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Anabela Mota Ribeiro

Maria João Avillez

13.11.14

«Já reparou como as mulheres conversam bem?», disse ela? Nós conversámos sobre cutelaria comprada em Portobello, histórias da cena política e dos seus personagens, uma insegurança nunca questionada, uma viagem ao Brasil. Falámos de um turismo de habitação chamado «Na Curva do Rio», e ela, a esse propósito, disse gostar do Naipaul e do livro com este título. A fluidez entre um registo e outro é facilíssima. Finda a entrevista, continuámos a entretecer todas as linhas que trazíamos. Pintámos uma manta (para usar uma má expressão) que só duas mulheres poderiam pintar.

Maria João Avillez é a jornalista que há quarenta anos entrevista políticos em Portugal. Ela acrescenta que é, também, aquela que faz diálogos com o mundo da cultura. Tem uma genealogia por demais conhecida: casada com Francisco van Zeller, irmã de Maria José Nogueira Pinto e de Sum Sum Avillez. Nasceu numa família tradicional, cresceu numa casa que continua a ser sua. Mas essa proveniência, sente que lhe é cobrada ainda hoje. Tem quatro filhos. Falámos na sala, sentadas num mesmo sofá, com Noronha da Costa de um lado (muito antigo, comprado na Buchholz por meia dúzia de contos), e uma “árvore”, escultura de Cristina Ataíde do outro. Daí a dias terminaria um ciclo da sua vida, ligado ao grupo de Balsemão – já deixou o Expresso, e abandona a Sic no fim do ano. Mas em nenhum momento essa noção de fim de caminho nos acompanhou. Para falar a verdade, quase nos esquecemos, ambas, de o mencionar. Entusiasmámo-nos muito mais a falar de Companhia das Índias!

 

Começo pelo mesmo ponto de partida que usei para entrevistar a sua irmã: Fé, Esperança e Caridade. São também vectores essenciais da sua vida?

Para a católica que tento ser – todos os dias a cair, todos os dias a levantar-me – as três virtudes teologais são um instrumento e um amparo. Não será a Esperança a melhor resposta ao cepticismo? Não será a Fé um bom " recado" para a incerteza? E não será a Caridade o melhor desafio para o individualismo?

 

Ainda que os vossos percursos tenham sido muito diferentes, o rio de onde partiram foi o mesmo.

O rio chama-se Campo Grande. É uma sorte, um privilégio [viver na casa onde nasci]. E um certo peso. Há aqui uma matriz pela qual sou simultaneamente responsável, porque me foi dada, que gostaria de prolongar, através da minha vida, e de legar aos meus filhos e netos.

 

O que se percebe na sua casa é que ela está cheia de história. As fotografias são evocativas...

É a nossa história. A fotografia, os objectos que nos dão e que a gente compra.

 

As fotografias dizem quase todas respeito a uniões e a nascimentos – e são as chegadas que reconfiguram as famílias. E fotografias de viagens. Na outra parede, há a história de uma profissional.

A vida faz-se de uma partilha entre as pessoas que aqui vivem. Tenho um filho que é arquitecto em Barcelona, tenho outro filho já casado, tenho outra filha longe daqui. Se geograficamente estamos separados, sentimentalmente, o coração bate junto. Eu só sou explicável pelo meu ponto de partida. Não sou um ser que caiu de pára-quedas no jornalismo, na vida social, nos meus amigos.

 

Não cai de pára-quedas; mas o jornalismo, para uma menina de sociedade, era uma coisa um pouco extravagante, ou não?

Um pouco. O meu começou em jornaizinhos escolares, depois em jornais católicos. Foi tendo um enquadramento que não estava dissonante com a menina de família. Quando se tratou de fazer uma coisa mais séria, percebi muito cedo o que queria.

 

Foi fácil impô-lo?

Impôs-se naturalmente. Sou comunicativa. Gosto de chegar ao outro através da comunicação do que o outro tem para me dizer e do que eu tenho para lhe dizer. Isso fez de mim aquilo que sou há quarenta anos.

 

Conte-me de quando aprendeu a ler. Não sei se tudo não radica aí, nesse gosto pelas palavras.

