Margarida Figueiredo
Margarida Figueiredo foi a primeira mulher licenciada a entrar no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Ainda antes do 25 de Abril. E foi, com Ana Martinho, a primeira embaixadora full rank, em 2005. Reformou-se no passado dia 8 de Março [2012], dia da Mulher. Quando chegou às Necessidades, foi tudo ver “a gaja”.
Transbordante talvez seja uma boa palavra para definir Margarida Figueiredo. Foi uma embaixadora atípica, como se disse em síntese num artigo do Expresso. “Atípica, é bom”, concorda.
Nasceu em 1947 numa família burguesa do Porto. A mãe dava-se com Agustina. O pai dividia escritório com Alberto Luís. Ela e os irmãos eram “Os Sá Carneiros”. Prima de Francisco.
Podia ter sido tudo. Discutiu as hormonas na carne de vitela em Bruxelas e as ogivas nucleares na Nato. O eclectismo é um dos atributos que se exigem a um diplomata. Tem um espírito arguto, escreveu sobre ela Medeiros Ferreira, em cujo gabinete trabalhou quando este era ministro dos Negócios Estrangeiros. Mesmo os seus detractores apontam-lhe uma inteligência poderosa. Faz parte do grupo que reúne no Procópio, a discutir o país. Bebiam whisky, depois cerveja, agora coca-cola. “Qualquer dia bebemos leite Vigor!” O humor é uma faca que tem afiada. Como a língua.
Ouvi-la é auscultar um tempo e uma geração. Tem por trás de si um enorme desenho de Pomar, que lhe comprou em Paris e pagou em prestações. “E assim vivo com Pessoa e Almada”. Há por todo o lado livros, quadros, cigarros.
Porque é que é de esquerda? Como é que foi feita essa definição ideológica?
No tempo do Dr. Salazar não era preciso ser muito de esquerda para ser anti-Salazar. Os meus pais eram ambos do chamado reviralho. A minha mãe fortemente mais à esquerda. O meu pai, como Sá Carneiro que era, puxava-lhe o pé para o conservadorismo. Embora isso nunca tivesse influenciado a nossa educação. Éramos três filhos e três filhas e a paridade era fomentada. Achava que as meninas maquilharem-se era uma pena; mas não proibia. Fui educada no sentido de assumir sempre qualquer ideia que tivesse. Não eram admitidas mentiras nem dissimulações.
Quando ouvimos o apelido Sá Carneiro pensamos num posicionamento à direita. A sua mãe era comunista.
Era. De convicção. Nunca foi militante. A minha mãe foi das primeiras mulheres a formar-se em Coimbra, e nunca usou profissionalmente o nome Sá Carneiro. Maria Laura de Araújo foi o nome de guerra com que escreveu livros. Os meus pais eram ambos de Barcelos. O meu avô materno, a quem a minha mãe tinha uma enorme ligação, era maçon e ateu. O meu pai era de uma família conservadora, católica. A minha mãe formou-se com notas muito altas e foi-lhe oferecida uma bolsa para ir para Londres trabalhar e estudar com o Bertrand Russell. O meu avô ficou entusiasmadíssimo. A minha mãe recusou porque se queria casar. Como ela disse, muito mais tarde: “E eu que julguei que me ia casar por amor…”.
E não foi por amor que casou e ficou em Portugal?
Foi. Mas ao fim de 32 anos de casada, acabou por se separar. Casou pela igreja, senão o avô do meu pai morria. Pôs como contrapartida que nenhum de nós era educado catolicamente. Fomos baptizados, e parou aí. Voltando à primeira pergunta: falávamos muito de política, sobretudo à mesa. Os meus pais provocavam grandes debates sobre o Salazarismo, o regime. Quando Soares foi mandado para o exílio houve quase uma vigília dentro de casa. Os meus pais faziam parte de um grupo que se reunia num café do Porto, o Primus. Ao sábado, na hora do almoço. Os advogados Cal Brandão, o António Macedo (que foi presidente do PS), a Virgínia Moura, o Artur Santos Silva, o Rui Luís Gomes. Com o 25 de Abril, a maior parte foi para o PS e o PC, e outros para o PSD. Lembro-me de estar ao colo do Alexandre Babo, que eu achava uma brasa.
Os seus pais tinham uma atitude prosélita?
