agora a dar de comer aos peixes. E essa frase apareceu. Os filmes são mesmo assim. A personagem vai aparecendo de muitas maneiras. Não é só na interpretação do actor. É a forma como nos vamos projectando nela à medida que filmamos.

 

Essa dimensão política e social afirmou-se partir do São Jorge. Não estava tão presente na primeira fase.

Foram várias coisas. O país mudou muito. Vivíamos numa época de abastança, uma explosão económica incrível, os anos 90. E, como alguém que nunca tinha experienciado uma crise económica, quando aparece a primeira, é um call to action, um grito de alerta. Coincide com uma transformação social. Lisboa começa a transformar-se. A gentrificação. O João Salavisa estava a filmar no Brasil, o Miguel Gomes ia filmar no Brasil, outro ia filmar em África. Ou seja, já ninguém estava a filmar em Lisboa. Como se Lisboa fosse só um cenário. Já não tinha pessoas, já não tinha vidas.

Eu tinha feito os estaleiros navais de Viana do Castelo. O meu primeiro projecto social, porque política é tudo o que se faz. Acho que o Alice é um filme político. Depois fiz o São Jorge. Quando vou a Inglaterra e começo a trabalhar com aquela comunidade, percebo que aquilo era a segunda parte do meu filme. Era para onde o Jorge tinha ido, tinha ido para Inglaterra.

A minha família era muito politizada. O meu pai foi do PC durante bastante tempo. Eu nunca fui militante de um partido. Acompanhava o meu pai na festa do Avante, mas sentia que as minhas lutas já eram outras.

 

Essas já não eram precisas.

As lutas grandes já tinham sido travadas. Nós éramos uns privilegiados. Já tínhamos nascido em liberdade. Aparece a crise e sinto vontade de falar sobre aquelas pessoas. Entrava por todos os poros. Não havia nenhuma forma de contares uma história sem falares daquilo.

O guião do São Jorge nasce de uma conversa minha com o Nuno Lopes. “Gostava de fazer um boxeur”. Achei aquilo uma péssima ideia porque havia o Belarmino.

 

Como é que descolas do Belarmino do Fernando Lopes?

Fazer o Belarmino 2.1 [risos]. Mas eu queria voltar a filmar. O facto de o Como Desenhar Um Círculo Perfeito não ter sido bem recebido foi muito duro. Fiquei zangado com o cinema. Pronto, acontece. Como o meu primeiro filme tinha corrido tão bem, achava que ia ser sempre assim.

 

Se não é obrigatório, é muito comum que a segunda obra, em todas as áreas, tenha um acolhimento mais crítico, difícil ou mesmo destrutivo.

É comum. Porque as pessoas constroem uma ideia de ti baseada num só filme. É muito redutor, está tudo à espera de uma coisa que não sabes qual é.

 

Que faças uma Alice 2.1.

Sim. E eu gosto muito do risco. Não gosto nada de repetir fórmulas. Sou daqueles que em cada parede vêem uma porta. Queria fazer um filme mais íntimo, mais privado, sobre a casa, sobre a família. E mais fechado. Estávamos neste processo e ele [Nuno Lopes] disse que queria fazer um boxeur. Tenho normalmente pessoas que trabalham comigo para fazer investigação. Ficam muito tempo a fazer entrevistas, depois transcrevem, vou lendo. A Mariana Fonseca estava a fazer isso comigo. Disse: “Vai aos clubes de boxe fazer umas entrevistas”. Rapidamente começaram a surgir muitos desses boxeurs que tinham deixado de fazer de porteiros de discotecas, e serviços de segurança, e que estavam a fazer cobranças. Uns estavam com pulseira electrónica. Não é um filme sobre boxe, de todo. Passou a ser um filme sobre a pobreza.

 

Foi a palavra — pobreza — que passou a dominar as tuas obras.

A pobreza é a frase do peixe. A imagem central do S. Jorge era essa e a cena da asma na cama pequenina. No Alice, a imagem central sobre a qual construí o filme era o homem no meio da cidade, isolado, a dar os flyers.

 

No polo oposto, o dinheiro, o glamour da publicidade. Como é que a publicidade não foi só o sítio onde ias ganhar dinheiro? Para um criador como tu, se fosse apenas isso já terias deixado de fazer publicidade.

Já teria deixado. Na verdade, nos últimos anos faço os filmes da NOS e pouco mais. É uma relação construída ao longo de muitos anos onde tenho uma certa liberdade. E são filmes com um orçamento bastante grande, dá-me para fazer dois por ano. Vou parar à publicidade porque, quando saí da escola de cinema, tinha feito uma curta-metragem com o João Brás. Era o montador dos meus dois primeiros filmes e meu colega no Conservatório. Tinha corrido bem, tinha ganho o Festival de Vila do Conde. Era uma obra muito frágil, muito de princípio. Depois comecei a fazer trabalho de assistência de realização, assistência de produção. Em Portugal e na Europa o trabalho de assistência de realização é ligeiramente diferente do mundo anglo-saxónico, onde é um trabalho altamente profissionalizado. Em Portugal, é encarado como um passo para realizar. Mas não sentia nenhum impulso para fazer uma longa-metragem. Acho que não tinha discurso.

 

Ainda não tinhas discurso.

Não tinha caminho, não sabia o caminho. E de repente aconteceu. Estava a fazer um curso nos Estados Unidos. Estava lá um realizador sul-africano que conhecia outro sul-africano que trabalhava cá em Portugal. Era luso-sul-africano, chamava-se Diamantino, tinha uma produtora de publicidade. Decidi experimentar, fui como assistente dele. Rapidamente passei a realizar. A publicidade era muito diferente do que é hoje. Estávamos nos anos da economia florescente. Todos os dias havia scripts, podia-se escolher. Chegava-se a filmar três filmes num mês. Era uma avalanche.

