Maria de Belém Roseira
Esta Maria não vai com as outras. É fácil pensar nela como a florzinha, simpática, que ficou bem na lapela do Governo de António Guterres, na defesa de causas sociais. Mas quem a conhece de perto, sabe que é firme, hábil, determinada. É uma negociadora, que, sem ser impositiva, leva a água ao seu moinho.
Onde é que ela aprendeu a ser assim? Ou com quem é que ela aprendeu a ser assim?
Maria de Belém passa na rua e é “a Ministra da Saúde”. (As pessoas até lhe confidenciam coisas íntimas, confidencia ela…) Mas foi também, ainda que por um período curto, Ministra para a Igualdade. A causa da igualdade, a defesa dos direitos das mulheres, está-lhe no sangue. Não é pura retórica dizer isto, é saber da sua genealogia. Saibam onde nasceu, e percebam porque não podia ser de outra maneira.
O que é que a anima? Porque é que esta mulher, de natureza conciliadora, liderou a comissão de inquérito parlamentar ao Banco Português de Negócios? E de onde conhece ela aqueles protagonistas? E como se decidiu a sua ida para o primeiro governo de Guterres? E o que aprendeu ela em anos e anos de função pública?
Fala-se disso nas próximas páginas. Como do homem mais feio do Brasiu que a queria raptar! E de uma filha que ela fez idealista. E de uma mãe que não queria que as filhas fossem nem muito bonitas nem muito feias. E da separação do sonho e da realidade. Surpresas de Belém, Maria de.
Maria de Belém Roseira, deputada do PS, sabe que fez parte, que faz parte. “Tendo eu integrado muitos gabinetes de Governo, fui construtora da História recente e fui actriz nesse filme. No que foram as grandes transformações na Segurança Social, na legislação do Trabalho e na Saúde”.
Casada, tem uma filha. É realmente mignonne, e é do estilo que combina a joia com o lenço. Muito feminina, aprumada.
Conversa no seu gabinete na Assembleia. Uma sala não especialmente habitada. Nem parece que o PS é uma casa há anos e anos, e a Assembleia o posto de trabalho há mais de uma década. Há nela, muito vincado, um lado racional. De quem trabalha com a razão. A par do coração. Mas isso é outra oração, depois de um ponto final.
O que é que representou para si fazer 60 anos?
Não olho para a vida como [uma série de] etapas. Acho que é um contínuo. Faço balanços em função de um exercício ou de um mandato que tem uma determinada duração; em relação à minha vida pessoal e a seis décadas cumpridas, não faço. Tento viver na perspectiva de considerar que o meu percurso não é irrelevante. Acho que existo para fazer alguma coisa, e faço-o dentro dos meus padrões de comportamento.
Quando é que foi claro para si que tinha que ter um propósito?
Fui sempre educada para a responsabilidade. Se calhar foi isso que intersticialmente se inscreveu na minha maneira de ser e de pensar. Mesmo quando fiz a opção pelo curso de Direito para ser advogada. Acabei por ser capturada para uma intervenção nos assuntos sociais. Quando a pessoa intervém nesta área percebe que o que faz, ou não faz, tem uma implicação directa no bem-estar das pessoas. Talvez essa conjugação tenha aprofundado em mim o sentido de um rumo para a minha vida.
O que é que está antes disso?, o que é que dita as escolhas?
A minha adolescência passa-se nos anos 60, no contacto com a literatura do pós-guerra, com a noção de que a intervenção política é importante. Era muito jovem, mas tinha irmãos mais velhos. Vivia-se o tempo do Humberto Delgado. Depois Coimbra e a crise de 69. Nem toda a gente tinha acesso ao ensino superior; os que tinham, podiam ter uma participação mais forte na construção do mundo futuro. O 25 de Abril coincidiu com o começo das nossas carreiras profissionais e, por razões conjunturais, alguns de nós acabaram por ser chamados a desempenhar determinado tipo de funções. Eu tinha começado o estágio de advocacia, que não era remunerado. Na Primavera Marcelista houve uma grande abertura dos quadros do Estado para pessoas licenciadas; entro nessa altura na Direcção Geral da Providência, no Ministério do Trabalho.
Foi o seu primeiro trabalho?