Nada. E toda a gente passou por todas as fases. A minha irmã mais nova passou por uma fase mística e foi fazer retiros. O meu irmão, que hoje é arquitecto, era militante do PC; andava de camisas aos quadrados e sandálias porque achava que era um proletário; depois passou a vestir como um burguês, com blazer. Voou directamente do comité central para o PSD. Eu, no meio disto: sou muito parecida com a minha mãe. Antes quebrar que torcer. O que me trouxe algumas dificuldades. A minha mãe foi uma senhora avançada para a época, mas nasceu em 1916. Tudo aquilo que não fez queria que eu fizesse. Tive sempre a mania da independência; quer independência real, quer de pensamento. Queria viver sozinha. A minha mãe acha isso um horror. Achava que tinha sido tão vanguardista, que além do que ela tinha feito, só a má vida. O meu pai, de vez em quando, dava-nos umas tareias. O que não nos fez mal nenhum. Mas dava.
O que é que lhe provocava a ira? O que é que o fazia perder a cabeça?
Fazíamos coisas delirantes. Um dia, uma empregada telefonou, para o meu pai vir a casa, porque estávamos os seis nus, pintados com tinta azul. O meu pai dava estaladões, outras vezes batia com a palmatória. Assim que mostrássemos algum arrependimento, parava. Dessa vez, chorávamos e ficávamos às riscas. A tinta ia saindo [riso]. A minha mãe punha-nos de castigo. Comigo, o castigo não pegava porque o castigo era ficar em casa. Eu ficava a ler. Sem mo dizer, orientava-me as leituras. A casa estava cheia de livros. Livros proibidos pela PIDE e pelo Index, era mato. Tudo isso e a forte personalidade da minha mãe influenciaram as minhas escolhas.
Estudou Histórico-Filosóficas, o mesmo que a sua mãe.
Inconscientemente, acho que foi a influência da minha mãe. No quinto ano do liceu quis ir para as Belas Artes. Que tinham muito má fama. Libertinagem. Fazia matemática como hoje faço sudoku. Era um entretém. Tive 20. Gostei de Filosofia, de pensar. Os meus pais não me disseram nada. Formei-me. Fui convidada para assistente da faculdade. Em casa era tudo professor, menos o meu pai que era advogado. Recusei. Queria sair do âmbito da família. Foi quando resolvi vir para Lisboa.
Onde vivia, no 25 de Abril. Estava politicamente envolvida?
Estava no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Eu queria participar. A primeira coisa que me surgiu e onde tinha amigos foi o MES. Mas o ministro dos Negócios Estrangeiros era Mário Soares. Tinha crescido a pensar no Soares como num monumento. Nas conversas de café, com os meus pais, o António Macedo lia cartas que tinha recebido do Soares. A dizer que estava iminente a revolução. Que depois não acontecia.
Soares foi um grande ministro dos Negócios Estrangeiros. Era um ministério muito formal. Não se podia ir ao andar do ministro. Depois, o ministro passeava pelo ministério. Almoçava nos restaurantes ao pé do ministério. Se houvesse um lugar numa mesa onde estavam funcionárias administrativas, sentava-se com elas. Fui destacada para um trabalho e conheci-o pessoalmente. Achei que o Partido Socialista era o Partido Socialista. E foi para aí que fui.
Foi Soares que a fez escolher o PS. Nesse período quente, era suficientemente à esquerda para a minha mãe?
Quando ia ao Porto visitar a família, diziam: “Vem aí a voz da reacção. Tudo calado, vem aí a direita”!
Os Sá Carneiro, contudo, estavam ainda mais à direita.
Nós éramos o ramo esquerdista da família. Sempre me dei muito bem com o Francisco, que tinha uma personalidade fortíssima, e de quem gostava muito como primo. Foi sempre um social-democrata a sério, e um progressista, antes do 25 de Abril. Era primo direito do meu pai.
De apelido, Sá Carneiro Figueiredo. Resuma a genealogia.
O meu bisavô Sá Carneiro teve 24 filhos, todos da mesma mulher. Primeiro teve só filhas, a mais nova das quais era mãe do meu pai. Depois começaram a ter rapazes, o mais velho dos quais era o pai do Francisco. Portanto o meu pai era praticamente da idade dos tios mais novos. O Francisco, um pedaço mais velho do que eu, estava mais próximo da minha geração.
O PSD nunca foi uma opção para si?
