Maria Filomena Mónica
Maria Filomena Mónica nasceu em Lisboa em 43. Estudou Filosofia ao mesmo tempo que comprava sabonetes no Martim Moniz. Doutorou-se em Oxford ao mesmo tempo que ardia na culpa de se ter separado com filhos pequenos. Falhou o projecto burguês que lhe haviam destinado. Desconfia do acento queque da sua voz. Na infância fugiu de colégios e inventou que via Nossa Senhora. Na adolescência leu desde fotonovelas a Camus e namorou uns quantos rapazes. Na idade adulta maçou-a que o sexo interferisse nas relações com os homens; casou a primeira vez novinha, e depois com Vasco Pulido Valente e com António Barreto. Investigou mormente o século XIX português. Apaixonou-se por Eça, e verteu, como este, um amor revoltado pela pátria em prosas aciduladas. Fez da educação questão central do seu estudo por acreditar no mundo que se pode abrir a partir da escola. Fala também da presença salvífica dos livros na sua vida. Destilou ironia em incontáveis crónicas de jornal, envolveu-se, envolve-se em disputas públicas permanentes. É historiadora e socióloga. Tem três netos. Pulsa entre um sorriso luminoso e uma dureza dos músculos da cara.
Quando teve pela primeira vez consciência de si enquanto mulher? Quando é que percebeu que o género a marcava e condicionava?
A primeira vez foi quando vi que cresciam umas coisas aqui no peito, que se chamavam maminhas. E reagi negativamente. Comecei a usar blusas muito apertadas por debaixo da camisola. A minha mãe queria que eu fosse rapaz. Só sei agora porque ela está muito doente, tem Alzheimer, e deu-me o Livro do Bebé. Escreve logo na primeira linha: «Eu gostava que ela tivesse sido um rapaz».
Chocou-a?
Não me admira. Acho que, como é uma mulher muito frustrada, ela própria gostaria de ter sido homem. Sei que achei uma maçada ter maminhas. Ainda hoje acho que o corpo feminino é uma maçada.
Uma maçada como?
Tem-se mais chatices que os homens. O útero é dentro, as coisas são todas dentro. As hormonas são uma maçada, a menstruação é uma maçada. A parte positiva foi ao mesmo tempo reparar que era mulher e reparar que era bonita – através dos olhos dos rapazes. Estava nas Doroteias e havia imensos miúdos dos Maristas que iam esperar-nos de moto. Sentia que havia mais rapazes junto de mim, a olhar para mim do que para as outras raparigas. Eu não tinha irmãos…
Quantas raparigas são?
Somos três raparigas e um rapaz. Mas o rapaz e a última rapariga são 11 anos mais novos. Para todos os efeitos era eu e a minha irmã, que tem um ano a menos, e que era muito calma, pouco espevitada, etc. A minha primeira reacção foi também de medo, foi sentir que ser mulher era uma coisa perigosa, apetecível para o sexo oposto.
Quando tem a consciência de que é objecto de desejo tem simultaneamente a consciência de que isso representa poder erótico?
Não logo. Vivia num gineceu. O meu pai estava muito pouco presente. A minha mãe era muito forte. Lá em casa só havia mulheres. O homem era um bicho estranho que metia medo. Até aos 15 anos não queria ir a festas. Depois, entre os 15 e os 20, tudo isto muda. Fui – se possível – a um milhão de festas!, tive dezenas de namorados, fui objecto de desejos fortíssimos, tive relações amorosas complicadas.
Era muito segura de si, entre os 15 e os 20?
Acho que sou insegura. O facto de ter tido uma mãe tão forte tornou-me insatisfeita sempre com o que faço. Nunca está à altura do que ela esperaria de mim. Naquela altura muito mais. Se calhar, quando me via ao espelho, achava que não era feia. Mas isso não me trazia necessariamente segurança. Achava que era burra ou…
A sua mãe era muito inteligente?
Era. Excepcionalmente até esteve na Faculdade de Letras. Mas logo que casou deixou. Canalizou a inteligência/actividade para organizações católicas, foi muito importante no Movimento de Acção Católica. Ao contrário do meu pai, que também era inteligente, mas passivo e doce e que interferia pouco na nossa educação, ela era ambiciosa para nós e muito exigente. No meu caso, fez com que me transformasse numa rebelde. Ou seja, nunca vou ser como ela, vou ser ao contrário do que quer que eu seja.
O que é que ela esperava de si?