Gostei imenso de aprender a ler. Aprendi muito depressa. A Sophia de Mello Breyner era prima direita da minha mãe; quando veio do Porto para Lisboa, veio para esta casa do Campo Grande. Quando a minha mãe nos teve às três, lembro-me de nos dar poemas da Sophia para ler, alguns escritos no jardim desta casa. Em casa dos meus pais há livros. Era uma casa aberta, por onde circulavam pessoas interessantes, com quem eles se davam. Não havia o jantar na copa: sempre jantámos à mesa com os nossos pais, a ouvir o que eles diziam, meninas pequeninas.

 

Nunca quis ser romancista?

Não. Mas escrevia, escrevia contos. Ainda no outro dia a arrumar papéis... Vivo a arrumar papéis, gosto de arrumar gavetas...

 

Gosta?

Imenso. Sou do papel. Preciso de ter o papel na mão, de sublinhar, cortar, riscar, anotar. Eu leio um livro com um lápis na mão. Gosto da ordem, mas da revisita, também. Gosto imenso de voltar a ver uma coisa de que gostei, ou não gostei, que me chocou ou deslumbrou. Tenho uma retaguarda disciplinada: se me pedirem um retrato de 1992, ou 87, ou 50, posso ir buscá-lo.

 

Guarda os artigos todos?

Tudo, tudo, tudo. As perguntas das minhas entrevistas na Sic, estão todas no computador e no papel, imagine.

 

Escreve ainda as perguntas ou tem só ideias nucleares?

Não, escrevo tudo. Uma vez o Miguel Sousa Tavares ironizou comigo no ar: “Ai, tantos papéis, tantas fichas”. Gosto muito mais desse lado assumido do que da pretensão de ter tudo na cabeça e depois vem tudo pelo auricular. Uma jornalista tem ali os seus instrumentos de trabalho e assume-os.

 

Estávamos no romance. Então escreve contos?

Não. De vez em quando escrevinho. Tenho textos sobre algumas coisas, mas prefiro a natureza humana à ficção. Por isso é que entrevisto. Gosto da ideia de uma pessoa diante de mim. As pessoas proporcionam deambulações sem fim. [São] como um rio, que ora vai devagarinho, ora vai depressa, ora desagua num lago aprazível.

 

Aprende muito com as entrevistas que faz?

Não faço senão aprender. Também porque parto de uma disponibilidade total. Estou ali para o que der e vier. Evidentemente que se se trata de uma entrevista política tenho que estar atenta à tipologia e à profissão da pessoa que tenho que entrevistar. Não entrevisto um político da mesma maneira que um artista ou um desportista.

 

Coincidem pessoas da esfera pessoal e profissional? Quem são os seus amigos mais antigos?

Os meus amigos são os mais antigos. São os que fizeram uma vida comigo. Uma vida, já viu? Partilhar 60 anos de vida, 50, 55, com algumas pessoas, talvez não haja nada melhor.

 

As pessoas com quem se dá são pessoas de poder?

Não necessariamente. Podem ter passado, episodicamente, pelo poder. Devo dizer que herdei alguns amigos pós-25 de Abril; comecei por ter uma relação jornalística, procurar a pessoa que estava na política, e ao longo dos anos herdar a pessoa que vivia dentro desse político.

 

Considera-se uma mulher de poder?

O que é que isso quer dizer?

 

Quero perguntar-lhe a si qual é a definição de poder. Pode ser poder económico, influência, poder político, poder social.

O único poder que gostava de ter e não sei se tenho, porque o país é invejoso e ressentido, é o de dizer: “Estou aqui a trabalhar a sério, por uma questão de rigor, integridade e decência”. Pela saúde dos meus quatro filhos, é o único poder que me interessa. Se há duas ou três pessoas em Portugal que perceberam isso, já fico contente.

 

No fundo, é o respeito. A credibilidade.

Ser credível. Saber: se ela escreve isto ou se ela diz isto, é porque é assim. Não foi manipulada, não está a querer manipular, não está a vender gato por lebre. O Dr. Cunhal percebeu isso, foi a primeira pessoa que me fez um grande elogio em Portugal.

