Maria Cândida Rocha e Silva
A casa, o banco, podia ser um clube. Daqueles de admissão reservada e ambiente cuidado. Espero num sofá chesterfield de couro gasto, de um verde raro. Os tapetes são discretos e bons. Algumas peças de arte. A luz a entrar por entre os reposteiros. O novo papel de parede acentua o carácter clássico da decoração. Lá fora é a Avenida da Boavista, que mantém o status de zona selecta da cidade.
Tudo começou na Baixa, na Rua das Flores. Tudo começou numa casa de câmbio onde o pai fez o seu percurso. A Casa Carregosa passa a Banco pela mão da filha, Maria Cândida Rocha e Silva.
Ela aparece a seguir ao almoço, com uma simpatia jovial e uma descontracção inesperada. Nessa altura, eu ainda não sabia que a sua expressão pode ser contagiante e efusiva, firme e séria. E que a sua cara muda imenso. Tudo vem à cara, já diz o povo… “Que engraçado, nunca tinha reparado nisso! O mal e o bem à cara vêm. Assim como a beleza está no olho do olhador, também está muito na maneira como recebemos o que a vida nos dá. Se sabemos valorizar, e esquecer o que é mau, ou procurar”.
Subimos para o seu gabinete. Ficámos a sós. Recordou a infância. “Era a tal coisa que Guerra Junqueiro dizia: “Tudo quanto ali se grava e tudo quanto ali se escreve, cristaliza em seguida, não se apaga mais”. Recordou a vida em África. Recordou a relação com o pai e a mãe. As suas escolhas. A sua aventura. No fim, já tinha o gravador desligado, lamenta que a sua vida não tenha sido mais aventurosa. Mas ela, que é uma leitora de Lobo Antunes, sabe da riqueza que se encontra na vida de todos os dias.
Maria Cândida Rocha e Silva tem 65 anos. É divorciada. Tem duas filhas e cinco netos. É o rosto do Banco Carregosa.
Comecemos pelo nome. De onde vem o apelido Rocha e Silva? Pensei que se chamava Carregosa.
Há muita gente que pensa. É sinal de que me identificam com a Casa Carregosa. Durante muito tempo, embora tivesse sócios, o meu pai era a principal figura da Casa, estava à frente do balcão, era por quem passavam as decisões. O meu pai era Rocha e Silva.
Onde é que se perdeu o apelido Carregosa?
Comecei a trabalhar com o meu pai em 1970, e um dos sócios era o senhor Joaquim Carregosa (descendente directo de Lourenço Joaquim Carregosa). O que quer dizer que a Casa ainda se manteve na família durante muito tempo.
Há pouco vi uma fotografia do seu Pai; reparei que têm os mesmos olhos. Tinha uma expressão muito sorridente, o que é inesperado num homem neste meio. Esperaríamos ver uma pessoa sisuda, que não se permite rir.
Era um homem muito bonito! E nada cinzento. Divertido, alegre, extrovertido, com uns contactos óptimos; daí o facto de contactar muito bem com as pessoas e saber cativar-lhes a confiança. Era muito preocupado com o trabalho. Cumpriu escrupulosamente o sigilo profissional. Lá em casa ninguém sabia nada, na-da do que se passava no escritório.
Como foi a primeira vez que foi à Rua das Flores? Descreva-me o impacto, até visual, com o sítio onde o pai passava os dias.
A Casa Carregosa, para mim, pequenina, era uma coisa que me intimidava. [Tudo era] muito austero. Não entrava qualquer pessoa. Muito bom gosto, muita madeira, um bocadinho escuro, não dava um ar de leveza. Ali tratavam-se coisas graves, sérias. Tinha um balcão [cuja] madeira, a talha, era a de um antigo altar.
Este ambiente em que estamos reproduz o da Rua das Flores?