Foi o primeiro trabalho pago. A seguir ao 25 de Abril, a Eng.ª Maria de Lurdes Pintasilgo foi para a Secretária de Estado da Segurança Social e precisaram de uma jurista. Foi um período de intervenção arrebatador, de grandes transformações sociais, sobretudo nsta área da Segurança Social, da Saúde, da Reabilitação, do Trabalho, onde me fui integrando.
Maria de Lurdes Pintasilgo foi uma mulher que marcou muito a sua geração.
Era uma personalidade muito forte, uma mulher com uma inteligência criadora fascinante, e era muito estruturada. Foi um privilégio ter trabalhado com ela. Mostrou-nos a importância de construir uma sociedade mais justa, mais igualitária. No Direito Constitucional, na capacidade de votar, no Direito Civil e no Direito Comercial, o papel das mulheres era de total subalternidade e dependência. Vinda de uma família marcada por mulheres muito fortes, autónomas, capazes e libertas, tudo isto, em mim, caía muito bem!
Conte uma história que tenha vivido com Maria de Lurdes Pintasilgo.
O 11 de Março foi muito marcante. Durante um Conselho de Ministros houve um tiroteio [risos]. A Maria de Lurdes Pintasilgo, já Ministra dos Assuntos Sociais, tinha saído de manhã para o Conselho de Ministros e regressou cedíssimo porque teria havido um golpe de Estado. Foi um momento de grande perturbação. Mais tarde soubemos o resultado: a saída do General Spínola e a tomada do poder pelo General Vasco Gonçalves. Foi como uma mudança de época, foi o início do PREC. Lembro-me muito bem desse episódio de grande susto, sobretudo de grande insegurança em relação ao futuro que aí vinha, depois de um passado recente tão marcante, tão cheio de significado.
Quem são as mulheres fortes e autónomas da sua família que a ensinaram a ser quem é?
A minha avó, que era interessantíssima, culta, autónoma.Tinha posses (de família) e escolheu fazer a vida que entendeu fazer. Era de uma família de produtores de vinho do Porto. A mãe dela tinha ficado viúva cedo e teve de assumir um papel de liderança. A minha mãe, embora não tivesse tirado nenhum curso superior – fez a educação das senhoras da época, tocar piano e falar francês – sempre defendeu em nós a aquisição de uma situação de independência financeira, para podermos verdadeiramente sermos nós próprias. Às vezes, isto nem são coisas explícitas, mas são orientações que se dão, conversas que se têm e que nos marcam mais do que pensámos na altura em que fomos espectadores ou participantes nessas cenas.
A sua avó pôde levar a vida que quis. Isto no norte e num quadro conservador. Além da independência financeira, o que é que a animava?
Era a personalidade muito forte. Optou por viver sozinha numa quinta que tinha em Trás-os-Montes e abandonou o Porto, já com filhas crescidas e criadas; o meu avô ficou no Porto. Isto numa altura difícil e com um revólver debaixo da travesseira. Quando íamos lá passar as férias, recebíamos umas encomendas com as coisas da cidade e tudo era repartido com os caseiros e pessoal da casa. É uma coisa que não acontecia no resto do país. Era um espírito de solidariedade nas necessidades e na repartição dos bens. Talvez isso tenha sido, indirectamente, importante para as minhas opções.
Estávamos a falar das mulheres autónomas da sua família.
Também tive duas tias que nunca casaram. Uma delas era farmacêutica, a mais velha. A outra, que era minha madrinha, fez um percurso à revelia da família e do que podia ser mais convencional. Era uma mulher muito alegre, tinha o curso do Conservatório de piano e era educadora de infância. Trabalharam sempre.
Porque é que a sua mãe não se licenciou, ao contrário das suas tias?
Porque queria tirar um curso com o qual o meu avô não concordava; e entendeu não fazer aquilo que ele queria. É este o ambiente das mulheres da minha família. Eu não poderia ter um feitio diferente daquele que tenho, porque é esta a minha matriz.
É a mais nova de cinco irmãos. Nunca houve dúvida de que ia tirar um curso superior?
