Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

Maria do Rosário e Roberto Carneiro

10.02.22

Sim, falámos do álbum de família, com nove filhos, uma Babilónia ao almoço. Mas antes disso há a vida política, a vivência religiosa, as famílias de origem que contribuíram decisivamente para a sua formação, o piano que tocaram (pouco) a quatro mãos. Há uma história antes de Maria do Rosário e Roberto serem “os Carneiro” que dá também um tempo, um país, um amor. Não são, ao contrário do que parece, fáceis de situar.

Maria do Rosário nasceu em 1948. Roberto nasceu em 1947. Foram políticos, empenharam-se civicamente antes e depois da revolução de Abril. A Educação esteve no centro da actividade profissional de ambos, sobretudo de Roberto, que foi ministro entre 1987 e 1991. (Nessa altura, o dinheiro era tão pouco que chegaram a pagar o pão com o cartão de crédito!) Casaram-se em 1973.

A entrevista ao casal, substancialmente focada nas pessoas que foram antes de formarem a sua conhecida e numerosa família de nove filhos (quiseram ter 15), aconteceu em casa. Na sala da casa, onde há objectos sem fim, num relativo desalinho que não impressiona e para o qual Maria do Rosário chama a atenção (para dizer que é o compartimento mais arrumado da casa). Há fotografias dos filhos, móveis de família, arte. É uma sala, e uma casa, onde há sempre pessoas e espaço para mais pessoas. Filhos e netos. E por isso vozes, e sons de instrumentos musicais, e eventualmente o choro de uma criança.

A entrevista foi ao fim da tarde. Parece incrível que tenham estado duas horas a conversar, sem interrupção. Saíram atrasados para jantar em casa de amigos. Entretanto tinham contado como foi – e é – a sua vida feliz.

 

Houve um tempo em que não eram “os Carneiro”, pais de nove filhos. Comecemos pelo que está antes, pelo momento em que se encontraram.

Roberto – Foi no jornal universitário O Tempo. O meu cunhado, o Adelino Amaro da Costa, era o editor, eu era o director. Fizemos umas reportagens sobre residências universitárias.

Rosário – Para ir às residências femininas, achava-se que era melhor irem raparigas. Houve um recrutamento de mão-de-obra feminina e eu fui à pala do meu irmão. Foi aí que nos vimos pela primeira vez.

 

O seu cunhado era seu amigo?

Roberto – Muito amigo e próximo. Lembro-me perfeitamente, da Maria do Rosário no nosso primeiro encontro. Usava uns hot pants pretos. Uns calções muito colados, muito apertados.

Rosário – Apertados? Eram curtos mas não eram apertados, porque não se usava.

Roberto – Boa perna, bom pernil

Rosário – [riso] Obrigada.

 

O que é que lhe chamou à atenção nela?

Roberto – A personalidade.

Rosário – A sério?

Roberto – Muito assertiva. E era elegantíssima, pesava uns 50 quilos. Nenhuma filha cabe no teu vestido de casamento.

Rosário – Só a Madalena. Não me achava nada magríssima, nem elegantíssima. Sempre achei que era gorda. Deve ser da cara. Agora já não a tenho tão redonda. Vai esmorecendo.

 

Como é que o seu marido era?

Rosário – A primeira vez que o vi, lembro-me perfeitamente, ele tinha uma camisola de gola alta branca. O cabelo curtíssimo, com uma palinha mesmo à chinês. E pensei: “Que mal que lhe fica aquele corte de cabelo”. Achei-lhe muito pouca graça. Ele era quem estava a dar as indicações, a dizer o que é que tínhamos que fazer.

Roberto – Nunca gostou de receber ordens...

Tinha a ideia de ser essa rapariga assertiva?

Rosário – Não. A ideia que tenho de mim era de ser muito alegre. Bem, se calhar dizia assim...

Roberto – Postas de pescada.