Aproxima-se, mas está muito longe. O pai entendia que ali era um santuário. A nossa casa era muito alegre. Éramos quatro filhos, vivíamos com uma avó, convivíamos muito. Quando um bebé, uma criança, um adolescente é muito acompanhado, fica bem estruturado e vem para a vida com uma confiança grande. Fui acompanhada durante grande parte da minha vida. O meu pai morreu com 91 anos. A minha mãe morreu com 93 anos.
António Lobo Antunes, que admira, escreveu no último livro: “Não comprei uma casa, não montei um negócio, penso em vocês”. Já comprou uma casa e já montou um negócio; o que é que ocupa o seu pensamento?
As filhas e os netos. Neste momento, é o Banco Carregosa. Não penso nos assuntos do banco só quando estou aqui. Não é possível compartimentar. Era uma sociedade financeira de corretagem, que tinha sido uma sociedade corretora, e antes tinha sido corretora em nome individual. O desafio é: “Como é que vou conseguir, neste novo paradigma, enfrentar os desafios? Como é que nos vamos comportar?” Sabe o que gostava de ter? Um conselheiro. Dava-me jeito um conselheiro que tivesse passado.
O conselheiro que gostaria de ter era o seu pai, não era?
O pai era muito importante. Mesmo quando estava em casa, já velhinho, tinha as minhas dúvidas e falava com ele. E o facto de ser obrigada a expor a situação, o meu problema, só isso já era uma ajuda. Dizia, quando era miúda, que tinha uma paizite aguda.
Mas devia ser recíproco, porque ele escolheu-a. Para lhe suceder.
A minha irmã mais velha até tinha formação em Economia, mas não quis, foi para África. A minha irmã a seguir é médica. Eu fui a única, sem ter uma formação adequada, que tentei. “Porque é que não hei-de tentar?”. Trabalhámos juntos muitos anos, e demo-nos muito bem.
O que é que representou a vinda para o Porto, com dez anos?
De princípio, uma grande tristeza.
Vila do Conde, onde viviam, era como um longo Verão.
Exactamente. Era uma vila pequenina, as pessoas todas conheciam-se. Transplantarem-me foi difícil: não conhecia ninguém, fui para um liceu novo, o Carolina Michaelis, onde havia mil pessoas. Mil era uma coisa do outro mundo! Senti-me perdida. Lembro-me muito dos barulhos do Porto… O barulho de Vila do Conde devia ser muito silencioso.
Como se a vida tivesse, de repente, uma música diferente?
Sim.
A grande referência era o seu pai?
A mãe, também. Era uma personalidade fortíssima. Durante grande parte da vida não a terei… hum … Como vivia muito com o pai… hum… Quando os pais ficaram velhinhos ia todos os dias jantar com eles. Para que sentissem que tinham uma pessoa que os acompanhava. As pessoas quando ficam velhinhas ficam muito dependentes e têm muitos medos. A minha preocupação era incutir ao pai e à mãe a ausência de medos.
É uma reprodução quase simétrica do que aconteceu na sua infância. Papéis invertidos.
Muito. Passamos todos a ser pais dos nossos pais, não é? Embora fosse uma questão mais psicológica. Mantiveram-se lúcidos até ao fim. A mãe sobreviveu ao pai quatro anos; quando fiquei a sós com ela descobri coisas que até ali não tinha descoberto. A mãe teve a preocupação de se pôr na sombra do meu pai. Queria que tivéssemos no meu pai a figura principal.
É de um amor enorme.
Namoraram 11 anos e viveram 60 e não sei quantos anos casados. Não havia vida para além do casamento. (O meu pai fazia festinhas na mão da minha mãe. A mãe tinha uns derrames e o pai fazia-lhe festinhas…). Descobri que a minha mãe era a luz que o meu pai reflectia. Grande parte da força que mostrava e reflectia era a minha mãe que lha dava. Que a mãe, essa sim, era muito forte. O meu pai, sem a minha mãe, não teria sido tão forte.