Que fosse muito boa mãe, que casasse com um marido socialmente de uma classe elevada, rico, com uma profissão glamorosa; que eu fosse inteligente, que toda a gente me admirasse, que fosse todos os dias ao cabeleireiro, que andasse sempre muito bem vestida – dava imensa importância à indumentária. Queria coisas que vim a verificar que não podiam ser conciliadas. Eu não podia ser a dona de casa que ela queria e frequentar a faculdade e doutorar-me. Teria que optar.
Teve um primeiro casamento muito cedo. Estava a ensaiar um desses modelos de vida? Optou depois por um outro, antítese do primeiro?
Prefiro não falar das razões que me levaram a casar, porque são demasiado íntimas. Mas casei por acaso.
Percebo que não queira falar. Mas... as pessoas casam por amor, por conveniência, qualquer uma dessas. “Por acaso” é mais enigmático.
Como lhe disse, tinha muitas namoradas…Namorados! Ai, não tenho nada uma costela lésbica. Entrei numa série de desvarios afectivos perigosos; a certa altura perceberam que se ficasse em Lisboa tais eram os escândalos, os disparates… Não quiseram necessariamente que fosse para a faculdade, eu é que não tinha nada que fazer. «Vou para um curso de decoração como a minha irmã? Não me apetece ficar em casa a coser e a aprender a cozinhar». E fui para a faculdade. E depois, disse: «Vou sair de casa».
O que é que realmente suscitou a saída de casa?
Tinha um namoro muito atribulado e deixaram-me ir para Londres em 1962. Foi determinante na minha evolução. Passei de uma clausura total – até aos 15 anos ia para o colégio com uma criada, e o colégio era em frente da minha casa – e de repente fui com uma amiga para Londres! Só quando lá cheguei é que percebi que ela me tinha deixado ir porque ia para outro colégio de freiras!, ainda mais extraordinárias chamadas Escravas de Maria, de onde não podia sair, mas de onde fui rapidamente expulsa. Estive em Londres cerca de 10 meses. Segui directamente para Espanha, para a casa de uma família muito rica. Em Outubro vim para Portugal e casei em Abril. Foi um namoro muito rápido que me conduziu por vias complicadas ao casamento.
Nessa altura tinha já ódio ao catolicismo?
Não! Eu não tenho ódio… Tenho indiferença.
A relação parece demasiado acicatada para traduzir indiferença.
A minha relação com a minha mãe é muito complexa e o facto de ela ser católica entra nessa complexidade. A relação com o catolicismo era mecânica. Embora tenha estado 14 anos num colégio de freiras, nada nos era explicado sobre a teologia ou os dogmas do catolicismo. Se a religião influísse na minha vida, seria virgem e casta; se a religião influísse na vida dos católicos, eles teriam que se preocupar com a pobreza gritante que havia em Portugal, e não se preocupavam.
Como olha para muitos católicos que se reaproximaram da igreja, que se reconverteram?
Não tenho medo de voltar. Nunca me comportei como se Deus fosse um princípio orientador da minha vida. Não tive um período místico a sério, a não ser aos 8 anos quando dizia que via a Nossa Senhora, mas isso era para me exibir perante as colegas. Quando me perguntam se sou agnóstica ou ateia, até hesito em responder. Não gosto do laicismo militante dos que acham que os católicos são uns atrasados mentais e que os padres deviam ser todos expulsos... Sou agnóstica no sentido em que o tema deixou de fazer parte da minha vida.
Porque é que era exibicionista? Nesse ambiente de clausura, que tipo de criança era?
Sempre fui bastante egocêntrica. Relativamente mimada por ser a mais velha e por ser o alvo das atenções, mesmo das negativas, da minha mãe. Ela sabia que era difícil dominar-me desde muito pequena. Tanto que entrei para o colégio aos três, fugi várias vezes, ia sendo atropelada...
Era tão arisca porquê?
Não gostava de obedecer a ordens. Ela também assentou no livro: «A primeira palavra que disse foi “Não”». Na turma, (eram aí umas 15 meninas), queria dominar todas as outras e reproduzir o modelo que tinha em casa – que era o de dominar a minha irmã mais nova, que ficou mais baixa que eu até aos 17 anos; depois, quando se casou, cresceu. Eu não a deixava crescer, mesmo fisicamente.
A sério?