 

Antes de falar desses homens, queria dizer que li na wikipédia a seguinte nota a seu respeito: “Maria João Avillez, Lisboa, 1945, jornalista, autora de biografias de Mário Soares, Cunhal e Sá-Carneiro. Faz parte dos quadros do Expresso e colabora com a Sic”.

Já está desactualizado, já não estou no Expresso.

 

Nestas linhas está o essencial daquilo por que ficará conhecida, fora do círculo familiar. A convivência com o poder e com homens do poder, o facto de ser uma jornalista que os interpela, é o que mais distingue o seu percurso.

O Cunhal esteve sempre na oposição. O Sá-Carneiro entrou e saiu do poder não sei quantas vezes, o Mário Soares, meu Deus, esteve tanto no poder como na oposição. Largue a palavra poder!

 

Eu não me referia ao exercício do poder. Estava a pensar noutras formar de poder.

Foram igualmente influentes no poder e na oposição – estou de acordo consigo. Fiz jornalismo político, essencialmente, durante muitos anos. Mas fiz também diálogos muito profundos, intensos, bonitos, eu diria, imodestamente, com o mundo da cultura. Aí era outra música, eram sonatas de Schubert. Tenho pena que nunca venha tanto ao de cima como a política. Não quer dizer que seja uma pessoa culta, não sou. Sou é muito atenta e interpelada por todo o mundo da cultura. A política, pelas condições do país, é que me fez fazer jornalismo político.

 

Começamos por Cunhal? Conte-me do vosso primeiro encontro. O seu mundo de origem era conservador e salazarista. Aquele homem representava a antítese disto mesmo.

Mas eu já tinha conhecido muita gente de vários meios. Tinha 28 anos no 25 de Abril. O que me fascinava no Cunhal era a impenetrabilidade e o nunca se conseguir absolutamente nada! Eu, aliás, não consegui muito mais do que os outros. Fazia de conta que conseguia.

 

Fazia de conta?

Fazia de conta perante mim própria. Ao longo dos anos, fui conseguindo tecer uma relação, não diria mais íntima, que seria abusivo e insensato, mas talvez um pouco mais próxima. Ia muitas vezes falar com ele “off the record”. Escorreram algumas coisas no livro que publiquei sobre o Dr. Cunhal.

 

Essas visitas “off the record”: ia falar com ele, ouvi-lo, aprender com ele, recolher informações.

Não ia aprender. No fundo, eram trocas de informações. O pretexto era sempre a política. Era ele a dizer mal dos governos, fossem eles do PSD ou do PS. E depois nascia um diálogo que extravasava para fora do perímetro político. Numa das alturas estava o Herman a começar um dos seus geniais programas na televisão. Gostava de dizer que o país deve imenso ao Herman, riu imenso com ele; gostava de dar-lhe um abraço de gratidão.

 

O Dr. Cunhal ria com o Herman?

Via o Herman José e ria tanto quanto eu, comentava os últimos sketches. Depois, falávamos de pintores se eu tinha ido a uma exposição. Sei que é pretensioso dizer, mas talvez seja verdade: era um pouco como se abrisse uma janela e entrasse ar. E o ar era eu, que chegava ali e contava: “Ontem estive com o Jorge Martins ou com o Júlio Pomar, ou a Menez”. Muito interessante.

 

Ele?

A memória que guardo disto.

 

De entre estes políticos, a relação com Mário Soares foi a mais profícua. Mesmo que politicamente não se situem...

Nada. No Mário Soares o que me tocou foi a relação vital que ele tem com a vida. Aliás, é parecida com a minha. Gosta muito da vida e tem o mesmo prazer a descobrir um país que tem a comer um bom bacalhau no Pap’Açorda.

 

A Maria João também pode comer numa tasca em Freixo de Espada À Cinta?

Ou no melhor restaurante de Londres. O Dr. Mário Soares partiu de duas ou três ideias muito simples, cumpriu-as e resolveu-as. A liberdade, a democracia, a Europa, um Estado de Direito, partidos, uma sociedade civil unida. Reconciliou a sociedade portuguesa, radicalizada, com rancores, quando foi primeiro-ministro em Julho de 76. Também lhe estou grata por isso.