Mas não percebeu isso na altura. Presumo que tenha vivido a vida toda com o paradigma de uma mulher que se eclipsa para que o homem brilhe.
Vivi.
No seu caso, e nem estou a pensar no seu casamento, foi o contrário. Não se apagou. Foi a primeira mulher corretora, e a afirmar-se num mundo tradicionalmente masculino.
Absolutamente. Ah, mas não me vai psicanalizar! Isso não pode ser. Nunca fiz, mas adorava ter feito.
Ainda vai a tempo.
[Risos]. Um dia, se calhar. Tenho consciência de que o que a minha mãe fez – como disse, eclipsar-se para dar a luz toda ao meu pai – só é possível quando uma pessoa tem uma grande segurança, uma grande força e um grande amor à pessoa em quem projecta a sua luz. Não vou dizer, de todo!, se não fiz isto porque não encontrei um grande amor, ou porque não fui capaz ou porque não era… Se não estávamos aqui como o José Régio: “Despi-me com impudor, que é irmão do desespero”. Nem eu estou desesperada. Mas está muito claro para mim. Fiquei com uma admiração profunda pela minha mãe e, estupidez minha, só percebi isto tarde.
Parte do seu trajecto, deriva ainda da paizite aguda: do desejo de brilhar aos olhos do pai.
Era com certeza. Vivia em África e [o meu marido e eu] viemos passar férias; o meu pai disse-me: “Deves ficar, porque África vai ter um fim mau”. Vivia em África, achava que o meu pai não tinha razão. Mas era como se fosse Deus a falar. Não entendemos as atitudes de Deus, mas é Deus. Fiquei.
Antes de África, estudou Filologia. Porquê essa escolha?
O meu primeiro curso foi Filologia Clássica. Gostava era de Latim e Grego.
Maria Helena Rocha Pereira, notável helenista e latinista, também do Porto, era um exemplo?
A Professora Maria Helena Rocha Pereira dedicou a vida ao estudo, à investigação de uma maneira grandiosa; e não fez absolutamente mais nada. Eu queria muito ter filhos, uma vida de casa como tinha quando era pequenina. Queria reproduzir essa alegria [de quando], como diz o Fernando Pessoa, “eu festejava o dia dos meus anos e ninguém estava morto”. Fiz uns anos do curso de Filologia Clássica, depois interrompi, casei, tive filhos. Voltei para a faculdade, para o 1º ano de Românicas e fiz os cinco anos já casada e com filhos.
Quando foi para a faculdade era expectável que não fosse apenas mãe, que tivesse uma formação académica. Ainda não percebi bem qual era o enquadramento socioeconómico. Era normal que tivesse que trabalhar, que precisasse daquele dinheiro?
Não. Eu queria trabalhar por uma questão de afirmação. Queria ter uma palavra a dizer na economia da casa. Não entendia ficar ali muito quietinha e dependente de um só ordenado. Sempre trabalhei. Sempre trabalhei muito.
Explique melhor.
Não é muito compatível com aquela confiança que me incutiram e que eu interiorizei. Mas acho que é o meu lado rebelde. É o querer ser eu, a construir.
Acha que foi durante muito tempo a filha do seu pai?
Isso não me fazia confusão nenhuma. Até gostava! Tinha um orgulho muito grande!
Que características eram imputadas ao seu pai e que admirava especialmente?
A confiança, a seriedade. O nunca ter frustrado as expectativas. Houve um capital de confiança transferido do meu pai para mim. Porque “se ela é [filha daquele homem], de certeza que vai continuar naquela linha de seriedade”.
Pelo menos neste aspecto, o negócio imiscui-se na psicanálise… O que é do pai e o que é seu. Ser filha dele e a imagem que disso resulta.