É um facto. Ela casou com um irmão do meu primeiro marido. Posso ser muitíssimo opressiva, centralizadora e intervir na vida dos outros. É um dos meus defeitos. Na escola primária, queria ser a amiga de todas. Mandava-as escrever papelinhos: «Quem é a tua melhor amiga?». Tinham todas que escrever o meu nome em primeiro lugar! Foi nessa fase que descobri – maçava-me no terço e a rezar – que era a eleita de Deus. Nesse sentido, podia ver milagres! As freiras chamavam a minha mãe, assustadíssimas.
Mas isso era entre si e si ou entre si e a sua mãe?
Era entre mim e as meninas, em primeiro lugar. Saía da capela com ar iluminado a dizer: «Vi a Nossa Senhora». Elas, coitadas, não viam e achavam que eu era um ser místico. Era um exibicionismo perante as colegas, as freiras. Aí não entrava muito a minha mãe. Estava sempre à beira da expulsão, mas a mãe ia falar com o bispo e dizia: «Deixem-na lá ficar que ela é meio atontada, mas precisa de uma rédea curta e que tomem conta dela».
Ou seja, sabia que não constituía problema ser expulsa. Mas, insisto: não era uma tentativa de impressionar a sua mãe? Até onde é que tinha consciência de todo esse processo?
Acreditava mesmo que via a Nossa Senhora. Sabia que mesmo que fosse expulsa era reintegrada. Isso dava-me uma enorme margem para me portar mal ou de forma exótica. O que me fascinava era que as outras meninas me punham num pedestal, e gostava de estar num pedestal.
Como é que lidava com a resistência e a contrariedade?
Não tive muitas adversidades. Foi uma infância relativamente feliz. Ninguém morreu que estivesse perto. Havia dinheiro, tínhamos duas criadas, era uma família burguesa típica. O meu pai arruinou-se, mais ou menos na altura do meu casamento, e aí foi muito trágico para os meus irmãos mais novos. O momento problemático foi a adolescência, os 17, 18 anos. Em que deixei de ser católica, em que descobri o sexo, em que as relações amorosas se tornaram muito importantes na minha vida. Tive de começar a trabalhar muito cedo, aos 18. O meu marido estava na tropa e era cabo, não ganhava o suficiente. Tive duas crianças em sucessão no mesmo ano.
Porque é que teve filhos?
Também é muito íntimo. A pílula só foi descoberta em 1964. Tive os filhos em 63. A partir de então, passei a tomar duas pílulas todos os dias, não fosse o diabo tecê-las. O médico fartou-se de me dizer que isto não tem pés nem cabeça. Está bem, está bem... Durante 10 ou 15 anos tomei sempre duas. Devo ter sido das primeiras mulheres em Portugal a tomar a pílula.
Havia resquícios do projecto burguês? Quis ser a boa mãe, a fada do lar?
Imensos resquícios. Fui casada sete anos. Até ao quinto ano do matrimónio, quis fazer tudo. Copiava receitas da Elle em francês. Ia à drogaria comprar coisas com a minha mãe, que tinha a mania dos saldos. Em vez de estudar filosofia, perdia o tempo a comprar Tide e sabonetes a uma loja no Martim Moniz para poupar dez tostões! Três meses antes de nascer o meu filho arranjei um emprego como intérprete no Ministério da Saúde, onde ganhava bastante bem. Ter começado a trabalhar e sentir que a situação era injusta para mim dentro do casamento, começou a distanciar-me do modelo da minha mãe…. Foi uma coisa gradual. Mas percebi que haveria um momento em que aquilo ia estoirar. O papel social que me era imposto era incompatível com aquilo que desejava da vida.
Aborrecia-se de morte nessa altura?
Aborrecia-me de morte. Íamos muito a boites, dançar, e aquilo começou a cansar-me também, a desinteressar-me. Um dos meus refúgios era a leitura. Entre os 14 e os 18 anos li imenso. A minha mãe, de resto, também. Alguns livros ela dava-me, outros, mais ou menos proibidos, ia buscar à estante.
Lia o quê? Flaubert?
Não, não. Li desde as fotonovelas que as costureiras levavam lá para casa ao Gide ou ao Camus… Lia tudo. Isso continuou um bocado durante o casamento. Não tinha absolutamente nada que fazer. Trabalhava das 9 às 5 todos os dias, para, coisa patética, escrever uma carta por semana para a Organização Mundial de Sáude, em francês! Chegava a casa, tratava das crianças vagamente (apesar de tudo tinha empregada) e aborrecia-me. Lia e continuava o curso por desfastio. Quando acabei o curso em 68 ou 69, disse: «E agora, o que vai ser de mim?» Separei-me e fui para Oxford. Foi a grande viragem.