Nunca. E sempre aquele que eu quisesse. O meu pai incentivava-nos a isso. Ainda hesitei entre Direito e Medicina. Não fui para Medicina porque exercia-se uma enorme pressão sobre as raparigas…, sobretudo nas aulas de Anatomia, [risos], e achei que era melhor não me meter nisso.
Era o pudor de ver um corpo?
Não. Assustavam-nos com os cadáveres, com partes de cadáveres que metiam no bolso das batas. Ao mesmo tempo que era muito afirmativa em termos de personalidade, também era muito mimada por ser a mais nova e por ser protegida pelo meu pai. Tínhamos uma relação fortíssima. E nessa altura, era a época da importância do Direito como construtor da justiça.
Em Coimbra, viveu a crise académica de 69.
Participei com algum distanciamento, porque tive sempre a noção de que as multidões são manobradas. Um bocadinho “Maria vai com as outras”. Eu gosto de comandar a maneira como sou senhora de mim, das minha atitudes e dos meus comportamentos. Fiz greve, participei em assembleias-gerais, mas nunca me aproximei das classes dirigentes, nem pretendi ter um papel nesse movimento. Todos os movimentos estavam ligados a partidos políticos. Nunca senti necessidade de me enfeudar. O enfeudamento retira-nos um bocadinho a nossa liberdade, e sempre tive muita preocupação com isso.
A preocupação, era porque isso estivesse ameaçado? Havia esse fantasma?
Multidões são sempre cenário. Ser uma peça de um cenário construído por outros pode ir contra aquilo que nós achamos em determinado momento. Porventura não estaria ainda preparada. Quando se é peão não se influencia: é-se mandado. Poderá perguntar-me porque é que agora estou inserida num partido político; porque hoje posso ter voz e posso tentar influenciar. É muito importante o processo de crescimento e o processo de demarcação da nossa individualidade.
O seu pai estava envolvido politicamente?
Não, não estava.
O que é que representou uma ruptura na sua vida, nesses anos? A ida para Coimbra, estar por sua conta?
Foi um processo muito doloroso. Deixava de estar no meu ambiente, com uns pais que não eram nada castradores do ponto de vista da educação; tentavam incutir-nos princípios, mas os actos eram da nossa responsabilidade. Um ambiente muito aberto, onde se conversava sobre tudo, onde podíamos fazer tudo. E vou cair em Coimbra, em 1966, num meio fechado, conservador. Fui para um lar com normas asfixiadoras. Nunca tinha estado em nenhum colégio interno; só lá estive dois anos, depois fui para um apartamento com mais três ou quatro colegas. Senti desconforto e saudades de casa.
E era um ambiente masculino.
No meu curso, fundamentalmente. Havia 95 por cento de pessoas muito conservadoras e 5 por cento completamente avant garde. De qualquer forma, tinha sido importante cortar aquele cordão umbilical – era preciso assumir a minha personalidade – e isso foi extraordinariamente robustecedor. Lembro-me até de pensar: filha minha que chegue aos 17 anos, tem de ir para fora de casa para conseguir afirmar-se. Depois, a minha filha não quis sair de casa quando chegou a altura! [risos]
Com que idade é que casou?
A primeira vez, tinha 24 anos.
O casamento, numa altura em que as mulheres precisavam da autorização ao marido para se deslocar ao estrangeiro, era olhado como uma ameaça à sua individualidade?
Não. Nunca casaria com uma pessoa que tivesse isso como regras de vida. Em minha casa nunca tinha assistido a isso, era só o que faltava! Na altura, o casamento também significava alguma emancipação. Conseguíamos a nossa independência através de um ordenado e depois casávamos para fazer a vida que entendíamos fazer.
A trave essencial sobre a qual assenta a sua vida, a seguir, e que conduz à pessoa que hoje conhecemos, é o trabalho.
Sim. Tendo eu integrado muitos gabinetes de Governo, fui construtora da História recente e fui actriz nesse filme. No que foram as grandes transformações na Segurança Social, na legislação do Trabalho e na Saúde. Lembro-me de diplomas que fiz no tempo do Governo da Eng.ª Maria de Lurdes Pintasilgo, em 79, que se mantiveram até ao Código de Trabalho de Bagão Félix. Foram redigidos por mim como jurista.
Sente que participou.
Que construí, que fui obreira.