 

Disse há pouco que o país é ingrato…

Convivo muito mal com a ingratidão. Sou uma pessoa grata a Deus, aos meus pais, às pessoas que me empregaram, à vida. Acho nojento ser-se ingrato.

 

Mas este é um traço tão dominante nos portugueses quanto a inveja.

Ah, mas então sou pouco portuguesa. Como sou nos hábitos de trabalho, na disciplina; odeio a meia-coisa, o tanto faz, o logo se vê. Acha-se normal não responder a uma chamada ou a uma carta! Não gosto de desmazelos, o pior defeito dos portugueses é o desmazelo. Por tudo isto, há uma certa solidão no meu trabalho.

 

Já voltamos a Mário Soares. A propósito dessa solidão, a maior parte dos jornalistas não é uma menina bem-nascida...

Mas o que é que interessa isso do bem-nascido? Hei-de estar até aos cem anos a ouvir dizer...

 

Não é uma acusação. O que quero perguntar é se, ao longo da vida, isso a perseguiu.

Senti que me era cobrado. Sempre. Nunca agiria assim. O que interessa é o que uma pessoa é, faz, ou é capaz de fazer, e não o “background” ou a moldura.

 

Ofende-a se as pessoas dizem: “A Maria João Avillez é uma tia que é jornalista”?

Acho imbecil!, que é pior do que ofender. Ainda? O que é preciso fazer mais? Atravessar a ponte sobre o Tejo a fazer o pino? Para mostrar que se trabalha.

 

É insegura?

Sou um bocadinho insegura. Tenho que saber se correu bem.

 

A quem é que telefona imediatamente? Por exemplo, a entrevista ao professor Cavaco: a quem é que telefonou depois do programa?

Não telefonei, telefonaram-me. Se tenho um texto que me causa mais apreensão dou a ler a um ou dois amigos antes. Ainda faço isso.

 

No regresso a casa, depois da emissão de um programa, não telefona para o marido ou para um dos filhos a perguntar se correu bem?

Os filhos, santos de casa não fazem milagres: não vêem a maior parte dos programas. Para eles, é como o pai estar a trabalhar não sei onde. Podem ver quando há uma pessoa que lhes interesse, mas não é pela mãe, é pelo convidado. Ao meu marido é que pergunto muito e que me diz muito. Presto muita atenção ao que ele diz: é de muito bom conselho, tem uma severidade doce.

 

Deixe-me insistir: foi mais cobrado o facto de ser mulher, o ser bonita, ou o meio social?

O meio social. Há quinze dias um jornalista perguntou-me se eu era “queque”. O meu meio social, a casa onde nasci e os meus pais, estão em tudo nas antípodas da palavra “queque”. Se ainda há estas confusões ao fim de quarenta anos de bons e leais serviços no jornalismo, caramba!

 

O jornalismo era uma forma de rebeldia e de assunção da sua personalidade em relação aos seus pais?

Não precisávamos de ser rebeldes porque não éramos nem manietadas, nem formatadas, nem preconceituosamente formatas. Nunca senti que precisasse de ser rebelde em relação ao meu meio social. O que percebi foi que, apesar desse meio, tinha que tentar ser o melhor possível na minha profissão.

 

As discussões acesas que, consta, tinha com os seus pais, foram determinantes na definição da sua identidade?

Não. O que retenho como mais essencial foi o clima de inteligência e de abertura. Foi uma espécie de imagem de marca da casa que nos fez voar. É o que mais lhes agradeço, aos meus pais.

 

Mas nessas discussões, também exercitava o verbo, o poder de argumentação.

Absolutamente. Sou impaciente e irritava-me na altura, mas depois passava-me, porque o que era residual, o importante, era mais um passo andado na caminhada. E não a amargura dessa de confronto.

 

Mas então, era preciso ter a certeza de um amor e de uma rede onde pudessem caber todas as discussões…

Mas a rede era de aço. Ainda é. Os meus filhos quando estão aqui a almoçar comigo são capazes de me deixar à mesa sem eu ainda ter acabado de almoçar para não perderem o café nos avós. A casa dos avós é sagrada porque se discute integralmente tudo.