Um dia ele perguntou-me porque é que não fui para o PSD. Respondi: “Porque somos primos”. [riso] Para mim, não era uma questão de família. Era muito para além disso. Nunca tive vontade de ir para o PSD. Mas não ficou surpreendido. Ao Artur Santos Silva, em casa de quem passava férias, e que adorava, perguntei porque é que tinha ido para o PPD. “Porque tenho alguma coisinha de meu”. Não sei se isso justifica [a escolha]. Eu não tinha nada de meu.
Sempre nos demos com pessoas de todos os quadrantes. O grupo da canasta dizia à minha mãe que ela era muito esquerdista mas que andava sempre muito bem vestida. “Não é suposto andar esfarrapada porque defendo os desprotegidos”. Eu também gostei sempre de coisas boas.
Qual era o dano possível para uma família como a vossa por ser do reviralho?
Era uma família da alta burguesia, no Porto. Não pertencíamos à alta burguesia por linhagem ou por herança. Era produto do trabalho dos meus pais. Só muito tarde percebi o que era ter seis filhos e viver do ordenado.
O meu pai sempre foi de poucas falas. Vivia para o Direito. A minha mãe escrevia livros sobre o Estruturalismo e o Lévi-Strauss e isso dava-lhe pano para fazer conferências. A Virgínia Moura, numa conferência dessas, de repente levantou-se: “Morra Salazar!”. E foi presa. A minha mãe não era desse género. Era o que dizia. À bon entendeur… Nas entrelinhas.
A inteligência sempre foi o valor mais estimado em sua casa?
Sim. Tínhamos de ser os seis adiantados mentais.
Davam-se sobretudo com iguais? Intelectuais, pessoas do reviralho…
Um dos grandes amigos da minha mãe era o Óscar Lopes. A certa altura foi proibido de dar aulas. Desistimos da cadeira de literatura no liceu, por decisão dos meus pais, para ter explicações com ele. Um dos seus filhos esteve escondido muito tempo em nossa casa. Mas fomos educados a respeitar toda a gente. A minha mãe dava aulas na Faculdade de Letras. (Doutorou-se a um mês de fazer 70 anos, o que dá muito da personalidade dela.) Dizia que os seus melhores alunos de sempre tinham sido o Vasco Graça Moura e o Pacheco Pereira. Foram ambos para o PSD. Um dia, estava eu na Assembleia, veio almoçar comigo e queria fazer uma espera ao Pacheco! Para lhe perguntar como é que era possível. [riso]
Esteve por dentro da política. Desencantou-se com ela? Não transparece no seu discurso a amargura.
Não. Gostava imenso de ter tido um cargo político. A desilusão é portuguesa. Continuo a interessar-me imenso por política internacional. Embora não seja actualmente uma coisa saudável. Mas gosto. Talvez por isso tenha escolhido a diplomacia. O que é mau é ser diplomata português, não é ser diplomata.
O que é mau é a política portuguesa, não é a política?
Exactamente.
Isso acontece, sobretudo, pela falta de líderes, de figuras inspiradoras?
Desde há uns tempos, sim. Estive dez anos na União Europeia, quando eram chefes de governo o [Helmut] Kohl, o François Mitterrand, o Soares, o Felipe González. Sobretudo havia o Jacques Delors na Comissão. No dia em que saiu, era palpável a diferença. A hipocrisia colossal que é aquilo tudo passou a vir ao de cima. Acho que o projecto europeu acabou nesse dia. Nunca mais apareceu um líder com a dimensão de um Kohl.
Esses líderes eram fruto de um tempo? São duas gerações de excepção.
Fruto de um tempo, sim. Tudo isto tem a ver com imensa coisa. Com o falhanço do comunismo. Com o unilateralismo em que se caiu com o Bush-Filho nos EUA. A Europa começou a perder velocidade. As guerras preventivas. A economia a modificar-se e a cair no liberalismo selvagem que hoje temos. É por ciclos. Um dos grandes culpados foi o Tony Blair.
Porque é que aponta o dedo a Blair e não a Bush?
Os EUA não são a União Europeia. Embora a União Europeia tivesse desde sempre a miragem de ser uma espécie de Estados Unidos sem se federalizar. Faz tratados do mais federalista que há, mas ninguém pode usar a palavra federal porque os nacionalismos exacerbam-se. O Bush teve muita culpa. Simplesmente Tony Blair era um bluff em matéria de socialismo. Descobriu a história da Terceira Via que rebentou com tudo. E uma coisa era a relação com Clinton. Outra, a relação com Bush. Bush era uma pessoa perturbada. Um fanático. Blair alinhou. Os jovens prometedores nunca mais foram prometedores. Zapatero foi uma desilusão. Fiquei muito contente quando foi eleito, apostei muito nele. Era uma espécie de António José Seguro…
Voltemos aos anos 70. O verbo mais conjugado era participar – que, aliás, já usou.