Esse percurso é indissociável de ter poder, da ambição. Quando é que foi claro para si que tinha poder e que tinha ambição?
Não concordo consigo. Nunca tive projectos de poder nem de ambição. Talvez erradamente. Podia ter tido um percurso muito diferente daquele que tive. Por exemplo, fui convidada para ser directora-geral aos 36 anos de idade e não aceitei.
Porque é que não aceitou?
O convite veio na sequência do Governo de Maldonado Gonelha e nunca quis ter nomeações partidárias da área em que me inscrevia. Sempre preferi ser nomeada por ministros que não eram da minha cor. Isso significava que reconheciam que eu era competente. Sempre tive muito escrúpulo nisso. E acho que não faz mal nenhum às pessoas estarem em determinados lugares com alguma maturidade. Penso que se usa e abusa de atirar para a frente pessoas que podem ser inteligentíssimas e ter carreiras brilhantes no domínio académico, mas a quem falta a experiência da vida. A conjugação das duas coisas é essencial.
Estávamos no poder e na ambição.
Tive uma inscrição num partido político que não foi feita para entrar numa carreira. No meu tempo, tínhamos carreiras autónomas, profissões que eram exercidas independentemente da militância partidária. Militância no sentido de contribuir com as nossas ideias. Nunca numa perspectiva de carreira pessoal. Se o tivesse sido, podia ter chegado mais cedo a determinados lugares. Nunca tive essa vontade. Como nunca tive a ambição de ser Ministra da Saúde. Acabo por integrar o Governo porque o Primeiro-Ministro me pressionou muito nesse sentido. Considerou que eu tinha as características adequadas para esse lugar. Mas houve uma grande resistência da minha parte.
Porquê?
Primeiro porque, embora conviva bem com a visibilidade, não a procuro. E depois porque acho que posso fazer muita coisa independentemente do palco onde estou. O que me interessa não é o palco, é a realização.
De onde é que vem a relação com António Guterres?
É uma relação pessoal. Ele fazia parte do grupo de amigos mais chegados, e também era amiga da mulher dele, que era médica e que tinha grande apreço pela maneira como eu dirigia a área da Saúde. Antes de ir para o Governo, além de ser vice-Provedora da Misericórdia de Lisboa, com os pelouros da Saúde e da Acção Social, nomeada por Leonor Beleza, era administradora-delegada do IPO.
A relação com Guterres e com esse grupo tem alguma coisa que ver com o catolicismo?
Não.
Não sei se é católica e se isso tem uma dimensão importante na sua vida.
Sou profundamente cristã. Acredito na mensagem de Cristo, não só como religião mas como filosofia. É uma das grandes revoluções da Humanidade.
Consegue reconstituir esse momento em que António Guterres a convidou pela primeira vez? O que é que pensou?
Pensei que não queria [risos]. A pasta da Saúde é extraordinariamente exigente. Aquele Ministério não era uma prioridade política. As prioridades eram a Educação e a luta contra a pobreza. Conheço suficientemente a matéria para ter a noção de que o combate à pobreza e a Educação são armas fundamentais para ter bons resultados em Saúde; mas aquilo em que invisto hoje vai ter significado e expressão 20 anos depois.
O que politicamente…
O que politicamente não rende, do ponto de vista da análise. Por outro lado, quando um homem é convidado para um lugar, discute os meios que vai ter para levar a cabo as tarefas que lhe são acometidas; normalmente, a uma mulher não se dão meios. As mulheres, para o exercício do poder, são confrontadas com a sua capacidade de se sacrificarem [risos].
Era assim no seu tempo? Ainda é assim?
Não sei como é com as actuais ministras, mas comigo foi assim e sei que é normalmente assim.
Que argumento é que Guterres usou para a convencer?
Por acaso não foi ele que me convenceu, foi mais a mulher. E foi a pressão familiar. Eu gostava muito de estar no Instituto Português de Oncologia. A oncologia é uma doença de tal forma traumática que a pessoa sente que todas as decisões que toma se repercutem imediatamente na resolução de um problema gravíssimo. O estar num ministério implicava uma enorme utilização de energia que nem sempre se traduzia em resultados concretos, palpáveis. Tinha estabelecido uma relação muito forte com a casa e a casa comigo, e custava-me cortá-la. Tive duas grandes lições de vida, bastante mais do que a da política: a Misericórdia de Lisboa e o IPO. Ajudam-nos a perceber o que é verdadeiramente importante. Por isso é que aquela história do poder e da ambição não me dizem nada.
