Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

Maria João

03.04.14

Em doze dias foram gravadas vinte canções. Canções como o Black Bird dos Beatles, depurado a traço infantil pela voz de Maria João; canções como O Quereres de Caetano Veloso, rasgado num rap muitíssimo urbano e poderoso; canções como Love is the Seventh Wave, de Sting, reinventada para o calor de uma noite de Verão; há até canções como Corazon Partio, despido da latinidade de Alexandro Sanzs. E há canções dos muito amados Prince e Tom Waits.

Undercovers é uma página inesperada na carreira de Maria João e Mário Laginha. É o disco das canções que eles amam e ouvem no carro, cantando por cima, a plenos pulmões, ou em casa, escolhas eternas. Fizeram uma audição exaustiva das canções das suas vidas, ficaram com estas, recriaram-nas em menos de duas semanas.

Maria João tem 46 anos. Quando tinha vinte anos pensava que ia ser para a vida toda professora de aikido, arte marcial que continua a praticar. Interessou-se desinteressadamente pelo canto quando percebeu que os seus pulmões lhe permitiam coisas extraordinárias; pelos anos fora, foi descobrindo as potencialidades infinitas do seu aparelho. Tem uma carreira internacional reputada (na Alemanha, por exemplo, é uma diva). O seu projecto musical mais sólido é o duo com o pianista Mário Laginha. 

É uma força da natureza.

 

 

Este disco é inusitado no seu percurso. Porque é que decidiu fazê-lo?

O Mário [Laginha] e eu temos um amigo, o Nuno Artur Silva, que há muito tempo nos andava a pedir, «Façam um disco de covers». Ele é o principal causador deste disco. Existe, aliás, uma polaróide de 95, tirada pelo Nuno Artur, onde aparecemos o Mário, a Ana Luísa Guimarães, e eu, e em baixo lê-se: «Dia da decisão irrevogável de fazer um disco de standards»! Há uns meses, decidimo-nos! Um dia, um dia e uma noite, sentámo-nos em casa do Nuno Artur, e ouvimos música até não poder mais!

 

A polaróide falava de standards, que foi aquilo que começou por cantar quando era ainda, no sentido estrito, uma cantora de jazz. E agora, arredou-os completamente deste disco.

Seria o esperado. Mas há tanta, tanta gente a fazer isso... A [Diana] Krall, a Dianne Reeves, a Dee Dee Bridgewater. E não me ocorre acrescentar mais nada àqueles temas, que estão sempre, um ou outro, nos discos de toda a gente.

 

O percurso dos últimos seis anos, vocacionado para a world music, tem sido intenso, com a edição de um disco por ano, e com um sentido musical continuado. O que quer dizer na vossa carreira este disco, que rompe absolutamente com o que têm feito?

Vírgula. Vejo-o como uma vírgula. Mas, sendo um disco de covers, tem a nossa impressão digital, o discurso é nosso. Como se continua?, isso não faço ideia.

 

A partir dos seus discos, imaginei que ouvisse coisas mais jazzísticas, os virtuosos. Este disco, ao contrário, revela que ouve mainstream, pop de todos os dias.

Aqueles cantores são alguns dos cantores que ouço, e são absolutamente virtuosos! Prince, é maravilhoso ouvi-lo, é maravilhoso ouvir alguém que canta muito, muito bem. O Tom Waits... Para mim, o Tom Waits é o mundo inteiro. Ouço-o naquela forma de cantar...; pensa-se que se fartou de beber bagaço, de fumar cigarros, e depois encontra-se um lirismo, uma inocência naquela voz roufenha... 

 

Conhece o Tom Waits?

Não. Amava conhecer o Tom Waits!

 

Gostava que ele ouvisse as suas versões?

Gostava. Não faço ideia o que pensaria...

 

Neste disco há também uma versão para um original vosso, Charles on a sunday with sunday clothes, do álbum Cor (98), que a Bjork integrou no seu repertório de concertos. O que sentiu quando soube que a Bjork cantava uma canção sua?

Uauuuuu! Nós temos uma aproximação. O assunto surgiu recorrentemente durante a gravação, «Pá, tu fazes isso, mas isso faz lembrar a Bjork». Eu estou-me nas tintas que faça lembrar a Bjork!, sempre fiz isto, tenho esta forma. Não vou deixar de fazer coisas só porque se parecem com a Bjork. A Bjork tem também coisas parecidas comigo. Não é vaidade, é uma evidência. Mas como ela é muito mais conhecida, torna-me a mim parecida com ela, e não o oposto. Isto é estúpido, e injusto.

 

Além do seu aparelho vocal, há duas coisas que a singularizam: um lado niger, uma africanidade que acentua, como quem tem um orgulho de raça...

Sim, sim.

 

E um outro lado, o da inocência que se deslumbra com brinquedos. Neste disco, as potencialidades do aparelho são menos exibidas; mas o seu modo de cantar é reconhecível nestas características.

O Mário Barreiros dizia que me aproximava do modo de cada uma das pessoas interpretadas. Mas depois, estava também o meu modo, que passa por isso que disse. São fios condutores, sim.

 

Como é que despiram as canções e depois as vestiram à vossa maneira?

O Mário Laginha fez o trabalho mais difícil. Os arranjos são dos dois; falámos disso nos aviões, nos carros, nas carrinhas das tournées, «Olha, aqui imaginava não sei o quê». Nos arranjos, tudo o que é mais sério e profundo, como os arranjos de cordas, são do Mário; as coisas mais bem dispostas, são minhas. O Mário Barreiros é um músico fabuloso, há anos que pensávamos fazer qualquer coisa com ele; para este disco, precisávamos de alguém que tivesse um pé na pop e um pé no jazz. Constamos os três como produtores.