Até então, o que é que interferiu realmente no curso da sua vida? Que factores foram determinantes para a mudança?
Foi a percepção de que não tinha que aceitar o destino que me tinha sido reservado. E isso foi mesmo adquirido nos livros. Há uma frase nas «Ligações Perigosas» em que a Madame de Merteuil diz: «Eu sou a minha própria obra». Tinha coisas muito dolorosas. Era a primeira separação na família dele e na minha. Mas há momentos na vida em que uma pessoa não tem que decidir. Eu sabia que morria. Se continuasse naquela vida morria asfixiada.
Que claustrofobia era a sua?
Havia a Rua Rodrigo da Fonseca e a Rua da Artilharia 1, esse era o meu mundo. Mas desconfiava que havia outras coisas. Não foi uma decisão. Fui empurrada. Estava sem ar e de repente abri uma janela e veio um vendaval e levou-me.
Quando é que aconteceu pela primeira vez respeitar e admirar um homem?
Tenho muita dificuldade em usar esses termos. A distinção principal era entre paixão e amor. A minha tendência natural era para me apaixonar por quem me tratasse o pior possível. Qualquer idiota que me desse um pontapé, ficava logo apaixonada. Não era uma grande receita para a felicidade.
É inesperado descobrir em si uma costela masoquista.
A paixão era o elemento negativo, no sentido clássico em que os gregos usam o termo paixão – quer dizer: sofrimento. Foi isso que busquei até aos meus 30 anos. Era uma coisa destrutiva e aleatória. E não é muito difícil maltratar uma pessoa, não exige qualidades transcendentes.
Mas qualquer pessoa podia maltratá-la?
Qualquer pessoa que me maltratasse suscitava logo a minha curiosidade, porque eu era objecto de enorme adulação.
Por isso é que lhe perguntei há pouco como é que reagia à adversidade e à contrariedade…
Mas tive poucas contrariedades! Uma grande percentagem dos rapazes com que me dava tinham grandes paixões por mim, achavam que era lindíssima, inteligentíssima, maravilhosa, forte. «Este é um palerma» – deixava logo de me interessar. Restavam uns que me resistiam. E sentia-me atraída pelos que me resistiam.
Que eram?
Dentro dos que me resistiam havia alguns que eram inteligentes e outros que eram patetas; resistiam-me porque eram cobardes e tinham medo de mim. O esquema começou a repetir-se e percebi que não ia longe com o sofrimento todo causado pela rejeição. Comecei a privilegiar muito mais a amizade/amor. Uma «amitiè amoreuse». Mais calma, por alguém que respeitava, e sem o condimento da paixão, que acho que está ligado ao sexo e ao desejo da morte. Isto encarreira-se. Foi uma altura em que desejava muito ser homem.
Como assim?
Todos os filmes que via… Gostava muito do John Ford e ele tem muitos espaços de homens. Eu era amiga de imensos homens mas havia sempre aquela maçada... O sexo era perturbador. Numa amizade entre homens, o sexo não existe. Na ópera «Dom Carlos», do Verdi, há uma relação viril muito importante entre dois personagens – era a minha ópera preferida.
O sexo interpõe-se, vicia as relações. Ainda o respeito: quando descobriu o seu poder erótico, tinha respeito pelos que sucumbiam a esse poder? E tinha respeito por esse poder que naturalmente tinha?
Pelos que sucumbiam não tinha respeito. Desinteressava-me. No resto? Preferia ter poder erótico sobre os homens do que não ter. Imagino.
Provavelmente preferia que ficassem estarrecidos com a sua inteligência.
Há uma coisa interessante nos anos 60. Por ser bonita, era necessariamente estúpida! Quando entrei para a faculdade senti que os homens olhavam para mim: «Esta tipa veste-se tão bem, é loira, é estúpida de certeza». Os colegas e os professores. Tinha de passar por cima daquilo, sem ceder, a continuar a usar mini-saia, a pentear-me como me penteava... Não me tornei feia de propósito para pensarem que era uma intelectual!, isso era o terror do meu pai. O terror do meu pai era que eu fosse uma intelectual, porque ele achava que as intelectuais tinham um cabelo oleoso e vestiam mal.