Quando falei de poder e ambição não estava a falar disso como um projecto em si. Mas é inequívoco que os cargos que teve são cargos de poder.
Para mim sempre foram cargos de poder/dever. Aquilo que achava é que podia dar um apoio ao então Primeiro-Ministro na área da Saúde não deixando o IPO. A minha filha disse-me que devia aceitar; perguntei-lhe se já tinha percebido que ia ficar sem mãe, e ela respondeu que não se importava, que era bom para as outras pessoas.
Que idade é que ela tinha nessa altura?
Tinha dez anos. Se calhar a culpa é minha, que a pus um bocadinho idealista... Acabei por aceitar com a noção exacta da tarefa ciclópica que tinha, embora também tivesse a noção de que conhecia o ministério por dentro e por fora para poder, com a minha passagem, marcar alterações importantes.
Por exemplo.
O primeiro hospital-empresa, que nasceu nessa altura. A gestão integrada de cuidados primários e diferenciados. A adopção de modelos inovadores de remuneração associados ao desempenho. As unidades de saúde familiares. E sempre considerei que, apesar da conjuntura histórica que deu origem à criação do Ministério da Saúde separado do da Segurança Social, é indispensável que os dois ministérios se articulem na sua intervenção. Como tinha uma óptima relação com o então Ministro Ferro Rodrigues, trabalhámos nisso. Datam daí todas as alterações que acabaram por ser abraçadas no programa do Governo seguinte.
Essas são as coisas de que se orgulha da sua passagem pelo Ministério?
Não só isso. A questão da contratualização. A estrutura perceber que a recursos têm de corresponder resultados. Definir uma estratégia de Saúde, definir melhores resultados, e pôr todos os instrumentos em coerência com esses objectivos estratégicos (a política de recursos humanos, de investimento, a afectação de todos os recursos à construção de um determinado objectivo).
A sua resistência em aceitar teve que ver, em algum momento, com o medo de não ser capaz?
Não. O Ministério da Saúde implicava, para além de muito trabalho – mas sempre trabalhei muito –, uma grande pressão mediática. A visibilidade faz-nos perder autonomia pessoal. Isso é desconfortável.
No fundo, estou a perguntar se nunca foi insegura em relação a si e àquilo de que era capaz.
Não, nunca fui insegura.
O que é que aconteceu na sua vida para não ser insegura? Que provas foi dando a si mesma de que era capaz?
Sou muito firme, mas não sou impositiva. Respeito muito as opiniões dos outros, mas as minhas são muito fortes. Gosto de convencer os outros da bondade das minhas opiniões. Ser Ministro é sobretudo ser um diplomata, um negociador, e sempre me mexi muito bem nesses domínios porque não sou agressiva, não sou inflexível. Mas sou capaz de fazer com que pessoas com visões diferentes acabem por encontrar uma base comum de entendimento. Isso eu gosto muito de fazer e acho que sou capaz de fazer.
É o seu grande talento, ser uma diplomata e uma negociadora?
Acho que é sobretudo demonstrar que sou coerente. Isso permitiu-me adquirir respeitabilidade. As pessoas sabem que o meu discurso não é incoerente com aquilo que verdadeiramente penso, que não estou a fazer teatro.
Que não está a fazer jogo político?
Não. E não estou a tentar convencer os outros de uma coisa em que não acredito. Penso que há alguma genuinidade no meu comportamento, que é interpretável pelas pessoas. Funciono numa química de relacionamento em que busco a confiança dos outros, e tenho-a conquistado, mesmo daqueles que pensam de uma maneira diferente da minha.
Sentiu isso, mais especificamente, no caso da comissão de inquérito ao BPN?
As outras pessoas é que são as grandes juízas da maneira como aquilo correu. Quando o Dr. Alberto Martins me convida para presidir a essa comissão, disse-lhe que presidiria se fosse à minha maneira, e isso foi aceite.
O que é à sua maneira?