Rosário – Adorava dar postas de pescada. Mas sempre tive de mim a ideia de ser uma pessoa com inibições. Tem a ver com uma marca educativa.

 

Sabia o que queria? No Portugal de então, com limitações que depois podemos detalhar, que ideia tinha para a sua vida?

Rosário – Quando conheci o Roberto, tinha passado por várias fases. Tinha achado que ia ser prima ballerina. Mas a minha mãe disse-me: “Agora vais estudar”. A minha mãe nasceu em 1914 numa família um pouco excêntrica. O meu avô determinou que nenhuma das filhas podia ter diploma. A minha mãe fez o Conservatório de piano todo, excepto o exame final. Tinha essa tristeza. E sobretudo tinha a tristeza de não ser autónoma na sua capacidade material. Foi qualquer coisa que desde muito nova me imprimiu: ser independente.

 

Esteve um ano em Direito e depois estudou Ciências Sociais e Políticas no ISCSP.

Rosário – Deu-me instrumentos fantásticos para ver o mundo à minha volta, percebê-lo.

 

O que é que o Roberto queria fazer com a sua vida quando era jovem?

Roberto – Queria ser pianista. O sonho era ser músico, como o meu pai. A minha mãe não deixou. Empurrou-me sempre para um curso onde pudesse ganhar a vida de forma regular e menos ambulatória.

 

Onde radica a preocupação da sua mãe?

Roberto – Toda a minha família foi forçada a migrar durante a Segunda Grande Guerra logo seguida da guerra civil na China, opondo comunistas contra nacionalistas. O meu pai era músico profissional, mas morreu cedo, em 1963, quando eu tinha apenas16 anos. Fiquei só com a minha mãe. E era filho único. Foi como se tivesse desaparecido uma parte da minha vida. Tive de me fazer precocemente homem, abandonar o período idílico “teenager”. Decidi então que queria ser físico nuclear.

 

De onde veio essa ideia?

Roberto – Um “velho” Bensaúde mandou-me chamar de propósito da Ilha Terceira para S. Miguel, onde estava acamado, para me orientar. [Eu devia ir] para os Estados Unidos cursar o MIT. Enviou-me para fazer as provas de acesso nesse mesmo ano (1963).

 

Acabou por fazer Engenharia Químico-Industrial, no Técnico.

Roberto – Decidi ficar em Portugal dada a relação muito próxima que mantinha com a minha mãe e com a parte da família do meu pai que residia em Lisboa. Engenharia Químico-Industrial era o mais próximo dos estudos das partículas elementares e da Química-Física Nuclear, temas que me fascinavam.

 

Sei que a sua mãe falava mal o português...

Roberto – Os meu pai nasceu em Xangai e a minha mãe em Hong Kong. Falávamos inglês em casa. Chinês de Xangai e cantonês são um pouco como escandinavo e grego... O facto é que a minha mãe nunca conseguiu apropriar a fonética nem a sintaxe do português.

 

Então, com quem aprendeu a falar português? Fala português sem sotaque.

Roberto – Na escola, com os amigos. Cheguei à escola e não sabia falar português, só inglês. Fiz a escola primária e o liceu na Terceira. As minhas memórias mais recônditas são açorianas, do mar intensamente azul que se encontra com o céu lá longe, na linha do horizonte...

 

O dinheiro marcou especialmente a sua vida nessa fase? Como era antes e depois da morte do seu pai?

Roberto – Enquanto o pai foi vivo, vivíamos sem restrições. O meu pai conseguia trazer para casa qualquer coisa como 10 contos por mês. Era maestro titular das duas principais orquestras que actuavam na base americana das Lajes. Foi esse convite que nos fez ir para os Açores, em 1949. Com o falecimento do pai, aparecem-nos credores de todo o lado, como abutres sobre a carcaça, e tivemos de vender património, inclusive os instrumentos do pai – saxofone, clarinete, trompete, fagote, oboé, e finalmente o piano. Vivíamos com pouco mais de 500 escudos por mês. Os tios do pai decidiram quotizar-se para nos ajudar a sobreviver. Decorridos uns seis meses, vim a ser beneficiado com bolsas de estudo da Fundação Gulbenkian e da Junta Geral do Distrito Autónomo de Angra do Heroísmo.