E eram lésbicas.
Sim, e lésbicas. Mas disso acho que nunca teve medo. Ambos teriam preferido que eu tivesse tido uma vida mais ortodoxa.
Não está completamente resolvida para mim esta questão do poder erótico. Imagino que aquilo que desejava, até pela descrição que faz da relação viril, impoluta, era uma relação onde a inteligência e a força são elementos dominantes.
Era muito importante a durabilidade. O poder contar com o outro até à morte. As paixões são doenças curtas, são patologias. São desvios derivados do sexo, muito ligados ao desejo da morte, altissimamente gratificantes – uma pessoa sente-se fora do mundo, o trivial deixa de existir, só importa o objecto amado.
Muitas pessoas olham para si como a mulher que seduziu os dois homens mais inteligentes e interessantes de Portugal. [Vasco Pulido Valente e António Barreto]. Acho graça à formulação. Diz-se que seduziu, e não que foi seduzida.
Espero ter seduzido muito mais do que dois. Para aí 20!
Está bem, mas estes são particulares. Também por isso perguntei se qualquer homem a podia maltratar. Eles têm de ser estimáveis? Tem de os admirar para que a sua auto-estima saia fortalecida?
Não sei se fui eu que os seduzi se foram eles que me seduziram. Que eu respeito ambos, respeito. Mas não posso dizer muito mais sobre essas relações. São relações diferentes no tempo. Um deles conheci aos 16 anos. Sempre tive muita necessidade de ter um irmão mais velho, a quem pudesse contar coisas.
O Vasco Pulido Valente foi esse homem?
É uma amizade muito profunda e ambos sabemos que nunca pode acabar. Garanto que ele me tem feito muitas patifarias. Ele provavelmente dirá que tenho feito outras tantas em igual medida. Temos coisas muito parecidas. Apesar de sermos temperamentalmente diferentes.
A sua vida teria sido diferente se não o tivesse encontrado? Até onde é que ele foi um ponto de intersecção fundamental?
A minha vida teria sido diferente. De qualquer maneira, havia sementes em mim... Sempre senti que não pertencia a nenhum local, a nenhuma classe social, a nenhum destino, a nenhum grupo. Mesmo mais tarde, mesmo em Oxford. Assim como sinto que não pertenço bem aqui ainda. Estou fora de grupos ou de regras ou de cliques ou de nações.
Despatriada permanentemente?
Despatriada. Sofri uma mobilidade social ascendente muito rápida. O meu avô era um camponês abastado da região de Tomar. Mas a ascensão por via da minha mãe foi rapidíssima. Entrei de maneira muito fácil na elite mais fechada que havia em Portugal. Nessa altura não sabia, mas devia ter uma percepção inconsciente de que não era bisneta do Duque de Saldanha... Não pertencia totalmente. Embora me desse com eles: almoçava com eles, ia às festas deles, vestia-me como eles, falava como eles. Ainda hoje, se calhar, a entoação da minha voz é um bocado queque. Os meus amigos de infância: não os desprezo necessariamente, mas não sou igual a eles, porque a minha ascendência é diferente. Assim como em Oxford.
Oxford classista?
No meu colégio havia aí uns 60 homens e 4 mulheres. Ser mulher fazia com que fosse um bocadinho diferente. Ser mulher divorciada, então, diferentíssimo.
E com filhos?
Ainda mais diferente. Foi uma separação muito dolorosa, mas a bem. Combinámos que eu ficava 6 meses com os meus filhos e ele ficava outros 6 meses.
E a culpa?
Ah, imensa. O sentimento de culpa é uma das minhas especialidades. Culpabilizo-me pelas coisas mais fáceis. Se não houver água daqui a bocadinho no frigorífico, fico culpabilizada porque já não tem água. É dos poucos traços do catolicismo que me ficaram. E é muito fácil explorar esse sentimento.
É muito pouco condescendente.
Sou. Sou muito exigente em relação aos outros porque sou exigente em relação a mim.
Estávamos a falar de Oxford e de também aí não se sentir integrada. Mas o que é que aconteceu em Oxford?