O pai fez a vida dele na Casa Carregosa. Foi uma confiança que foi transferida de pais para filhos, para netos. Havia casos em que já era a 3ª, 4ª geração de pessoas que vinham com a mesma confiança buscar os nossos conselhos e entregar o seu dinheiro. Essa é a preocupação que tenho e que procuro transmitir ao nosso private bank. Agora, tecnicamente, é muito mais exigente. Se não apresentamos bons produtos, a concorrência ganha-nos; e aí, as pessoas podem gostar muito de nós mas não querem ter uma menor rentabilidade do seu dinheiro.
O seu pai fez todo o percurso na Casa Carregosa?
Fez. Estudou, não foi para a faculdade; fez estudos médios. Começou a trabalhar muito novo, e esteve lá até aos 80 anos.
Dedicou-se com muito interesse e inteligência e deu muito boas provas. Rapidamente sentiu que aquilo era a casa dele.
Voltemos ao momento em que casa, vai para Angola e tem filhos. Podia ter sido um filme, um livro completamente diferente se não tivesse regressado. Se a sua vida se tivesse feito lá.
Em África fui professora e fiz traduções. Vivi em Luanda três anos e depois estive três anos na Companhia dos Diamantes. Foram experiências enriquecedoras, mas profissionalmente não era o que esperava. Eu gostava de ter podido continuar a investigar na minha área, sobretudo na linguística. Se pudesse descurar a parte material, que não podia…, mas não podia, acima de tudo, por uma questão de convicção.
Descreva-me esses dias em África. E o que aprendeu na Companhia dos Diamantes.
O que eu fazia era dar aulas. O meu marido era engenheiro e trabalhava na Companhia. Em Luanda a vida era muito solar. Ia para a praia todo o ano.
Voltava ao longo verão de Vila do Conde…
Era uma vida simples. O calor empurra para fora de casa. Havia uma desinibição. Acamparmos na praia, tomarmos banho à meia-noite. A Companhia dos Diamantes era muito fechada. Quando lá cheguei, passado pouco tempo, alguém escreveu uma carta anónima ao meu marido dizendo que estavam intrigados porque me ria muito! [risos] Aproveitei para ler. Tinha uma biblioteca óptima.
Essa de Angola é diferente da que há pouco estava na sala de trading. E é diferente da primeira corretora da Bolsa portuguesa.
Claro. São realidades distantes
O que é que teve de perder ou omitir de si quando passou para este mundo?
Ah, tive que abdicar de muitas coisas! A maneira de vestir. A Casa Carregosa sempre foi austera e habituei-me, sobretudo desde que passei a receber clientes, a apresentar-me de uma determinada maneira. Fazia parte. Era como cumprir o horário.
O dress code era o mais discreto possível?
Nada que chamasse a atenção. Mas que se pudesse olhar e dizer: “Está bem”.
O cabelo foi sempre curto? Porque é menos (tradicionalmente) feminino?
O cabelo era mais ou menos assim. Significado, não tem nenhum.
Retomando: voltou em 1970 a pedido do seu pai. Começou logo a trabalhar e voltou à faculdade.
Esses cinco anos [de curso] foram um bocadinho trabalhosos, porque o meu pai achava que pelo facto de ser filha do patrão não devia ter quaisquer facilidades.
Tudo o que aprendeu foi com o seu pai e já na prática?
Exactamente. E com a preocupação de ter alguém que tecnicamente assessorasse.
E se não gostasse? E se não fosse capaz? Gostou sempre? Achou sempre que era capaz?
Se eu sentisse que não era possível, provavelmente teria desistido. Devo ter tido sorte nas pessoas que encontrei. Esta sociedade dura há 20 e qualquer coisa anos.
Como é que atravessou o período revolucionário em 74?