 

Na vida do Roberto, o piano era determinante e representava, de certa maneira, o pai. A presença do piano era igualmente forte na sua vida?

Rosário – Lembro-me do piano em casa desde sempre. Segundo a história que a minha mãe contava, o meu avô mandou-o vir da Alemanha para a sua dotada filha aprender piano. O piano acompanhou os meus pais quando foram viver para a Madeira. O meu pai foi fazer as levadas.

 

O que é fazer as levadas?

Rosário – São os canais de águas pluviais. Concebeu toda a rede de levadas, depois das respectivas barragens, depois das centrais hidroeléctricas. Na Madeira, fazia parte da rotina da família ouvir os manos. Quando viemos para o continente, comecei a aprender. Tive aulas durante nove anos com a senhora dona Maria Campina. Eu nem sempre estudava as lições...

 

A música é comum à nossa vida. Tocaram juntos?

Rosário – Depois de eu já não achar esquisito o penteado, passámos a ir juntos a concertos. Tentámos tocar uma peça a quatro mãos. O Roberto foi a Paris e trouxe a partitura, a Marcha Turca de Mozart. Ao fim de três andamentos começávamos a discutir. [risos]. E acabou-se o piano.

 

O seu quadro era o de uma família burguesa, abastada, o que marca, não só a vida de todos os dias, mas também a expectativa da vida que se vai ter. Tem uma experiência, na adolescência, oposta à do Roberto.

Rosário – Tenho. O meu pai era um quadro superior da Administração Pública, e tinham três filhos. Era abastado no sentido em que se pertencia ao grupo mais favorecido da população; só que a minha recordação de infância e de juventude não é de abastança, é de contenção.

Roberto – São os anos do pós-guerra.

Rosário – Quando viemos para o continente, fui para o Sagrado Coração de Maria, onde estive até ao 7º ano do liceu usando sempre uniforme. Para além do uniforme, devia ter duas fatiotas, uma das quais eram umas calças transformadas das calças dos meus irmãos. As camisolas eram desfeitas, lavada a lã e feitas outra vez.

 

Ainda não falaram de religião.

Roberto – A minha família era muito católica. Era a maneira de, na China, se diferenciarem. Portugueses de Xangai, portugueses de Hong Kong, todos marcados por uma fé inabalável. Tive uma formação católica muito forte, desde pequenino. Catequese, acólito, coro, idas à igreja todos os dias santos e nas grandes festas litúrgicas.

 

Frequentou escolas religiosas?

Roberto – Eu não. (Os nossos filhos estudaram até ao final do ensino primário no Colégio Dominicano do Bom Sucesso, em Pedrouços, sob a responsabilidade dos padres dominicanos irlandeses.

Rosário – Tinham nessa escola o inglês e a catequese integrada.)

 

Fale-me da marca da religião na sua vida.

Rosário – Os meus pais eram ambos católicos, alentejanos. O meu pai um republicano convicto.

Roberto – Com antecedentes familiares maçónicos...

Rosário – O meu pai tinha uma religiosidade própria. Ia à missa umas vezes e não ia outras. A minha mãe ia mais regularmente. A minha avó materna era intensamente religiosa. Rezava duas horas por dia num oratório lindíssimo. Mas não ia à igreja, acho que não gostava muito de padres.

 

Iam a que capela?

Rosário – Íamos à igreja do Campo Grande ou então à capela do Colégio Pio XII, que eram as que ficavam mais perto. Esta educação austera no colégio e esta relação particular que os meus pais tinham com a Igreja, predispuseram-me muito bem para a questão religiosa. Consegui descortinar um caminho de liberdade.