Sou um produto dessa geração. A geração dos anos 60 tinha grandes ideais. Crescemos todos no antigo regime.
Ocorreu-lhe seguir uma carreira política activa?
Surgiu várias vezes essa ideia. Sobretudo na altura do 25 de Abril. A solução automática para o meu curso era ir dar aulas. Fui colocada num liceu do Porto. Encontrei as velhas do meu tempo, as minhas professoras. Fui professora da Elisa Ferreira, que é muito inteligente, a quem dei 17. Mal sabia que viria a ser ministra.
E você, não.
A minha ideia não era essa. Era realmente o participar. Mas já então havia um grande centralismo em Lisboa. Fiz o curso no Porto e saí de casa em ruptura com os meus pais. Eu queria sair de casa para ser livre, e, sendo livre, eventualmente me casar. Ter filhos, sim.
Essa crise deu-se em 1968? É o discurso de uma soixante-huitarde.
Entrei para a faculdade em 1965, saí em 1970. Isto passava-se em 70/71. Um dia tive uma grande discussão com o meu pai. “Dr. Sá Carneiro, não me provoque”. [riso] Meti uns tarecos num saco e vim para Lisboa arranjar emprego. Tive vários empregos. Arranjei uma entrevista com o Dr. Balsemão. Queria ir para o Expresso. Na sala de espera estava eu e as Três Marias. “Proponho-lhe que colabore connosco como faz o seu primo Francisco” (que escrevia uma coluna). Mas eu precisava de um emprego. Acabou aí a minha vontade de ser jornalista.
Presumo que Balsemão não recebesse uma a uma as pessoas que lhe pediam emprego. Recebeu-a porque o seu apelido era Sá Carneiro?
Não teve nada a ver com o Francisco. Mas com um tio do meu namorado, que viria a ser meu marido, a quem pedi que me arranjasse uma entrevista. Mas ele sabia que eu era Sá Carneiro.
O que pergunto é em que momentos o seu apelido e a sua proveniência social foram marcantes na sua vida. Ou foi você mesma muito cedo, independentemente do background familiar?
Acho que nunca se é independente do background familiar. O meu pai achava que as pessoas valem pelo seu valor intrínseco. Fazia-nos prelecções sobre o tema. Não nos pôs Sá Carneiro no nome porque devíamos valer por nós próprios e não pelo apelido. Pôs-nos Figueiredo, que é um nome mais vulgar. Aos meus irmãos mais velhos pôs dois apelidos da minha mãe, Fernandes Tomás, além de Araújo, e Figueiredo. A minha mãe ficou radiante, tinha muito orgulho nessa ascendência maçon. Eu sou Maria Margarida Araújo Figueiredo. Mas éramos “Os Sá Carneiros”. A norte do Mondego sou a Guida Sá Carneiro. Para baixo, sou Margarida Figueiredo. Que é o meu nome oficial. E como funcionária pública, não podia ter outro.
Mesmo não estando na cédula, atende quando lhe chamam Sá Carneiro.
Quando o Francisco foi nomeado primeiro-ministro, no MNE, mesmo aqueles com quem não me dava, ofereceram-me boleia para a tomada de posse. Nunca fui a tomada de posse de governo nenhum. São uma chumbada. O nome nunca me facilitou a vida. Nem dificultou, verdade seja dita. O substracto familiar ajudou imenso.
Em Lisboa, procurou emprego, fez entrevistas. Foi logo aí que foi dar ao MNE?
Foi. Entretanto dei aulas. Dei explicações. Espalhei o meu currículo pelo país inteiro. Escrevi para o Serviço Nacional de Emprego, para onde escreviam, como diziam os meus amigos, torneiros-mecânicos e metalúrgicos [a pedir emprego]. Responderam. Tinham vaga para torneiros-mecânicos e metalúrgicos. Não tinham vaga para mim, mas tinham apreciado o meu currículo. Fiz testes de personalidade e de inteligência. Era o teste de Raven, que tive todo certo. Não era grande mérito nem sinal de grande QI, porque tinha-o estudado na faculdade. Na entrevista para que fui chamada, o psicólogo disse-me: “Você é ateia”. Sou.