 

Quando era mais pequena, e quando começou no jornalismo, alguma vez confundiu a admiração com o afecto? Sentir que era estimada porque se comportava de determinada maneira, porque cumpria profissionalmente. Sentiu um amor que existia independentemente do comportamento?

Pela parte dos meus pais? Sim, completamente. O orgulho que poderia haver quando começámos a voar menos mal era qualquer coisa que vinha em cima do amor.

 

Isso é uma bênção, porque muitas vezes estão fundidos.

É de tal maneira assim que nunca me ocorreu [questionar isso]. É a primeira vez que penso nisso.

 

Onde é que radica a sua insegurança? Por que é que apesar das provas que deu e dessa rede de aço, ainda fica...

Hesitante? Não tenho nada a certeza, quando acabo uma coisa, de ter sido bom. Mesmo que tenha sido. Pergunto logo à minha produtora e à minha realizadora. Apesar de ir muito preparada, há uma parte imponderável. Não sei onde radica a minha insegurança. Terei que saber?

 

Não, mas pensei que pudesse ter-se perguntado e tentado resolver isso.

Já me habitei a ela, vivo há tantos anos com ela. Se perguntar às minhas irmãs, elas dizem-lhe que há um lado inseguro em mim. Não podem deixar de dizer. Sou a mais velha. Depois é a Sum Sum, depois é a Zezinha. Talvez porque estou exposta [seja a mais insegura]. É como você dizer o “louro castanho” ou “sardas”: fazem parte de mim. Pode ser-se inseguro como se pode fumar ou ter jeito para cantar.

 

É como que um traço constitutivo.

Exactamente. As pessoas mais depressa são levadas a achar que sou segura do que insegura. Mas a aparência de excesso de segurança, o “aqui estou eu”, provém, justamente, da insegurança.

 

Por isso prepara-se tão exaustivamente? Mesmo que não corra bem, fica com a consciência de ter feito o trabalho de casa.

Sim, sim. Também o faço por escrúpulo profissional. É por ofício, gosto mais de dizer assim.

 

Estava nervosa e insegura quando entrevistou o professor Cavaco Silva?

Era uma ocasião especial, porque era a primeira entrevista como Presidente da República. Aí, preparei-me.

 

Senti, justamente, um excesso de preparação! Parecia haver uma ansiedade na sua voz...

Não me diga! Parecia? A entrevista começou muito mal, os primeiros cinco minutos foram muito maçadores e depois levantou voo muito bem. O professor Cavaco tinha duas ou três mensagens, muito preparadas, que queria deixar de uma forma muito clara, incisiva. Eu gostaria de um pouco mais. Daí talvez a ansiedade de querer fazer mais perguntas.

 

Sentiu-se muito gratificada e reconhecida por ele lhe ter dado a entrevista a si?

Senti. Há uma parte de reconhecimento da pessoa, um mínimo de amizade, mas aquilo foi à jornalista, foi um reconhecimento profissional que agradeço. Da mesma forma, o Dr. Mário Soares podia ter feito aqueles três livros com uma jornalista de esquerda, mais próxima dele, e fez comigo. A gratidão é incomensurável até ao fim dos meus dias.

 

Com Mário Soares aprendeu muito? Foi uma relação mais forte?

Estivemos em viagens, em férias, na casa dele, em minha casa, no trabalho, em São Bento, em Belém, no partido: enriqueceu-me muito. Ver viver, actuar, existir o Dr. Mário Soares é gratificante. Mesmo discordando – ainda agora discordei da candidatura à Presidência. Ele tem aquela relação com a vida porque está bem na sua pele. Isso não tem preço e o dinheiro não dá. Sabe como é que me defino? Tenho tudo o que o dinheiro não dá. A energia, a curiosidade, o gosto pela vida, a capacidade de trabalho – o dinheiro não me dá, não compra.

 

O dinheiro nunca ocupou um lugar muito importante na sua vida?

Não. Os tais imbecis, invejosos, dirão que é porque o tenho. Vivo igualmente feliz com pouco e com muito, já tive mais e já tive menos.