 

Gostava que me falasse dele. Até porque, tanto quanto se sabe, a experiência do seu irmão com a fé e a igreja foi menos livre.

Roberto – O Adelino foi Opus Dei.

Rosário – Ainda antes do Adelino: há uma aprendizagem da fé não pelo lado ritualista mas pelo lado da prática e da vivência quotidiana. As dúvidas?, todos temos. Então é preciso estudar, ler, debater. O meu irmão Adelino teve um papel muito importante. Pela profundidade do seu pensamento.

 

O Adelino era o mais religioso da família?

Rosário – Era, inquestionavelmente. Aderiu muito novo à Opus Dei, e aos 23 anos foi viver para uma casa da Obra. Acabou Engenharia num dia e anunciou que se ia embora no outro.

 

Foi vivido como uma perda?

Rosário – Foi. Foi bastante violento.

 

Não sei se são Opus Dei.

Rosário – Eu não sou, e o Roberto também não.

 

Teve importância na forma como viveu, e vive, a religião o facto de o Adelino ter aderido à Opus Dei?

Rosário – Não teve nenhuma. E se tivesse tido alguma, era negativa. A sensação de irritação com que ficámos, de ele se ir embora de um dia para o outro... Dizia que era “outra família”. Era dificílimo falarmos com ele. Não foi pacífico. Lembro-me de um período de tensão, de incompreensão de tudo o que se estava a passar.

 

Nem sequer foi cobiçada pela Obra?

Rosário – Ah, pois, um bocadinho, sim. Houve umas propostas. Se calhar aí é que está a assertividade [de que fala] o Roberto. Este tipo de proposta de organização, de dedicação, de desenvolvimento de um projecto de vida, nunca consegui adoptar. No colégio, o máximo que fui foi “cruzadinha” do Menino Jesus, porque todas as meninas eram. Depois passava-se para “zeladoras”, e nunca fui capaz. Muita regra. É uma rejeição que é intrínseca em mim.

 

Uma rejeição à estrutura?

Rosário – Sim.

 

Pensei que a vossa família de nove filhos reflectisse muito mais a marca da religião. Era vosso desejo ter uma família numerosa não forçosamente por motivos religiosos...

Rosário – Uma vez perguntaram se tínhamos estes filhos todos por causa de sermos católicos. Não consigo compreender esta pergunta. Muitos estudos sociológicos mostram que os católicos não têm mais filhos que os não-católicos, e que usam os mesmos métodos contraceptivos. Ninguém tem um filho por causa da religião.

 

Explique-me isso.

Rosário – Foi um projecto nosso, ainda não nos tínhamos casado, de que havíamos de ter muitos filhos. Ele porque não tinha irmãos, e se calhar queria ter irmãos. Eu porque tinha dois irmãos mais velhos a arengarem-me o juízo. A serem mais papistas que os meus pais.

Roberto – Queríamos ter uma equipa de râguebi, 15. Passámos para 11, uma equipa de futebol.

Rosário – Ficámo-nos por nove. E tínhamos uma lista de nomes de 15 rapazes e 15 raparigas, não fosse o diabo tecê-las e serem todos do mesmo sexo. [riso].

 

A ideia da grande família era uma tradução de felicidade?

Rosário – Era.

 

Depois de termos falado de coisas estruturantes da vossa vida, como o dinheiro e a religião, falemos do país de então. E de política. Anos mais tarde, quer um quer outro tiveram intervenção política.

Roberto – Entrei em 79, 80 para a política. A influência do Adelino foi determinante. Quando se formou, primeiro a Convergência Democrática, depois a Aliança Democrática, perpassou por todo o país um frémito de esperança. Envolveram-se partidos como o PPD de Francisco Sá Carneiro, o CDS de Diogo Freitas do Amaral e Adelino Amaro da Costa, o PPM de Gonçalo Ribeiro Telles e os “reformadores” que congregavam gente como António Barreto ou José Medeiros Ferreira.