Tinha um amigo de infância que estava no MNE. Telefonou-me a dizer: “Tu queres vir para o ministério? Podes vir a ser diplomata”. Salazar proibia as mulheres de ser diplomatas com o grande argumento de que as mulheres não mantêm segredos de Estado. O que é um argumento extraordinário conhecendo o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Com certeza era por achar que as mulheres deviam estar em casa a tratar do lar e dos maridos.
Marcelo Caetano dizia às alunas em Direito que fossem para casa coser meias. Traduz o espírito daquele tempo.
Houve uma grande esperança de abertura com Marcelo. Um pequeno grupo, liderado pelo embaixador Tomás Andresen, achava inconcebível que Portugal não tivesse mulheres [no corpo diplomático]. Até o Togo já tinha. Esse amigo de infância, que já morreu, o embaixador Ribera, lá me pôs nos píncaros. O embaixador Andresen fascinou-me logo. Ainda por cima, tinha uns olhos verdes extraordinários.
Tem um fraquinho por homens bonitos…
Tenho, claro! “Começa amanhã”, disse-me.
Tinha outras possibilidades de emprego. Porque é que optou pelo MNE?
O MNE era o que pagava menos, e era incerto. O Instituto Nacional de Emprego, que era o mais bem pago, era no Algarve e em Castelo Branco. Morria. Gosto de cidade, de barulho. Achei que o MNE era política internacional. Que qualquer dia tinha um cargo político internacional. Foi uma aposta no futuro. E um desafio. Adoro desafios. O facto de ser a primeira mulher formada a entrar, [seduziu-me]. Provar que não éramos todas mongoloides. Há de tudo. Como na farmácia e como nos homens.
Como é que foi o primeiro dia no MNE?
Fui instalada numa sala onde havia oito pessoas. Seis diplomatas, um senhor contratado e eu, contratada também. Fui muito bem recebida. Desfilou toda a gente do ministério. Como um deles me disse: “Não se fala de outra coisa na casa. Toda a gente quer conhecer a gaja”. [riso] A gaja era eu com 27 anos. Gira, magrinha, muito compostinha. Uns, com graça, perguntavam: “Você pensou bem?”. A maior parte, extremamente paternalista.
Que tipo de conselhos lhe davam?
“Tenha muito cuidado. A casa defende sempre a casa”. Umas coisas assim. “Tem de se ser muito hábil para saber onde se está e onde se vai parar”. O António Franco e o José Vieira Branco entraram e disseram: “Aqui tem as nossas extensões. Tudo o que precisar”. Pensei: “Estes são os que vou fixar”.
Percebeu que tinha de se afirmar?
Não. Afirmada já eu estava. Comecei a trabalhar. Fui mandada para uma reunião no Fundo de Fomento de Exportação. Estava no ministério há 20 dias. “Sou muito novata”. O meu superior respondeu-me (ainda lhe sou grata por isso): “Com essa boquilha e esse ar inteligente, dá cabo de qualquer reunião”.
Sempre confiou que a sua arma, naquele meio ou em qualquer outro, era a inteligência?
Nunca me achei estúpida. Mas nunca fui de dizer que era um crânio. Hoje, pelo que vejo, até acho que sou! [riso] Sempre fui, e isso foi instigado pelos meus pais, auto-confiante. Ainda tenho essa convicção: uma pessoa que aprende a ler, se não for estúpida, faz o que quer que seja. É uma questão de se empenhar. Quando cheguei, não escrevia logo notas diplomáticas, que têm fórmulas, em bom francês e em bom inglês. Até saber. Ninguém nasce ensinado. A diplomacia não é a arte de bem mentir. Dizem-me que sou atípica porque digo o que penso. Sei é escolher a linguagem com que o digo. Ser diplomata não é, de maneira nenhuma, sinónimo de hipócrita. O que é preciso é ter o mínimo de caco e de bom senso.
De facto, associa-se à diplomacia uma certa dissimulação. O estar bem com todos. O promover a ponte. A conciliação.
Nunca fui dissimulada. Não posso dizer que isso me tenha valido dissabores. Só algumas discussões. As pessoas sabiam sempre com o que contar. No ministério predominavam os conservadores. Nos 40 anos em que lá estive, nunca fui vítima de um acto de machismo. Nunca fui preterida por nenhum homem. Tive os postos que quis. É preciso ser hábil? É.