É dar um tratamento adequado aos vários partidos políticos, permitir-lhes que eles exerçam a sua função, apesar de o Partido Socialista ter uma maioria absoluta. Houve um grande equilíbrio na gestão dos poderes de cada um dos partidos políticos. A Assembleia da República é um órgão de soberania, e como tal tem que se impor pela qualidade da acção que exerce. Essa qualidade da acção também é forte no domínio da acção fiscalizadora. Cada partido político exerce essa acção consoante entende, mas têm de ter essa oportunidade. E depois temos de ter um comportamento em que as pessoas se revejam; sendo as sessões públicas, é preciso que as pessoas ganhem apreço pela maneira como a AR se comporta. Penso que conseguimos passar essa imagem.
Passou a dar-se com pessoas mais da área financeira nesse período? A área de onde provém é a dos assuntos sociais.
Sim, mas já conhecia a maioria dos banqueiros que aqui vêm. O meu marido foi administrador da banca [risos]. Conhecia as pessoas que eram das relações do meu marido. Eu própria estive no exercício de funções em que tinha uma fortíssima relação com as pessoas desse sector. As coisas não são estanques. Algumas tinham trabalhado no mesmo espaço que eu.
Pode concretizar?
O Dr. Rui Machete, conheci-o quando foi Ministro dos Assuntos Sociais em 1975/6; eu estava no gabinete do Secretário de Estado da Segurança Social. O Dr. Dias Loureiro foi aqui deputado connosco. O Dr. Karim Vakil conheço-o há imensos anos, ele era do banco Efisa; o irmão dele, aliás, era médico no IPO. Tirando o Dr. Oliveira e Costa e as pessoas mais directamente ligadas ao BPN, que eu não conhecia, muitas das que vieram a ser ouvidas eram do meu conhecimento pessoal.
E não era estranho encontrá-las aqui, na Assembleia, em circunstâncias completamente diferentes?
Perguntou-me há bocado o que é ter 60 anos: é ter muitos anos de vida e muita experiência numa vida polifacetada. Não há nenhum domínio onde não esteja à vontade com os protagonistas portugueses. Estou na cena política há trinta e muitos anos, acabo por conhecer as pessoas todas.
Aprendeu a lidar com esta sobreposição de palcos?
Sim, não tem problema nenhum. Faz parte da minha vida, é o espaço em que me sinto mais à vontade.
Vamos voltar atrás. Nunca pensou em seguir uma carreira política como forma de, verdadeiramente, fazer as coisas que queria fazer?
Fazer coisas não significa fazê-las apenas na esfera política. Posso ser uma boa profissional em qualquer domínio. Tendo uma relação tão forte com a coisa pública, faço política no pressuposto de que estou numa missão nacional, não partidária, sem prejuízo do jogo político-partidário, que também conheço e no qual participo. Todos acabamos por estar num espaço muito politizado, mas coloco sempre à frente dos interesses político-partidários o interesse nacional. É a minha formatação. Não só porque estive muitas vezes em governos, mas porque toda a minha formação e sensibilização foram nesse sentido.
Entrou para o PS relativamente cedo. Nunca se desencantou?
Os partidos políticos têm momentos em que nos sentimos melhor ou pior. Mas como tenho a minha voz autónoma nunca deixei de assumir em cada momento as posições que entendi na vida interna partidária. Como é público e notório.
A sua vida fez-se quase sempre em gabinetes, apesar de haver uma grande relação com o terreno. Já disse que lê bastante. Alguma vez pensou que as vidas grandiosas que lia nos romances não coincidiam com a sua, razoavelmente certinha e arrumada?
[risos] Não, tenho uma noção muito clara do que é o sonho e do que é a realidade. A ficção é extraordinária para nos libertarmos, mas isso não quer dizer que perca os pés na terra. Não me deixo encantar nem seduzir por coisas inconcretizáveis.
Porque é que são inconcretizáveis?
São inconcretizáveis em função da conjuntura, ou até porque a mim não me fazem feliz. O meu quadro de prioridades está muito claro na minha cabeça: primeiro que tudo a família e o equilíbrio familiar, a saúde e a boa saúde das pessoas que me são próximas; depois, ter a cabeça no lugar e ser uma pessoa que não faz má figura naquilo que faz e que tem expressão pública.