 

Integrou o governo AD.

Roberto – Era irrecusável a intimação (mais do que convite) do trio Francisco, Diogo, Adelino para integrar o executivo como secretário de Estado da Educação, acompanhando o ministro Vítor Crespo, tal era o sentido de dever cívico e de apelo a uma cidadania activa que todos sentíamos.

Rosário – Mas já havia uma percepção [do contexto político] antes disso.

Roberto – Nunca pensei ir para a política. Pensei ser um técnico estudioso e minimamente qualificado de Educação, nada mais.

 

Novamente atrás, ainda antes da revolução: como viveu a censura, por exemplo trabalhando num jornal?

Roberto – A censura é uma coisa violentíssima que fere a dignidade da pessoa, a sua liberdade interior de expressão e de pensamento. Até hoje nunca me senti tão violentado como quando fui alvo da censura excepto, talvez, em Joanesburgo, África do Sul, quando fui objecto de catalogação rácica e vítima do “apartheid”.

Em 68, 69 sentimos a abertura da Primavera Marcelista, que rapidamente se fecha. Eram tempos épicos de luta por uma liberdade de imprensa. Sá Carneiro, Francisco Balsemão, José Carlos de Vasconcelos, Jacinto Baptista, João Gomes, Raul Rego, são nomes de pessoas com quem aprendi muito. Escrevia furiosamente para substituir textos que o malfadado lápis azul cortara. A ironia do destino é que, na sequência do 25 Abril de 74, somos quase todos saneados.

 

Rosário, como é que a política se impunha na sua vida?

Rosário – O meu pai foi membro do Governo do anterior regime

durante quase dez anos. Foi subsecretário de Estado das Obras Públicas e secretário de Estado da Indústria, começou a sua governação como subsecretário de Estado do Fomento Ultramarino. Cresci ouvindo falar do negócio público. Cresci com uma pessoa que tinha como objectivo de vida servir. Transmitiu-nos isto de forma muito clara.

 

Falava do trabalho, contava histórias?

Rosário – Sim. Era director-geral de hidráulica no Ministério as Obras Públicas quando foi convidado para ir para secretário de Estado. Terá ido ao forte onde estava Salazar, a quem disse: “Não sou um político, sou um técnico”. Salazar terá respondido: “Ó, Sr. Eng., mas o que é um subsecretário de Estado senão um super director-geral? Vai continuar a aplicar o seu saber técnico”. Donde, as minhas memórias estão recheadas de conversas e conversas sobre o condicionamento industrial, o empreendimento de Sines, os grandes investimentos da rega do Alentejo, o Alqueva.

 

Era politizada?

Rosário – Não, não era. Mas estudar Ciências Sociais e Políticas pode provocar muitas coisas na pessoa. Interrogar, questionar, valorar, balancear.

Foi criado no ministério do Trabalho e das Corporações o Gabinete de Organização (GO) para jovens recém-licenciados. Fui convidada a fazer parte. Um dos trabalhos que me foram encomendados foi análise de conteúdo da expressão “Estado Social”, que fazia parte do discurso de Marcelo Caetano. Cheguei à conclusão que não tinha conteúdo.

 

Depois foi/foram trabalhar na área da Educação. No tempo de Veiga Simão? Em que anos?

Rosário – Em 1972. As áreas onde trabalhei eram de novo áreas em que era necessário pensar o desenvolvimento, e o que é que tinha de ser feito para promover crescimento. Quer dizer, não por ser politizada mas pelas áreas em que trabalhei, há uma progressiva consciência política. E isto é ser-se político.

Roberto – A casa de José Veiga Simão é uma verdadeira central de sedição contra o regime. Acho que Veiga Simão é um homem de grande coragem, sendo-lhe devida uma homenagem que terá de ser feita um dia.

 

A relação com Veiga Simão vinha de trás.