Como é que fazia?
Ia ter com os directores gerais ou com quem decidia, em vez de andar a pedir ao amigo do amigo. Dizia o que é que gostava de ter e porquê.
Frontalidade.
E transparência. Não tenho nada a esconder. Coisa que, se calhar, muitos diplomatas têm. Tive sempre a convicção de que o ministério podia lucrar mais comigo do que eu com o ministério.
Isso pode ser lido como uma manifestação de soberba.
Por isso hesito em dizê-la. Essa e outras. Dar graxa porque agora o ministro é outro? Não. “Ou consigo por mim própria. Ou mandam-me embora.” Alguns colegas chamavam-me inconsciente. No meu léxico, a isto chama-se não ser oportunista. “Se não puder ser diplomata, vou fazer ménages.”
Isso é uma boutade. Sabe bem que não iria fazer ménages.
Nunca fui carreirista. Se precisasse de fazer ménages, sendo a Margarida Sá Carneiro, sendo a Margarida Figueiredo, licenciada em Filosofia, tê-lo-ia feito. Quando entrei para o ministério era solteira, mas casei logo a seguir. Também achei que era por amor. [riso] Não resultou. Fiz duas filhas que achei sempre que não eram para estragar. Eduquei-as sozinha, e bem. Se tivesse de largar o ministério, tinha de trabalhar. Nunca nadei em dinheiro. Naturalmente estar em Varsóvia a decidir a melhor estratégia para isto ou para aquilo é mais estimulante do que esfregar soalhos.
Como foram os primeiros tempos depois da revolução no MNE?
No dia em que Soares chegou, em menos de dois minutos estava o MNE inteiro no átrio. Tudo a tirar o brasão do dedo e a descobrir a lavadeira na árvore genealógica. Soares abriu a carreira a todos os cursos universitários e aos dois sexos. Concorreram imensas mulheres e imensos homens. Entrei em 1976. Entretanto tinha-me casado, engravidei, tive a minha filha mais velha. Fiz o curso estudando com o Luís Filipe Castro Mendes – sorte a minha. E era o PREC. Os governos sucediam-se como pulgas. Um dia ouvimos no rádio a notícia de que o consulado de Espanha estava a arder. Fomos ver. O Luís Filipe e eu metemo-nos num táxi e fomos oferecer os nossos serviços ao Melo Antunes, que era o ministro.
Era um fascínio pela aventura? Aderia sem hesitar.
Sim, eu nem hesitava. Um dia fui destacada para secretariar umas negociações. Soares tinha pedido auxílio à Alemanha. O SPD estava no poder e veio cá uma delegação, para saber se nos faziam um empréstimo ou não. Passou-se na Gulbenkian, durante uma semana. De toda a minha carreira, foi o trabalho mais interessante que tive. Eu era só escriturária. Mas o que ouvi…
Vai trabalhar para o gabinete de Medeiros Ferreira, ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Constitucional. Como é que foi?
Não o conhecia. Tinha chegado há pouco da Suíça. Fui de empréstimo para o gabinete, quando era Secretário de Estado. Eu não era diplomata. Já tinha feito o concurso, mas ainda não tinha saído no Diário da República. O Medeiros é cintilante. Foi com ele que aprendi a ter a visão planetária. Era dificílimo de se trabalhar. Exigente até ao limite do pensável. Não podíamos dizer: “Isso não é possível”. Mas ai de quem ofendesse ou tivesse menos deferência com os membros do gabinete.
O que é que a impressionou mais nele?
A inteligência, como sempre. A integridade. A lealdade aos amigos. O [Nikias] Skapinakis aparecia lá muito. “Estive cá há dois dias mas preciso muito falar com ele”. O Medeiros estava ocupadíssimo. “Sim, sim, já o recebo”. Disse-lhe que não era possível, que tinha a agenda sobrecarregada. “Há pessoas que recebo todas as vezes que quiserem cá vir. São as pessoas que estiveram comigo presas. O Skapinakis esteve comigo no Aljube”.