 

Estávamos a falar da sua mala: é da Zara e parecida com a Birkin da Hermès. Porque é que compra uma da Zara e não compra uma da Hermès?

Porque gosto mais de, com o dinheiro com que compraria uma Hermès, ir aos leilões. Sou muito fã da Zara. O dinheiro que posso gastar em pequenos luxos é nos leilões, nos quadros e nas galerias de pintura.

 

Que tipo de peças procura nos leilões?

Vou com uma disponibilidade total. É a peça piscar-me o olho. Tanto pode ser uma porcelana, como um desenho, um móvel. A última extravagância foi comprar pratos para dez pessoas, que é o que a minha mesa leva, de Companhia das Índias, propositadamente desirmanado. Só me faltam dois pratos de doce. Fui fazendo ao longo do tempo.

 

Persegue isso como quem faz um puzzle, com o propósito de se entreter?

Sim, sim. Começo o ano de 2007 à procura de dois pratos de doce Companhia das Índias!

 

“God is in details”. Nessa procura (pela Companhia das Índias desirmanada) o que se revela de si?

É o gosto de ir comprando, de não comprar tudo de uma vez. A surpresa: o que é que o próximo leilão traz? O ser capaz. Ganhei, fui capaz. Consegui licitar, consegui descobrir. Conseguir é um verbo que declino muito. Tenho que conseguir esta entrevista, tenho que conseguir escrever isto bem.

 

Fica furiosa se lhe recusam uma entrevista?

Fico. Mas não me aconteceu muito. Nestes cinco anos na Sic aconteceu talvez três vezes.

 

Convida indistintamente? Pensa: “Aquela pessoa não tem uma boa relação com o meu marido ou com a minha irmã”?

Por amor de Deus!

 

Estou a tentar perceber se estes termos são equacionados.

Nunca equacionei. As duas únicas coisas que me fazem convidar são haver uma relação com a actualidade e, sobretudo, ser uma pessoa que valha a pena. Não tem a ver com o ser socialmente não sei quê. E depois, se possível, relacionar isso com a actualidade. Por exemplo, para a semana é Natal [entrevista realizada a 14 Dez], quem é que tenho que me fale bem do mistério de Natal, que seja um bom conversador, que traga qualquer coisa e que deixe aqui um rasto?

 

O José Tolentino Mendonça.

Pronto, é ele. Não sabia? É verdade.

 

O país é muito pequeno e as pessoas conhecem-se todas, e por isso é muito fácil que se cruzem, que as histórias, as zangas, as amizades, que tudo isto...

Interligue demais. É uma espécie de Lisboa em camisa, toda a gente é íntima de toda a gente, toda a gente é primo de toda a gente. Faz-me muita impressão, acho nocivo, mas, “hélàs”, o que é que posso fazer?

 

O outro político, cuja biografia escreveu, é Sá Carneiro. Não é segredo que a Maria João politicamente se situa na social-democracia.

Com certeza. E que voto no PSD. Quase sempre, nem sempre.

 

Sente que esta relação foi privilegiada pelo facto de partilharem os mesmos ideais políticos?

Não. Conheci o Sá Carneiro tarde, infelizmente. Mas entre 78 e 80 tentei recuperar o tempo perdido. Ele achava-me, parecia-me, uma inconsciente, porque eu ainda falava muito da revolução, ainda estava agarrada a certos arquétipos. Era um homem íntegro e decente, com uma grande energia. Não tinha ilusões nem sobre Portugal, nem sobre nós; mas, ao mesmo tempo, acreditava que talvez fosse possível fazer qualquer coisa.

 

O que é que mais admirava nele?

Conhecia muito bem a natureza humana. Tinha a capacidade de antever as coisas. Teve muitas vezes razão antes de tempo. Era de uma enorme coragem, determinação, rigor intelectual. Não havia ali nenhuma espécie de batota, nem o mais pequeno vislumbre de hipocrisia. E depois, com muitos saltos de humor. Não era uma pessoa fácil. Mas fez imensa falta.

 

Neste móvel estão fotografias suas com os seus entrevistados mais famosos. Entrevistou toda a gente?