Tudo. Se Portugal era um país opressivo, monolítico, cinzento, Oxford era o contrário. Embora fosse uma redoma, discutíamos tudo, tinha acesso a todos os livros… Cresci. Há um livro do Graham Greene que se chama: «England Made Me». De certa maneira, «Oxford made me». Aquilo que sou resulta muito do que Oxford fez de mim. No bom e no mau. Enquanto lá estive, estive sempre a criticar Oxford, fazia parte da clique contestatária. Felizmente que o meu reitor era excêntrico. Bêbedo, dava umas festas malucas, as meninas apareciam todas cheias de flores… Nunca fui hippie; as coisas muito dadas aos irracionalismos, orientalismos, haxixe… Nunca fumei um charro. Aqui há 5 anos tentei fumar e percebi que não sou capaz de engolir o fumo. E lá não fumava porque tinha medo. Sou fisicamente medrosa.
Já estava incompatibilizada com a menoridade de Portugal?
Um bocado. Comecei a ver Portugal cada vez mais longe e mais pequenino e mais triste. Acontece que vim fazer o doutoramento no Natal de 73, era para ficar 6 meses e aconteceu a revolução de 74. Isso também mudou tudo. Fez com que me apetecesse ficar.
Teve esperança?
Imensa. Era totalmente imatura do ponto de vista político e acreditei que a revolução ia trazer o paraíso sobre a terra. Comecei a ensinar um mês antes da revolução um curso de Sociologia; mas como o Salazar tinha proibido usar a palavra Sociologia em Portugal…
Porquê?
Achava que era parecida com Socialismo. Não fosse alguém enganar-se.
Não!!!
É verdade. O curso de Sociologia chamava-se Ciências do Trabalho! As primeiras aulas que dei foi Marxismo do princípio ao fim. Depois veio a revolução, a escola entrou em grandes convulsões internas, fui eleita para o Conselho Directivo_ provavelmente para terem uma mulher lá dentro, qualquer coisa assim bizarra. Entrei em grandes conflitos com a estrutura basista da escola. Sempre fui muito meritocrática, relativamente autoritária. Portanto, em Julho já estava totalmente desiludida. E disse: «Nem quero ouvir falar em Universidade em Portugal, é impossível no presente clima ensinar o que quer que seja». No Verão de 75 fui-me embora outra vez para Inglaterra e só vim em 77 quando acabei a tese.
Nunca pensou ficar fora?
Se me tivessem oferecido uma cátedra em Harvard, teria tido uma escolha difícil. Em 76, quando acabei a tese, os meus filhos tinham 13, 12 anos. Teriam que mudar para um sistema escolar diferente…
Estava a pensar até onde é que a culpa a dilacerava ou tomava conta de si.
Muito! Em momentos de grande crise faço diários. No outro dia descobri, para meu grande espanto, que já aos 23, 24 anos tinha imensas insónias e tomava calmantes. Agora tomo Valiums. Os calmantes são para diminuir a ansiedade que está ligada ao complexo de culpa. Não é só de ter ido para Inglaterra, de me ter separado, de os meus filhos ficarem com o meu ex-marido 6 meses, etc. É uma culpa mais profunda.
E o diário era porquê? A necessidade de um interlocutor que não existia de outro modo?
Era a necessidade de desabafar. São sempre diários infelizes. Quem lê os meus diários acha que sou uma desgraçada. Completa e horrorosa. Quando estou feliz não faço diário nenhum.
Vive!
Sim, vivo.
Mas durante esses anos, a sua mãe deixou de ser uma interlocutora? Ela alguma vez foi uma interlocutora?
Desde que me separei percebeu que jamais conseguiria dominar-me. Nunca mais tive intimidade com ela.
Nem agora?
Não. Ela perdeu a memória e sinto uma enorme responsabilidade por tomar conta dela. Na prática. Sei que não me reconhece há 5 anos. Alguns amigos dizem: «Mas o que é que vais lá fazer? Torturar-te?» Vou lá ver que ela está bem. Mas nunca mais tivemos uma conversa íntima desde os meus 25 anos.
E intimidade com os seus filhos?
Ah, isso tenho imensa! Excepto nos amores. Penso que entre os pais e os filhos é melhor não haver trocas de informação sobre esse domínio.
Por uma espécie de pudor?
Em parte por uma espécie de pudor. Em parte porque fui assim criada. Em parte porque posso ser dominadora sem ter consciência disso. Não quero ser assim com eles, quero que eles sigam a vida deles como entenderem.
Como é que definiria a intimidade? O que é ter uma relação de intimidade?
É não precisar de falar e o outro sentir exactamente o que estamos a sentir.
A noção de intimidade tem também que ver com máxima exposição, inclusive no sofrimento? Com um estar com o outro um pouco como se está consigo? Sem reservas.