Foi o ministro mais novo do mundo. Tinha 34 anos. Dizíamos no gabinete quando se irritava: “O homem está no candeeiro!”. Quando precisava que uma pessoa ficasse até mais tarde, oferecíamo-nos todos e ficávamos todos. Depois convidava-nos para jantar. Normalmente no Gambrinus. Ele! Não era o Estado que pagava. O Medeiros devolvia as ajudas de custo que não gastava. Havia o chefe de gabinete [Eduardo Paz Ferreira], os adjuntos, os secretários. Éramos todos equidistantes dele. Eu era a secretária pessoal.
Foi uma experiência curta, de qualquer forma. De Julho de 76 a Outubro de 77.
Quando se demitiu, ficou a escrever despachos de louvor até às três da manhã. Um machista! [riso] Eram duas colunas no Diário da República. Dizia que eu era um espírito arguto, isto e aquilo – “a prova de que foi muito bom as mulheres entrarem para a carreira diplomática.” Adorei trabalhar com ele.
Porque é que depois dessa experiência, em que conheceu a política por dentro, não enveredou por uma carreira política?
Ainda pensei. Mas o PS entrou em degenerescência. As causas próximas não foram agradáveis à vista. As perseguições aos membros do gabinete do Medeiros… De resto, quando se demitiu, muita gente no PS disse: “Não tem importância. Daqui a dois meses ninguém sabe quem é o Medeiros Ferreira”. Erro. Depois foi o governo PS-CDS. Não gostei nada. Desiludi-me.
Regressou ao MNE depois da passagem pelo gabinete de Medeiros. Que expectativas eram as suas?
Nunca perdi a ideia de um lugar internacional. Tive hipóteses de o ter quando estava em Bruxelas, e recusei. É outra idade, outra paciência. É melhor assim, ser um espírito livre – como diz o Dr. Soares. No MNE tive um ano interessante. Chefiei interinamente o departamento da Nato. Apanhei a invasão do Afeganistão, um golpe de Estado na Turquia.
Todas essas experiências lhe deram a ideia de estar sempre no olho do furacão.
Eu gosto de estar no olho do furacão. Passados uns meses separei-me.
O que é que foi sacrificado? O casamento?
Nada. Quando me casei estava apaixonadíssima pelo meu marido, que era lindo de morrer. O único defeito que ele tinha era ser uma criança grande. Artista. Pinta. Reformou-se de um emprego que lhe arranjei, junto do David Mourão Ferreira. Foi director do gabinete de artes plásticas da Biblioteca Nacional. Hoje sou amicíssima dele.
O que pergunto é pela dificuldade em conciliar todas estas tarefas. Ser diplomata, ser mãe, ter tempo para ler.
Todos os meus amigos, todos os meus chefes diziam que eu era uma força da natureza. Sou parecida com a minha mãe, mas não tenho metade dos fôlegos que ela teve. Uma vez fiz a martelo e pregos uma estante. Impecável. A minha mãe não queria acreditar. “Aprendi a ler. Pensei, fiz um desenho, agora estou a executar. Não tenho dinheiro para chamar um homem.” É que sou mesmo proletária. Nisso as mulheres são muito melhores do que os homens, quando são boas. Fazem tanta coisa que se organizam muito melhor. E são mais pragmáticas. Adoro cozinhar, fazer bolos. Uma vida só em casa, a tratar das crianças, não me chegava. Só a vida intelectual, também não. Não há nada de que mais goste do que passar uma tarde no cabeleireiro.
Porque é que se deixou engordar?
Sei lá. Porque se vive muito bem em Bruxelas. O que coincidiu com a mudança de idade. A certa altura fiz um regime e fiquei uma sílfide. Nunca viu o Lago dos Cisnes? As sílfides eram muito magrinhas. Presumo que o que desencadeou a mudança de metabolismo foi a morte do meu irmão mais velho. Teve um cancro fulminante. Custou-me horrores. Afoguei carências em pain au chocolat. Em Paris engordei imenso, também. Na sequência de me ter separado. Fui a um médico homeopata e emagreci 17 quilos num mês! O Carlos Monjardino (que, com a Ana Sofia, me adoptou) dizia: “Tu estás feia de magra”.
Paris foi o seu primeiro posto, em 1981.
Era segundo-secretário. O embaixador Lencastre da Veiga, que foi um grande amigo, dizia-me: “Sei que se separou. Está com um ar de quem está a definhar. Faz mal. Você, como eu, tem fama de seguríssima.” Ele também era hiperbólico. “No fundo é uma mole. Mas não deixe que percam a imagem que têm de si”. Eu estava numa fossa, aquilo lixou-me. “Devia ir para fora. Os mesmos problemas debaixo de um céu diferente são diferentes”. Estive em Paris seis anos. Um salto para o desconhecido. Fui muito bem recebida pelos meus colegas.