Há alguma coisa que a desarrume? Os livros são uma possibilidade de nos desarrumarmos.
Na minha vida de trabalho sou muito desarrumada, mas sei onde está tudo na minha desarrumação. Sou é muito contida. Sou muito racional, mas caso bem a minha componente de sonho, a componente imaterial, e a real. Estou bem comigo mesma, gosto de mim como sou e não pretendo ser outra coisa diferente.
É muito pequenina; quando começou a crescer, na adolescência, nem nessa altura se desarrumou, se fracturou?
Se gostava de ter sido mais alta?, com certeza que gostava! Mas isso nunca constituiu um drama. Era muito pequenina, mas era equilibrada do ponto de vista da minha imagem. Sempre fui muito mimada precisamente porque era pequenina. Mesmo entre as minhas colegas, no liceu, era apaparicada. Sou muito prática, dou a volta. Por causa da minha capacidade de relativizar as coisas, não transformo num problema aquilo que verdadeiramente não o é. A minha mãe dizia-nos que éramos como ela gostaria: nem muito bonitas nem muito feias. Convivi com pessoas lindíssimas [para quem a beleza foi] factor de infelicidade. Sempre convivi bem com esta minha anormalidade em termos de tamanho.
Nem na adolescência, ou quando começou a trabalhar, pensou que tinha que se afirmar de outra maneira – ser encantadora, competentíssima, extraordinária – para deslocar o centro da atenção para aí?
Nunca senti nenhuma insuficiência. As mulheres medem esse seu desvalor na capacidade de atrair o sexo oposto; e sempre tive tantos pretendentes [risos], que não podia ser uma pessoa complexada!Havia um colega meu brasileiro, em Coimbra, que tinha uma paixão enorme por mim e que ameaçava raptar-me! Ele apresentava-se como o homem mais feio do “Brasiu”, parece que era riquíssimo, tinha avião privado e tudo. Eu achava que era verdade!, andei uns tempos aflita…
Não lhe aconteceu desejar uma coisa dessas, que a loucura lhe batesse à porta?
Podia ser interessante, mas nunca tive esse desejo de aventura. Isso seria interessante para a sociedade de hoje em dia. O Portugal de há 40 anos atrás não dava para esses arrojos. Esses arrojos partiam de pessoas muito desequilibradas e desinseridas. Eu nunca fui desequilibrada nem desinserida.
O exercício do poder fez de si uma pessoa diferente?
Percebi cedo que, no âmbito da política e dos lugares de poder, as pessoas se relacionam connosco enquanto titular do lugar. Vi algumas pessoas fazerem muito tristes figuras quando tomavam posse… Transmutavam-se. Não percebiam que os rapapés que lhes faziam eram dirigidos não a si mas ao lugar. Pensei sempre que os subservientes são pessoas de quem devemos fugir e que estarmos com determinada farda é efémero e passageiro. Quando tomei posse como Ministra da Saúde houve algumas regras que imprimi a mim própria e às pessoas que trabalhavam comigo: ninguém me tratava por Ministra, a não ser que estivesse numa situação oficial. E tanto quanto possível continuaria a fazer a minha vida, ia às compras ao supermercado; para não sentir nenhuma diferença entre o exercício do lugar e a saída dele. Fui vacinada cedo contra o ridículo.
Como é que foi vacinada?
Percebi e presenciei. Numa altura de grande rotação, como foram os governos provisórios, as pessoas de manhã eram ministras e às três da tarde já não eram; e as pessoas que de manhã as tinham conhecido, à tarde faziam de conta que não as conheciam. Do ponto de vista da auto-estima, é terrível. Gosto que as pessoas, respeitosamente, me digam o que está mal. Não acredito numa pessoa que vem ter comigo e que me bajula – livro-me dela imediatamente.
Nunca ficou deslumbrada com nada?
Não me deslumbro. Deslumbro-me com coisas pequeninas, que não têm importância para a maioria das pessoas.
Parece muito equilibrada. É realmente uma fortaleza? Para quem é que ficam os seus momentos de fragilidade?
Os momentos de fragilidade são sempre os momentos familiares, doença ou risco de doença na família. Mais nada. O resto resolve-se.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010