Roberto – Sim. No período do marcelismo, já a vida andava numa grande fona. Fazia jornalismo, para ganhar algum dinheiro e complementar a bolsa de estudo, quando Fraústo da Silva me convida a trabalhar no seu gabinete, que viria a ter papel preponderante na reforma Veiga Simão [que promoveu a democratização do ensino]. Recordo ainda que, fruto dos constantes choques com a Comissão de Censura Prévia, sou interrogado pela PIDE, por duas vezes, na Rua António Maria Cardoso, durante as quais me acusam de ser simpatizante comunista!

 

Que coisa inesperada. Por causa do jornalismo?

Roberto – Sim, e também (viria a descobri-lo mais tarde nas fichas da PIDE-DGS) por ter intensas actividades na associação de estudantes (onde venho a ser eleito para dirigir a acção cultural) e na juventude católica, primeiro como aluno, mais tarde como monitor, assistente e regente de curso até 1974-75, com colegas do IST de “extracção comunista”.

 

Podemos dizer que ideologicamente está mais à esquerda e que a matriz conservadora resulta da fé católica?

Roberto – Melhor, talvez impregnado de um catolicismo de pendor fortemente social. Tinha lido Hegel, Marx, Gramsci, Rosa Luxemburgo, bem como Emmanuel Mounier e Jacques Maritain, pais do movimento do “personalismo humanista” muito em voga entre universitários católicos nos anos 60 e 70.

 

Que relação teve com partidos de direita?

Roberto – Com o CDS tive uma relação amor-ódio ao longo dos anos. O partido é fundado em 1974 e eu faço a tradução para inglês das suas Declaração de Princípios e Estatutos por incumbência do Adelino.

 

Viria a ser ministro da Educação de um governo de direita, de Cavaco.

Roberto – Conheço Cavaco Silva na qualidade de ministro das Finanças de Sá Carneiro. Fui Ministro da Educação do seu Governo entre 17 Agosto 1987 e 1 Novembro 1991.

Mas voltando um pouco atrás, lembro que tenho um despacho de um secretário de Estado de um dos últimos governos provisórios, em 1976, a sanear-me da função publica – por não dar garantias para o regime democrático! Vi-me saneadíssimo já com dois filhos e um terceiro a caminho. Foi isso que me fez intensificar pequenas experiências anteriores e enveredar por uma via de trabalho de consultoria internacional.

 

Foi ganhar a vida lá fora.

Roberto – Viajava seis, sete meses por ano. A tal ponto que uma filha pequenina me estranhava: “Quem é este senhor?”.

Rosário – Ela então acedia a identificá-lo por “Senhor papá”. Não sei se era a Joana se era a Teresa.

Roberto – Penso que era a Joana. Uma enorme perda para mim, uma grande falta para eles. Fui obrigado a pagar um preço elevado por estar ausente de casa, por longas temporadas, em período formativo essencial dos nossos três filhos mais velhos.

 

Nunca pensou trabalhar menos e ter menos filhos?

Roberto – Nunca pensámos ter menos filhos, só quando as restrições fisiológicas se impuseram.

Rosário – Quando nasceu o António, a médica disse: “Não me parece boa ideia engravidar outra vez”.

Roberto – Tinhas 41 anos.

Rosário – 40, Roberto, o António é o presente dos meus 40 anos. Nunca deixei de trabalhar. Tive as licenças de maternidade, que à data eram de um mês. E tinha dois trabalhos, trabalhava no ministério da Educação e dava aulas na faculdade. Nunca coloquei a questão de trabalhar nos dois sítios para fazer face às despesas dos meus filhos. A única vez em que isso aconteceu foi quando o Roberto foi ministro.

 

Porquê?

Rosário – Até aí trabalhava porque gostava de trabalhar. E conseguia, achava eu, se calhar mal, estar com as crianças, dar-lhes a atenção de que necessitavam. Quando o Roberto foi ministro, já tínhamos oito filhos. A nossa conta bancária descia, descia...

Roberto – Contávamos o dinheiro.