 

Ficaste rico, logo.

Fiquei logo rico, o que era bom. A profissionalização era muito diferente da do cinema. Tecnicamente podias experimentar tudo, as câmaras todas, as luzes todas, havia uma indústria. Que é uma coisa que no cinema português nunca existiu. Acabei por ficar muito tempo. Foi como um laboratório de linguagens. Lembro-me perfeitamente do dia em que cheguei a casa, cansado daquilo, e disse: “Tenho que escrever um filme”. Não sinto que me tenha ocupado demasiado espaço na vida. Que me tenha atrasado a fazer a minha primeira longa-metragem. Pelo contrário. Sinto que, quando cheguei lá, estava, pelo menos tecnicamente, mais preparado. A minha formação tinha sido em cinema. Estava cansado da publicidade. Não queria fazer uma publicidade de duas horas. Não queria nada trazer a linguagem da publicidade para o cinema.

O trabalho em equipa na publicidade era novo para mim. Era muito competitivo. Não só entre as marcas como entre as agências, como entre os realizadores. Essa parte também me atraía. Punhas um filme no ar e tinha que ser melhor que o outro, e melhor que o outro.

 

Uma arena, sem ser ensemble.

Uma arena, mesmo. Havia guerras. Pessoas que não se falavam. Comecei com o Alberto Rodrigues, convidou-me a fazer uma produtora. “Porque não? ‘bora lá!” Sem nunca ter tido vontade de ter uma produtora. Queria era fazer filmes. Mas a estrutura mudou. Permitiu-me ter uma liberdade criativa maior. Já não tinha que dar contas a ninguém. Ensinou-me muito bem o aspecto economicista do que é fazer cinema, controlar um orçamento, saber onde vou gastar o dinheiro. É uma coisa que vai ser muito importante para o resto da vida. Saber que não posso filmar oito meses, ensaiar dez. Tem que se escolher o que se quer mesmo.

 

Escolher onde pões as fichas. As fichas: tanto dá dinheiro como tempo. Que vem a ser a mesma coisa.

Sim. E encontrar o processo. Não ia chamar método porque não tenho nenhum método, mas tenho um processo. E sei, de facto, o que são os passos essenciais na construção de um filme.

 

Como é que olhas quando estás a operar?

Linda pergunta. É muito bonita, essa pergunta. É um bocado fotográfico, no sentido de procurar onde é que está a tensão. Onde está o instante decisivo daquele momento. Sendo que não estás a trabalhar em fotografia, não estás a trabalhar na suspensão do tempo. Uma fotografia é um bocado de tempo que se tira. O filme não. Enquadrar é escolher, sempre. Vamos ao início: é o momento de maior instinto. Dentro do enquadramento há sempre uma escolha. Essa escolha está sempre a mudar de acordo com a acção que se desenrola à nossa frente. Escolhe-se aproximar a câmara ou afastar a câmara de acordo com a intensidade e a natureza que a acção tem.  É um acto estético, mas é sobretudo uma coisa moral. Também é política. Onde é que pões a câmara? É uma questão de uma grande complexidade. No fim, é um acto instintivo.

 

Estava a assistir ao teu silêncio e hesitação.

É uma pergunta muito complicada.

 

Eu sei. Quero é saber como é que pegas na câmara. Como é que manuseias aquele corpo-máquina, que é um prolongamento do teu.

Ah, mas isso com a câmara é um acto sexual, completamente. Depende da cena, depende da câmara. O Araki é que diz: “Escolho a câmara como quem escolhe os seus parceiros sexuais”. Se é grande, se é pequena, se pode abraçá-la, se não. Se tens uma câmara enorme, de estúdio, vais compor muito a cena. Se tens uma câmara pequena, sabes que é mais íntima, que se move mais.

 

Onde é que pões as mãos?

À volta.

 

Abraças assim?

Abraço assim. As câmaras têm uma pega que eu nunca uso. É uma coisa de abraço. O mais perto possível do corpo. A ideia é ser só um corpo, tu e a câmara. E nunca olhar pelo monitor. Se estiver a fazer uma coisa de muitas horas, se calhar há alturas em que estou a olhar. Sempre que me quero entregar completamente estou a olhar pelo visor. O perigo de olhar por um monitor é criar um distanciamento crítico e analítico em relação ao acto de criação. Esse momento, crítico e analítico, é anterior e posterior. No momento de fazer, é o gesto da mão.

 

Estás a ver?, estamos sempre com gémeos, no incesto. Agora és tu com a máquina.

Para mim tem que ser uma coisa física. O acto de criação é físico. Há muitos realizadores para quem é sempre um acto cerebral e distanciado. Sentam-se num video assist e está lá o director de fotografia a enquadrar. E são realizadores fantásticos. São formas diferentes de chegar a coisas diferentes. Ninguém pode fazer um filme visceral sentado, não acredito nisso. [risos]

 

Terminamos. Queres dizer mais alguma coisa?

Os realizadores que escrevem, que montam, estão sempre em processos psicanalíticos. Estás sempre a destruir o que fizeste, a lutar contra ti próprio. O Truffaut dizia uma coisa muito louca: “Quando filmas estás a lutar contra o teu guião. Quando estás a montar estás a lutar contra o que filmaste”. É como se fosse outra pessoa. Um filme permite aquela coisa que é muito importante na arte: ter esses momentos de ataque, que são físicos, e ter momentos em que se consegue ver de fora. O filme permite isso na passagem de uma fase para a outra, de uma linguagem para a outra, da linguagem do guião para a linguagem do filme, e depois na montagem, que é uma última escrita.

 

Publicado originalmente no Folha em Branco 2022 do Clube da Criatividade de Portugal, uma homenagem a Marco Martins