Tem. Há pessoas a quem posso dizer tudo (não são muitas). Se tiver um desgosto horrível, espero que haja duas ou três pessoas a quem possa telefonar e que venham depressa e que não me perguntem mais nada.
Walter Benjamin dizia, sobre o lugar da arte, que uma criança perdida na floresta não precisa de ver um quadro muito belo. Precisa que a resgatem. O que pergunto é: para que serve ler tantos livros? O que é que a salva nos momentos mais difíceis?
Tenho vivido nos últimos 10 anos, durante a doença da minha mãe, momentos muito, muito dolorosos. Ser capaz de raciocinar, usar a razão para entender o meu coração, pôr alguma ordem nos meus sentimentos, ajuda-me.
É para o domesticar? Para se sentir menos perdida?
É para perceber o que me está a acontecer. As pessoas que percebem o que lhes está a acontecer eventualmente são depois capazes de determinar qual é o rumo melhor. Li um livro do John Updike, cujo pai tinha um tumor na cabeça; saber os passos que deu e como encarou a morte do pai, ajuda-me a pensar que isto não é uma tragédia individual. Dá consolo.
Tem medo que lhe aconteça o mesmo?
Muito medo. Não tenho nenhum medo de morrer. Tenho muito medo de perder a razão.
Porque é que o ensino e a universidade são temas de eleição para si? Ou seja, porque é que a formação e a educação de outro são fundamentais para si?
Porque sou universitária. É a minha formação, é isso que fiz nos últimos 30 anos. Tenho muita pena que a universidade portuguesa seja tão medíocre, que promova as pessoas de uma forma tão burocrática, que seja tão destituída de capacidade de criação. Por outro lado, e relacionando com o que disse há pouco, uma certa lucidez sobre as nossas motivações ajuda a viver melhor. Apesar dos seus limites, a escola pode contribuir para isso, pode ajudar a libertar um jovem das teias sociais.
A sua opção profissional tem que ver com uma reorganização, uma reformulação de carris. E o papel formador e fundador da escola aí é fundamental.
Em 1974 fiz um documentário chamado «Nados e Criados Desiguais», sobre 5 rapazes de 5 meios sociais muito diferenciados que frequentavam as escolas primárias. Para provar que as perspectivas deles eram muito diferentes. A pergunta era: «O que é que vais ser quando fores grande?». Evidentemente os meninos do Liceu Francês queriam ser médicos, e um menino do Alentejo queria, como ele dizia, «amanhar carros», que era ser mecânico. É verdade que os carris deles estavam formados desde a nascença. Mas, em certos casos, um menino do Alentejo podia dizer «Quero ser mecânico» e depois, se tivesse tido possibilidades de prosseguir o estudo, o mundo abria-se-lhe através da escola.
Esta débil mobilidade social é, para si, um dos traços mais irritantes em Portugal. Porque passa por um provincianismo, uma incapacidade de mudar de sítio e operar mudanças significativas na vida.
É uma incapacidade de correr riscos. É um traço mau para a sociedade, mau para a economia, mas que percebo. Os pobres não podem correr riscos. Quem está quase ao nível da subsistência, se correr um risco isso significa a morte. Portugal é um país muito pobre e às vezes esquecemo-nos disso.
Como é que leu esta notícia que diz que 200 mil pessoas passam fome em Portugal?
Não me espantou. Em parte sou de esquerda porque comecei a ir aos pobres com as freiras do meu colégio. Cada um tinha uma família que protegia (fazia parte da caridade cristã), e foi para mim tão chocante...
Como se fossem pobres de estimação?
A ideia é bizarra. Mas era assim. Fiquei tão escandalizada com a pobreza! Já não se vê aquela fome abjecta que vi nos anos 50 em Portugal. As desigualdades diminuíram a nível absoluto, os objectos de consumo estão disseminados, toda a gente tem televisão, frigorífico, etc. Que as pessoas vão todas ao supermercado, comprem brinquedos para os bebés, e televisões e tenham todas telemóveis, para mim não é uma coisa menor. É muitíssimo importante e fico alegre que o meu país seja consumista, se você quiser.
Por esbater essa diferença e esse fosso.
Porque há um nível de miséria absoluta abaixo do qual é abjecto viver-se. Pessoas que vivem no chão, na terra, miúdos não podem brincar porque não têm sapatos… Alguns intelectuais dizem: «Ah, mas só vêem televisão!». Não faz mal!