Foi muito difícil. As casas de câmbios foram extintas. Os bancos tinham sido nacionalizados, os banqueiros tinham fugido, perseguidos. Ao meu pai nunca aconteceu nada. Tínhamos cerca de 20, 30 empregados que foram transferidos para a banca nacionalizada (sem qualquer obrigação de indemnização). Eu fui colocada no Banco Espírito Santo. Claro que nunca lá fui. Estar num banco, numa altura em que as pessoas eram números, ou dar aulas, que também não me agradava, era igual. Então, leccionando teria mais tempo livre.
Havia também uma parte de orgulho ferido?
Não. A banca nacionalizada não era interessante. E pensei que a Casa Carregosa, com tantos anos, encontraria uma reconversão que lhe permitisse continuar no mercado. Passados uns anos, eu estava a concorrer a corretora da Bolsa.
Significa que tudo podia ter ficado por ali?
Podia ter terminado ali. Mas havia uma vontade de não fechar uma Casa com tanta tradição. O Dr. Artur Santos Silva era Secretário de Estado do Tesouro e dizia que se a Casa precisasse de uma reconversão que deveria encontrá-la e que ele a apoiaria.
Quando decide ser corretora, era uma maneira, também, de ajustar contas com o passado e de continuar um projecto que era do seu pai?
Absolutamente! Os câmbios faziam-se em Lisboa, na Rua Augusta e na Rua do Ouro; aí, sim, existia uma população flutuante. Mas o Porto não tinha. Hoje há muitos, os hotéis estão cheios, há Serralves, a Casa da Música. Na Rua das Flores, não passavam tantos estrangeiros que justificassem uma casa estar aberta para vender divisas. Vendíamos e comprávamos títulos. E era assim que constituíamos, sempre com a Bolsa, os investimentos e a rentabilização das carteiras dos nossos clientes. Quando fui nomeada corretora da Bolsa era um negócio semelhante: comprar e vender; e em lugar de entregar a outro, era eu que ia ao floor, era eu que vendia.
Quando se tornou a primeira mulher corretora, o seu pai ainda era vivo. Começou em 81, ele faleceu em 97. Ainda assistiu a 16 anos do seu crescimento.
Do meu procedimento. Ainda foram uns anos a trabalhar com ele como corretora da Bolsa e, depois, em casa.
Que tipo de conselhos, que tipo de apoio lhe dava?
Os conselhos que dá quem tem experiência.
Aposta aqui, não apostes acolá? Faz isto, não faças aquilo?
Não era tanto isso. Era mais: observa muito, procura ver todos os enfoques, procura ver que tipo de pessoas são os teus interlocutores.
Ou seja, aprende a conhecer o outro. O que é fundamental neste negócio.
É.
Para antever, antecipar traições ou deslealdades? Por causa das boas apostas?
É sobretudo por causa disso. Normalmente faço-o por intuição. Acho que não tenho, que não consigo [fazer] aquilo que o meu pai conseguiu: radiografar as pessoas. Chegava lá mais depressa.
Quando é que perdeu a ingenuidade?
Esta ingenuidade veio sempre aliada a um grande respeito pelo trabalho. Mas na vida privada nunca tive a preocupação de apreciar muito o outro – como hoje tenho. Não sei em que altura é que dei o salto. Achava que as pessoas eram todas boas. Também ainda não caí no extremo oposto de dizer são todos maus!
Que perguntas se faz para perceber se o outro é fiável ou não, se lhe interessa ou não? Qual é a motivação do outro? O que é que ele tem a ganhar e a perder? Quais são os seus pecadillos?
O mais importante é ouvir muito bem. No outro dia citava um provérbio árabe com o qual me identifico: se temos dois ouvidos e uma boca só, devemos ouvir mais do que falar. Ouvir, observar, é fundamental. Mais do que perguntar. As pessoas acabam por nos dizer, se tivermos o cuidado de ouvir. Ou contam uma experiência semelhante. Ou são tremendamente fechadas – o que às vezes quer dizer [que têm a esconder] qualquer coisa.
Diz-se que nunca se irrita, nunca perde a calma, nem em pleno crash da Bolsa. Como é que aprendeu a ser assim?