Sim.

 

As fotografias do outro lado da sala são com pessoas da sua família. Elas reconhecem-na no seu personagem público?

Não há aqui a palavra público, porque em casa ninguém é público. No século XIX dizia-se que ninguém é público para o seu criado de quarto. Mas diria que há um certo orgulho, um certo reconhecimento – a mãe foi capaz de fazer isto, e isto exprime uma caminhada. Não gosto da palavra carreira.

 

Por que é que não estão aqui fotografias de encontros profissionais do seu marido?

Não tem nada a ver, não é jornalista. Aquilo é o espelho do meu ofício.


O que escreviam os seus filhos sobre o pai e a mãe nas redacções da escola?

Tenho ideia de coisas normais, felizmente. A normalidade dá-me segurança. Eles habituaram-se desde pequenos a ver a mãe a trabalhar como o pai. Os meus filhos viram cá em casa gente do Partido Comunista, do Partido Socialista, do PP, do PSD, viram Presidentes da República, ex-presidentes, pessoas em desgraça politicamente, artistas, cantores. Assim como viram a madrinha deles ou uma prima minha. Não há nenhuma distinção. Isso foi feito por mim e pelo meu marido. Temos duas grandes qualidades: essa e termos durado. “La dureé”.

 

O que é que isso quer dizer?

Que se quis durar. Que se quis prosseguir junto.


Pode falar-me da vossa relação? Não deve ser nada fácil para ele conviver com uma mulher que é tão cheia de força.

Hoje em dia é ele que aparece todos os dias na televisão! E os ministros e políticos quando falam cá para casa, é para ele – estou a brincar.

 

Concorda comigo?

Concordo apenas que sou mais aparatosa, mais exuberante. Mas isso é como as pessoas que fumam ou não fumam: nasci assim.

 

Teve muito mais protagonismo do que ele...

Exposta, sim. A sua pergunta é?

 

Se isso foi uma coisa que marcou a vossa relação. Se é um homem especial por ter sabido viver com isso.

Ele é especial porque é especial. E como é especial soube viver com isso. Quando digo especial é a integridade, a seriedade, a bondade. Posso até ter uma personalidade mais forte – não estou a qualificar se é bom, se é mau. Mas ele é a âncora e eu o barco que vai e vem.

 

Ele tem mais ascendente sobre si do que a Maria João sobre ele?

Tem. Sei que não parece, mas não faz mal. Rio-me imenso com as coisas que não parecem. É preciso saber olhar, saber ver o outro. Quem preste atenção, percebe que ele é muito mais aglutinador do que eu. Sendo discreto, doce, distante, silencioso. Eu aparatosa, barulhenta, exuberante.

 

Quando é que o encontrou?

Encontrei-o no Verão, e percebi logo que era por ali. Casei-me um ano e dois meses depois. Tinha acabado de fazer 21 anos. Novíssima. Já trabalhava e voltei a trabalhar.

 

Já tinha feito televisão na RTP. Como é que começou?

Estreei-me no “Programa Juvenil” da Yvete Centeno, que era minha professora do sexto ano de Letras – foi a minha sorte. Eu fiz um texto sobre a Florbela Espanca, ela gostou muito e convidou-me para dizer o texto e falar sobre a Florbela ao programa dela.

 

A sua voz já era assim grave e forte?

Acho que é grave de mais. Parece que estou sempre a cair de bêbeda com esta voz. Parece uma ressaca de álcool, que é pior do que alcoólica. Tinha voz rouca, mas não tão baixa.

 

A voz é das coisas mais distintivas em si.

Entro numa loja e as pessoas podem não dizer nada. Eu digo: “Se faz favor, é uma bica”, e viram-se imediatamente não sei quantas cabeças.

 

Não gosta muito dela?

Não. Gostava que fosse um bocadinho menos rouca. Tenho a mesma energia na voz que tenho na vida. Tenho na voz o mesmo tipo de pressa, de impaciência [que tinha na juventude]. Também é uma coisa em que nunca tinha pensado.

 

Quais foram os grandes reveses da sua vida? Porque isso marca também uma pessoa.