A pobreza é indigna.
É indigna. E força as pessoas a serem subservientes, fatalistas, a não poderem mudar a vida. O medo é tal... – e eu percebo o medo.
Teve medo de ser pobre? Estou a pensar no processo de ruína do seu pai. É claro que estamos a falar de uma outra escala…
Mas foi muito dramático para a minha família. Passámos de ser relativamente ricos para sermos… A minha mãe começou a trabalhar, por exemplo. Aos 45 anos. Teve coragem, pegou em si, arranjou um emprego. Eu estava fora. Não tinha casa, vivia em casa dos meus sogros, o meu sogro era embaixador em Madrid – está a ver, não era propriamente uma pobre típica. Mas não tínhamos dinheiro nenhum.
E sobretudo dependiam, não é?
É. Os primeiros anos de casamento foram com bastantes dificuldades materiais. Não serve dizer que isto era uma coisa tenebrosa. Não era. Mas não tinha dinheiro para nada.
Até onde é que essa restrição a constrangia?
Sou de uma frugalidade anormal. Sou capaz de viver com uma cadeira – como vivi em Oxford: uma cadeira, uma mesa e uma cama. Desde que tenha livros e televisão, vivo muito bem. E silêncio. Tenho muito poucas ambições materiais.
De que é que precisa absolutamente para viver? De pessoas, viagens?
Gostava muito de viajar até há 10 anos. Mas com a idade, estou muito sedentária. As últimas viagens têm sido para congressos, coisa que detesto. Os académicos viajam para se glorificarem e eventualmente dormirem os homens com senhoras fora do casamento e as senhoras com homens fora do casamento… coisa que também não me interessa particularmente. É uma fuga ao quotidiano de que não preciso. Tenho a sorte e o privilégio de gostar da minha rotina. Há sítios onde me apetecia ainda ir antes de morrer. Mas estou muito preguiçosa. Fazem-me falta amigos com quem conversar. Há alguns amigos que perdi, aos 60 anos já se tem amigos que morreram.
E as suas netas? Em público, parece bastante invulnerável, mas em privado tem com certeza algumas fragilidades. O que é que a pode tomar de um modo avassalador?
- Nunca pensei ter netas. Não gosto particularmente de bebés e achava que a Sofia [Pinto Coelho] não tinha idade para ter filhos (ela tinha 30 anos, eu tinha tido os meus filhos aos 20, de maneira que tinha muita moral para falar…) Quando nasceu a Rita, que é a mais velha, fiquei fascinada. Não sou nada a avó tradicional. Não vou buscá-las à escola, levá-las ao ballet. Ajudo no que posso, mas não mudo a minha vida para ficar com elas à noite. Gosto de brincar com elas, deixo-as fazerem o que querem, até porque em casa delas há regras como se fosse um quartel.
Acha bem?
Acho muito bem. Gosto imenso de estar com elas porque têm uma candura no olhar e uma capacidade de divertimento que às vezes me faz falta. Quando vou ver a minha mãe, muitas vezes vou buscá-las a seguir. A Rita no outro dia disse: «A avó é stressada, muito clássica (não sei o que é que quer dizer) e esperta».
Bateu nos pontos certos.
Achei uma coisa cómica! A mais nova diz que é especialista em arte egípcia. Detestam ir a museus. No outro dia disse-lhes para irmos ao Museu do Chiado e elas: «Não!!! Nós queremos ser analfabéticas!» E disseram mal de propósito, que sabiam muito bem que se diz «analfabetas».
O exercício da crítica e a mordacidade são coisas que não conseguimos dissociar da sua imagem pública. Vê nisso uma espécie de obrigação moral, uma expressão do seu amor pelo país? Aprecia as disputas por se saber invulnerável no espaço público?
Não é uma coisa que me tenha sido dada. Lutei muito para poder ser independente. Digo o que penso. Não tenho medo. Estou à beira da reforma, de qualquer maneira.
E dúvidas?
Se tenho dúvidas? Tenho mil!
Acerca do que pensa? Ou é sempre tão categórica?
Quando sai cá para fora é porque já passou pela fase da dúvida, não é? Tenho imensas dúvidas. Sobre se me devo reformar, se devo fazer assim, o que é que vou escrever, se serei capaz de escrever um livro bom, se devo dedicar mais tempo às minhas netas… Tenho, tenho dúvidas, como toda a gente.
Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2004