É a minha natureza. Sou pouco expansiva. Não sou de muitos foguetes, de muitas palmas, de muitos barulhos. E é uma dádiva do céu ser-se equilibrada. Mas irrito-me, irrito-me muito. Irrito-me quando me mentem. Fiquei irritada com aquela frase do Prof. Cavaco Silva ou do Dr. Miguel Cadilhe [em pleno crash]: que na Bolsa se vendia gato por lebre. Senti-me muito injustiçada, muito ofendida, porque achei que não era verdade.
Como é que exprime essa irritação?
Sobretudo para mim. Que ninguém tem nada que sofrer com os nossos problemas. Quando estou mal disposta, e é muito raro, procuro fazer um esforço para que as pessoas não notem. Não quer dizer que às vezes não me irrite e não fale mais alto.
O que corre é que não se irrita e que mantém uma atitude fleumática em momentos de crise. Como um aristocrata a quem as paixões mundanas não atingem. Há um provérbio inglês que diz: “I don’t wear my feelings on my sleeves”.
Percebo o que diz, mas não é verdade. Isso tem a ver com o facto de eu achar que as pessoas que tratam de dinheiro não se devem expor. Devem projectar uma imagem de seriedade mas não devem dizer mais nada de si. Não devem ter cor política, não devem ser muito abertos. Estão ali num espírito de servir, de fazer uma obra. A pessoa que está atrás do balcão deve ser anónima. E só deve dar satisfações da sua vida [se necessário, para que os outros] confiem nela. O resto não interessa. Acho que me devo preservar. O sigilo profissional é muito importante. Peço a toda a gente que trabalha comigo que lá para fora não transpire nada. Quem é que veio cá, quem é, nada, nada.
Nem à mulher.
Nem à mulher! Uma vez, um cliente da Casa, que estava em processo de divórcio, falou com o meu pai; a senhora, a esposa era muito rica e o marido queria saber exactamente o que é que ela tinha. “O senhor a mim pode dizer, porque sou marido dela”. O meu pai respondeu: “Então, mais uma razão: como marido, ela conta-lhe tudo!” [risos].
Com quem é que tem relações de intimidade? A quem é que se dá sem reservas, sem medir o jogo do outro?
Isso acontece com as filhas, com aqueles a quem chamo meus, o meu clã, os meus amigos mais íntimos (muito poucos).
Tudo isto é como se fosse uma pequena família, de sangue e não só, mas cuja entrada é altamente escrutinada.
Aqui no Banco, sobretudo na administração, tenho verdadeira amizade pelas pessoas que trabalham comigo, alguns há 20 e muitos anos. Mas outros, conheço muito pouco da vida deles. E vivemos bem assim.
Portanto, estamos num clube secreto!
[risos] Não tem nada de secreto. Tem de sigiloso, porque tem que ser. Não nos mostrarmos não é negativo.
Posso pedir-lhe que me descreva a sua casa? Como é que a vê, o que é que procurou que ela tivesse.
Vejo-a como o sítio mais confortável do mundo.
É parecido com o espaço onde estamos, o seu gabinete de trabalho no Banco?
É o estilo.
Desde que começámos a conversa, há mais de uma hora, ainda não falámos de dinheiro.
Costumo dizer que o dinheiro é um bom servo, mas um mau senhor.
Na sua vida passou por momentos em que tinha mais dinheiro, menos dinheiro? Como é que lidou com esta oscilação, com a importância que o dinheiro foi ganhando ou perdendo na sua vida?
Vivi sempre muito bem. Toda a vida confiei que os meus pais, se me acontecesse alguma coisa, tratariam [disso]. A velhice! Tenho muito medo de ficar sem dinheiro.
Ou seja, teme ficar dependente. Da debilidade em que se pode ficar na velhice.
Estamos sempre a falar do mesmo, tem razão.