Era então evidente que seria embaixadora, demorasse o tempo que demorasse?
Para mim era evidente que seria embaixadora no dia em que entrei no ministério. Fui a primeira formada a entrar no MNE. Estava lá uma senhora, hoje minha colega, a trabalhar como técnica. E fui a primeira embaixadora (ex-aequo com a Ana Martinho) full rank [escalão mais alto].
O topo da carreira aconteceu em 2005.
Quando fui nomeada, deu direito a primeira página do Expresso. Ridículo. A descrição: “É uma diplomata atípica. Veste-se informalmente, fuma como um turco e é terrivelmente eficaz.”
Ainda é uma boa síntese de quem é?
Acho que sim. Não acha? Havia tempo, tinha dado uma entrevista sobre diplomacia económica. Perguntaram-me se queria deixar uma mensagem aos empresários portugueses. “Para a Polónia, em força, já!” [riso] Era a frase do Salazar, “Para as colónias, em força, já!”. Tinha a certeza de que ia ser o título.
Já fez referência à passagem por Bruxelas. O que é que fez?
Fui número dois da Reper [Representação Permanente de Portugal junto da EU]. Fiz a presidência [portuguesa da União Europeia] de 2000. Foi o cargo mais difícil da minha carreira, de longe. É uma prova de resistência física. Depois, Portugal nunca dá instruções. O desgraçado (ou desgraçada) que está ali tem a economia do país nas mãos. Se conseguir coisas boas, os louros são para o Governo – e tudo bem, os diplomatas são treinados para isso. Se correr mal, amola-se o mexilhão. Chefiava um batalhão de homens, ex-secretários de Estado, ex-directores gerais. Dei-me lindamente. Fui também a primeira mulher a fazer esse cargo.
Depois dos dez anos de Bruxelas, seguiu para a Polónia, em 2003. Coincidiu com a ida em força de empresas portuguesas, como o Millenium-BCP, a Mota Engil, a Jerónimo Martins?
Fui cheia de curiosidade de conhecer aquele lado da Europa. Podia fazer o de sempre: estar lá e fazer o que me mandassem. Mas vinha com o ritmo da Reper, e o ministro tinha dito que os embaixadores tinham de fazer diplomacia económica (como se não fizéssemos…; na Reper aquilo não era senão diplomacia económica). Sou uma pessoa bem mandada. Apesar de atípica e por vezes insolente. Havia vinte empresas quando lá cheguei. Quando de lá saí eram mais de cem. As empresas que referiu já lá estavam.
Como é que abriu tanto o leque?
Esqueci-me de que o ministério existia, que é a única forma. Escrevi aos empresários que lá tinham os seus representantes. O trabalho que fiz contou com o auxílio de um magnífico delegado do ICEP. (Fui hoje almoçar com ele.) Se lhe pedisse uma análise económica da Polónia para daqui a meia hora, dez minutos depois estava no meu computador. Tive a sorte de os empresários, e designadamente o senhor Alexandre Soares dos Santos, dizerem nos jornais portugueses: “Agora temos uma embaixadora…”. A presidência da República da época estava atenta ao meu trabalho. E foi assim que fui promovida. Muita gente achou que se calhar era por ser amiga há 40 anos do Jorge Sampaio.
Tem ali uma fotografia dele, autografada. É agora consultora da Jerónimo Martins para a Polónia.
Sou colaboradora. Mais para questões da UE, o que também inclui a Polónia.
O que é que representou para si, intimamente, a promoção a embaixadora full rank?
Dois momentos. No dia em que a minha filha mais nova me telefonou para a Reper a dizer que estava formada, saiu-me um peso da alma. Passei a poder encostar às boxes. Foi um momento de grande satisfação. Um “consegui” conciliar as duas coisas. (O [Jaime] Gama tinha-me proposto ir como primeira embaixadora para a Namíbia. Não tinha condições. De resto, morreria de tédio. “Tenho duas filhas”). Segundo momento: quando fui promovida a embaixadora full rank. Senti que se tinha feito justiça. Senti-me radiante. “Aqui está uma coisa que a minha mãe teria adorado”. Infelizmente não o viu. Já não tinha que provar nada a ninguém.
Publicado originalmente no Público em 2012