Só se cresce se se teve reveses. Só se tem amigos se se tiver inimigos. Tenho uma lucidez muito grande sobre isso. Reveses, não gostaria de falar sobre isso. Mas foram alguns e muito pesados. Deus um dia há-de explicar-me porquê.

 

Vira-se para Deus e pergunta: “Porque é que me mandaste isto?”

“Por que é que Tu me mandaste isto”, sim, sim. Discuto, “hardly”.

 

Não há muitos meses, houve aquele episódio com a carteira de jornalista e o Banco Privado. Foi um revés sério?

Não teve importância nenhuma. Foi mais uma manifestação exuberante da invejazinha. Já nem me lembro. Revés é ter perdido um filho. Nunca se volta a ser o que se foi, por muito que se goste da vida, que o caminho seja sempre para a frente. Eu sei o que são reveses e por isso não os confundo com uma merda de uma carteira...

 

Diz merda?

Com certeza que digo!, não me venha com chichés!

 

Há pouco, em off, disse. Mas não pensei que o fizesse na entrevista.

Não é considerado muito bonito, é uma questão de bom gosto. Mas às vezes digo palavrões.

 

Mas são interjeições. É o mesmo que dizer: “Ai que chatice”.

Exactamente. De uma pessoa que quer tudo já. As mulheres falam muito bem, já reparou? Quando as mulheres se entendem há um fio que nunca é comparável com o fio que se pode tecer entre uma mulher e um homem.

 

A facilidade com que passámos das malas da Zara para o Sá Carneiro não seria possível com um homem.

De maneira nenhuma. Que confusão que lhes fazia à cabeça.

 

Acha que se sentiam atentados na sua masculinidade, na sua virilidade, se falassem de assuntos tão frívolos?

Não é nada disso, simplesmente não são capazes.

 

Quando entrevistou a Thatcher, sentiu esse fio?

Ai, gelada, gelada. Foi “straight to the point” às perguntas, aviou-me em vinte minutos, e não teve história. Não consigo recordar mais do que uma mulher muito eficaz, muito racional e muito fria. No entanto, foi uma formidável primeira-ministra. Um mês depois nascia o meu quarto filho, Francisco. Era de tal maneira patente a minha gravidez, ela podia ter dito qualquer coisa, “é um menino ou uma menina?”, “quando é que nasce?”, “tem passado bem?”. Nada. Nunca me esqueci disso.

 

Seria capaz de fazer isso a um entrevistado seu?

Não. Mas talvez fosse outra época.


Portanto, o que marca são os reveses e os encontros?

Os encontros. “Faire la fête” é um dom, e Deus deu-mo integralmente. Tenho um lado festivo que os tais imbecis podem confundir com mundano: não tem nada a ver com o mundo. Quando estou completamente sozinha na Foz do Arelho, não há mundanismo e há festa.


Em relação à vida, tem a sensação de ter acertado?

Tenho a sensação de ter feito o possível. Mas bati muitas vezes com a cabeça nas paredes, tive reveses, desgostos insuperáveis, alegrias desmedidas. Uma pessoa só é digna desse nome se tiver conhecido a mágoa e a alegria, a dor e a festa, a lágrima e o sorriso. Se não, o que é que esteve aqui a fazer?

 

[Já depois de desligarmos o gravador…]

 

Já reparou que nos esquecemos, as duas, de falar da sua saída da Sic? É um ciclo que se encerra.

Há coisas que chegam ao fim, como os iogurtes têm um prazo. Empenhei-me imenso, trabalhei bem, mas estava um bocadinho cansada de fazer isto semanalmente. Já tinha entrevistado toda a gente, já tinha bisado algumas pessoas e excepcionalmente trisado, (pessoas que mudaram de cargo, ou mudaram de vida). Ninguém me apanhará a criticar ou a lamentar estes cinco anos. Gostei muito, enquanto duraram. Agora vou estudar projectos editoriais, vou viajar com menos pressa. Saí do Expresso para a Sábado, estou muito contente. É uma revista inteligente e bem feita, onde assino uma coluna, e vou fazer reportagens a partir de Janeiro. Começo 2007 com muita “anima”.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007