Rosário – Era o que mais faltava os meninos ficarem com restrições! Lembro-me de ter pago pão com cartão de crédito. Mas não digo isto de um ponto de vista miserabilista. Foi o resultado das nossas opções.

Roberto – Houve restrições. Sapatos e roupa…

Rosário – Sempre passaram de uns para outros, com restrições ou sem restrições.

Roberto – A abastança não faz bem. As pessoas ficam muito acomodadas. Tem que se viver confortável, mas dinheiro demais, não presta.

Rosário – O que é demais, entope. O que os filhos, sobretudo, nos suscitaram, foi uma enorme criatividade em encontrar soluções.

Roberto – Até esta casa.

 

Mudaram-se para aqui quando eles eram três. É uma moradia, agradável.

Rosário – Pudemos vir para aqui porque a tia do Roberto, que era a dona da casa, achou-nos graça e arranjou um modelo próprio de aquisição. Não ficámos a dever nada, mas não pagámos juros. Com os juros a 20 e a 30%, como então se pagavam ao banco, nunca viveríamos aqui.

 

Como é que passaram a cada filho a noção de que eram únicos, no sentido de haver um tempo só deles, uma dedicação e uma atenção que os preenchia?

Rosário – Tentámos que nos quartos, que eram partilhados, houvesse zonas próprias, intocáveis, de cada um. Nisso era muito rigorosa. Aprender que há um espaço próprio, que não pode ser violado, é uma aquisição básica na vida. Passa-se do físico para o espiritual. E tentámos encontrar momentos de saída, de reflexão com cada um. Adoptei o sistema de um almoço fora, por semana, com cada um.

 

Como é que se arranja espaço para o silêncio numa casa tão cheia?

Rosário – Hoje tenho netos, que são barulhentos. Os que não têm filhos dizem-me: “Como é que a mãe aguentava isto?”. Não tenho essa memória. Houve uns que choraram mais que outros. Houve uma que chorou particularmente durante os dois primeiros meses da sua rica vida. Cheguei a perguntar ao Roberto o que é que achava de a pôr na varanda um bocadinho [risos].

 

Como é que era à mesa?

Roberto – Uma Babilónia.

Rosário – Às refeições era péssimo, mas era tão bom. Às vezes o Roberto dizia: “Vou levar não sei quem para jantar”, e as pessoas ficavam atónitas. As conversas cruzavam-se de uma ponta para a outra da mesa. E havia momentos em que estavam todos e não havia barulho nenhum. Também me lembro de chegar a casa e de estarem nove à espera que eu chegasse. E todos a querer dizer qualquer coisa. Eu olhava para eles, fechava a porta e ia-me embora. Dava uma volta ao quarteirão [risos].

 

É importante que diga isso. Há a ideia da mãe idílica que adora sempre os filhos, que tem sempre disponibilidade para eles.

Rosário – Ai, não pode. Então uma pessoa chega a casa, apanha aquelas almas a gritar, a vociferar contra qualquer coisa...

 

Como é que conseguiram tempo para os dois, espaço para o casal?

Roberto – Fazíamos, pelo menos, uma viagem por ano. Nas minhas múltiplas deambulações profissionais pelo mundo, a minha mulher ia comigo uma semana, duas semanas...

Rosário – Muito cedo realizei que a minha cabeça, para se manter saudável, precisava nem que fosse de 24 horas fora. Essas viagens eram um bom tempo para estarmos juntos. Também com regularidade íamos jantar, só os dois.

 

Sem culpa de deixar os miúdos todos?

Rosário – Sem culpa nenhuma [risos].

Roberto – Os dois sozinhos. Senão pirávamos.

Rosário – É fundamental. Recomendo aos nossos filhos que têm filhos pequenos que têm que encontrar dias durante o ano para saírem sozinhos.

 

Não parecem pessoas que estão sempre a correr. Se calhar é porque vos encontro com os filhos criados.