 

O disco vai ser distribuído pela Verve? O selo Verve implica uma direcção incisiva sobre o vosso trabalho?

Às duas por três, já não sei se é uma grande coisa ser distribuído pela Verve... A Verve é mais direccionada para o jazz, para os americanos. Nós estamos naquele meio, de que gosto muito, mas que nos torna inqualificáveis. Para um festival de jazz, somos muito world music, para um festival de world music, somos muito jazz. Com alguns promotores, mais quadrados, torna-se difícil; já ouvi um promotor dizer: «Ao meu festival, só vêm americanos, e pretos!» É a coisa mais racista e estúpida que já ouvi.

 

Têm esperança de vender particularmente bem no mercado americano? A Cassandra Wilson acaba de lançar um disco de versões, também. Sendo que o disco dela é mais voltado para os standards, e o vosso, quanto a mim, é melhor. 

Obrigada. Mas a Cassandra é americana, e é negra. Mesmo que faça outras coisas, é catalogada desde logo como americana e negra. E nós..., nós não! Mas eu não me posso queixar, a sério, tenho tanta sorte... Para já, com o instrumento que tenho, depois com os músicos com quem tenho tocado.

 

Este disco aparece um ano depois de a Maria João e o Mário terem deixado de ser um casal. O disco é, simultaneamente, um corte criativo com um período em que o pessoal se misturava com o profissional?

Não o vejo assim.

 

Conseguem manter a afinidade criativa, a despeito do afastamento? Em palco, são muito cúmplices. 

Ao princípio, depois de nos termos separado, foi muito difícil. Uma pessoa habitua-se a ter coisas do outro que depois supostamente não teria... Mas durante os concertos, as coisas que estavam, continuam a estar. Isto é, gostamos imenso um do outro, temos imensa admiração um pelo outro, musicalmente cuidamos muito um do outro. É isso que continua a existir. Também continuamos a dar-nos mal um com o outro!, o que sempre existiu... O palco é como um psiquiatra: sabe quando diz uma coisa à frente de terceiros que não faria nem diria se estivesse a sós com a outra pessoa? Faz sentido?

 

Este desligamento deixa-vos mais livres para outros projectos? Vem agora de cantar, mais uma vez, com o Josef Zawinul dos Weather Report.

O Mário tem também necessidade de fazer coisas com outras pessoas, de ser igualmente reconhecido. Este duo não é o duo da Maria João, é o duo da Maria João e do Mário Laginha. Mas em muitos lugares, sobretudo fora de Portugal, estava anunciada a Maria João, a coisa da cantora. Eu não tinha culpa, mas a verdade é que era muito assim, e esta diferença era muito desconfortável para nós. Agora, faz parte do nosso contrato: aparece o meu nome, e o do Mário tem de aparecer em caracteres iguais. Percebo isto nele, e percebo a sua necessidade de fazer coisas musicalmente diferentes, com outras pessoas. Eu também tenho essa necessidade. Com o Zawinul, sou completamente convidada, special guest, featuring.

 

É uma convidada regular. Há alguns anos que colaboram.

Basicamente, sempre que há dinheiro, convida-me. No outro dia fez-me uma coisa muito calorosa: «E agora, a Maria João,  fantastic singer!, a nossa convidada mais amada e aquela que há-de sempre vir». Oh, babei-me!, fiquei logo com os olhos cheios de lágrimas, borrei a pintura toda.

 

E agora, a roupa! É muito vaidosa?

Sou, pois!

 

Esse lado coquette é exacerbado quando está em cima do palco?

O palco é o meu sítio de eleição, onde me acho mais bonita, mais feia, mais elegante, mais deselegante, mais rouca, mais límpida. Procuro vestir-me o melhor possível. Conforme o dinheiro que tenho, vou comprando. O ano passado fartei-me de trabalhar, ganhei muito dinheiro, e gastei-o todinho, é certinho. Este ano é um ano mais vazio, por causa da crise mundial. Gastei em quê? Roupas, coisas... No outro dia, dizia ao Zawinul: «Então, com isto tudo, tu és rico?», e ele: «Eu não sou rico, mas tenho tudo o que quero, vivo bem». Esta ideia é bestial. Tenho tido qualidade de vida. Apetece-me vestir aquela roupa, compro. O João, o meu filhote, precisa daquilo, compro.

 

O que é que gosta mais? Sentir o conforto da peça? Sentir que a peça é rara e lhe pertence?

Adoro essa ideia. Não me lembro nunca de ter cantado com roupa emprestada. Nem pensar! Tenho de sentir que aquilo é meu, meu!, e que é a minha cara. Tive a ajuda, primeiro dos Manéis [Manuel Alves/José Manuel Gonçalves]; foram óptimos, fizeram coisas para mim, para mim. Agora, com o José António Tenente, a mesma coisa. Sempre que tenho dinheiro, vou lá.

 

E antes dos Manéis?

Tinha a Dona Leontina, a costureira do bairro onde morava: tinha umas ideias, e ia lá. Nessa altura vestia-me mesmo mal, não tinha dinheiro e não tinha orientação.

 

Só lhe conheço peças raras; nunca lhe vi uma t-shirt da Zara, por exemplo. É, justamente, por serem raras que gosta tanto delas?, porque a fazem sentir única?

Exactamente. Gosto muito dessa sensação, é boa. Adoro Issaye Miyake; há peças dele que são investíveis, porque são feitas para gente magrinha, sem peito. Bom, eu não sou magrinha e tenho peito... Mas há coisas que comprei como quem compra um quadro: achei-as uma obra de arte. Não visto, mas não me separo delas!, e não me imagino a não as ter. Percebe isto?  

 

 

Publicado originalmente na Revista Elle 2003