Liberdade, dependência.
Liberdade e dependência, é verdade. Mas tenho confiança nas filhas. Conto incondicionalmente com elas!
Tem 65 anos e está a começar uma aventura. Que pode correr mal.
Não corre mal! De maneira nenhuma!
Estou só a tentar perceber até onde está disposta a arriscar – uma vida de trabalho.
Não tem razões para correr mal. O nosso animus é o melhor. É o mais empenhado, é o mais sério, é o mais preocupado. A nossa experiência também é um valor. Imponderáveis há sempre. Digo confiantemente que não pode [correr mal]. Mas claro que pode haver elementos exógenos que venham transtornar as perspectivas – um 11 de Setembro, uma revolução, esta crise. Nós não queremos crescer muito.
Qual é a vossa aposta?
Queremos continuar a fazer a corretagem, a corretagem online e a corretagem tradicional, e a fazer a gestão de carteiras. Procurar dar o máximo de rentabilidade aos nossos clientes. [O nosso modelo] é o daquele banco suíço, de patrão, que não vai para a bolsa, que não vai ser cotado, que toda a gente conhece e que vive de geração em geração. Era isto que eu gostava de deixar. Claro que é uma ousadia da minha parte querer-me comparar com esses banqueiros. Mas podemos ter um modelo inspirador para imitar.
Insisto: avança com este projecto numa fase avançada da sua vida.
A ideia de nos transformarmos num banco existe, pelo menos, há uns dois anos. A sua concretização é que coincidiu com uma época de crise. O Senhor Américo Amorim diz que isto não é uma crise, é uma nova ordem económica. Mas há aquilo que nunca muda: gerir o dinheiro dos outros com seriedade e competência. E que o cliente esteja capacitado daquilo que fazemos com o seu dinheiro.
Essa foi a principal herança que recebeu do seu pai?
Foi. Na altura não se falava muito da transparência. Mas acho que se usava.
As palavras essenciais que aparecem nesta conversa e no seu meio são: valor, dinheiro, legado, troca.
Tenho a ousadia de pensar que conseguimos transmitir aos nossos clientes o respeito que temos pelos valores. E não teremos muita gente que nos venha propor negócios muito extraordinários. Acho que não nos procurarão.
Então, se isto está sobretudo assente numa identidade, numa imagem, a credibilidade dessa pessoa, a história que ela carrega é fundamental.
Sou a mais velha, estou cá há mais tempo e tenho a sorte de ter herdado esse capital de confiança. Mas com certeza que há outros rostos.
O que é que não é negociável? O que é que não se pode vender ou comprar?
A honra, a seriedade! O bom-nome! É importante protegê-lo. Não se vende, não se troca por nada.
Pensa no seu pai todos os dias?
Todos os dias, mais que do que uma vez ao dia. Os meus pais estão tão presentes em mim, sempre.
Quando obtiveram a licença do Banco de Portugal para passarem a operar como banco foi nele que pensou?
Foi, e tive muita pena que não estivesse cá para ver. Era um ombro onde eu queria chorar de alegria! Ele e a minha mãe sabiam exactamente o que isso representava para mim. Estou em fim de carreira, mas é a história da Casa. É o culminar de um esforço. E é muito importante quem cá fica.
Gosta especialmente de três filmes: “África Minha”, “A Idade da Inocência” e “O Paciente Inglês”. O que há nestes três filmes em comum é a melancolia e a nostalgia de um amor impossível.
É capaz. É capaz.
Estava à espera que fosse mais fria, que revelasse menos a sua sensibilidade. Há uma lamechice que não se permite…
Que não me permito. Sobretudo quando penso numa entrevista, não me devo permitir; porque não interessa a quem a lê, no Jornal de Negócios.
Se lesse esta entrevista a outra pessoa no Jornal de Negócios e ela dissesse estas coisas…
Não me chocava nada!
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009