Rosário – Mas corremos muito.

Roberto – Há a sabedoria que resulta da experiência de vida acumulada. É preciso relativizar as coisas. Por exemplo, outro dia, o nosso neto Manuel partiu a cabeça. Claro que foi preciso ter calma e também ter em consideração que o tio António se encontrava por perto, no Centro de Saúde ao pé de casa..

Rosário – Ai, foi um grande susto. Coitadinho.

 

O que é que são os dramas, mesmo? O que é que se impõe como uma coisa que não é possível relativizar?

Rosário – A asma do João nunca pôde ser relativizada. O estrabismo de uma filha. O dinheiro não chegar. Um bebé que se perde, não pode ser relativizado.

 

Foi a primeira gravidez?

Rosário – Já tínhamos três. Era o quarto.

Roberto – Cinco meses. Tivemos que fazer um funeral.

Rosário – Estive péssima. O Roberto estava no Brasil, foi o Adelino que me levou para o hospital.

Roberto – Já tinha nome, era o David.

Rosário – Mas aprende-se a superar. E mais do que a superar, aprende-se imenso para a vida. No meu caso, foi de tal forma terrível essa perda, de um ponto de vista físico, que aprendi como é bom estar vivo. Aprendi a não ter medo da morte.

Roberto – Tivemos seis filhos depois disso, graças a Deus.

 

É a fé que vos alimenta nesses momentos e que vos faz acreditar que a seguir vem a maré boa?

Roberto – Com certeza. Como dizia Agostinho da Silva, a seguir à maré vazia há sempre uma preia-mar!

Rosário – A fé dá-nos o enquadramento. Não é no sentido estático, de pura contemplação. Alimenta a força para superar, para encontrar uma interpretação.

 

Quando é que se vão abaixo?

Roberto – A minha mulher é muito mais forte que eu. É a rocha sobre a qual está implantada firmemente a casa, que resiste a todos os temporais. Nunca a vi com atitude desistente.

Rosário – Tem a ver com a natureza das pessoas. Perguntavam-me: “Como é que faz com tantos filhos?” É uma pergunta chata, mas arranjei uma maneira parva de responder: “É tudo uma questão de organização”. Há pessoas que têm capacidade para ter nove filhos, outras não. A capacidade que tenho de olhar para as coisas também tem a ver com a minha natureza, com a tal assertividade que eu digo que não tinha mas que, pelos vistos, tinha. Tenho esta postura muito positiva. Por isso é que me é tão grato este novo Papa: aposta tanto na alegria.

Roberto – Resulta daí uma grande força. Há a certeza de que o Pai deixa sempre uma janelinha aberta, uma pequena fresta que nos compete encontrar.

 

Agora imaginem que os vossos netos, daqui a uns anos, vão ler esta entrevista. O que é que vão dizer dos avós, deste retrato que deram?

Roberto – Que para nós os valores de família se impuseram como a coisa mais sólida, fundamental e insubstituível na formação de personalidades plenas, íntegras e solidárias.

Rosário – Que fiquem com a ideia de que tivemos uma vida boa. E que essa é a herança que lhes queremos deixar. Uma vida boa no sentido em que pudemos fazer aquilo que desejámos fazer. Pudemos ter uma família grande, que tivemos a sorte de ser composta por pessoas fantásticas. São nove seres saudáveis, eu diria bonitos. Que tivemos a sorte de ter participado na sociedade, em tantos projectos.

Roberto – Que eles descubram, como nós descobrimos, que a felicidade está na relação com o outro. Dar, dar, dar, é o lema de vida. Dar sem limites e sem esperar reciprocidade nem contabilizar perdas e ganhos.

Rosário – Recebemos também dos nossos filhos e dos nossos netos, e das pessoas com quem nos relacionamos. Esta cadeia do dar e receber, isso sim, é uma maré que vai e vem. Mas temos que a alimentar. Se nada se envia, nada retorna.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2014