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Anabela Mota Ribeiro

Maria João Bastos

16.02.14

Determinada, confiante, magra. Simpática, profissional, voz grave, olhos muitos azuis. Maria João Bastos é tudo isto. E é uma mulher, nas suas palavras, com sede de viver, sede de aprender.

A história é conhecida: cresceu em Benavente, mudou-se para Lisboa para estudar Comunicação Social (em que se licenciou), trabalhou com modelo. Sonhou ser actriz, é actriz. 

Encontrámo-nos num fim de tarde, quase Inverno. Cabelo apanhado num rabo de cavalo, botas rasas, um poncho preto. Anel protuberante no anelar, maquilhagem suave. Chegou pontualmente.

O ponto de partida para a conversa era a adaptação que Raoul Ruiz faz de “Os Mistérios de Lisboa”, livro homónimo de Camilo Castelo Branco. A rodagem começou antes do Natal, e prossegue neste início de ano. No filme, Maria João Bastos interpreta Ângela de Lima. Uma personagem constante entre uma miríade de personagens. A actriz foi escolhida pelo realizador chileno entre centenas de actores.

O projecto pode representar uma viragem na sua carreira; mas para já, ela prefere concentrar-se no que a aventura lhe provoca. Na aprendizagem, no privilégio de trabalhar com um prestigiado realizador.

Está visivelmente satisfeita.

 

 

Escreve diário? Tem uma agenda-diário?

Tenho uma agenda onde anoto tudo o que faço. Até os bilhetes de cinema colo na agenda. Não escrevo: “Hoje fui ao cinema e gostei muito do filme”. No máximo, escrevo com quem fui. Serve para apontar, é uma coisa factual. Sem descrição, sem fantasia. Tudo o que é importante e que quero recordar, um dia, está lá apontado.

 

Quando olha para quem foi – e é fácil fazer essa recuperação a partir dessa agenda – reconhece-se? Ou percebe como é outra?

Naturalmente vejo as coisas de modo diferente – a maturidade é isso. Mas sempre que olho para trás, ou vejo entrevistas do início de carreira, percebo que a minha essência é a mesma. Os meus valores, as minhas bases, a minha maneira de ser, mantêm-se.

 

Qual é o núcleo que se mantém?

Ser muito sentimental.

 

Não parece sentimental. Se é uma parte tão importante, por que é que não a partilha?

Sei que não pareço sentimental. Mas sou. É um lado tão íntimo, tão meu e das pessoas que são importantes na minha vida, que prefiro preservá-lo. Tenho uma relação muito próxima e sentimental com a minha família. Que outras coisas se mantêm? Lutar pelo que quero. Sempre me coloquei objectivos e sonhos, e sempre fui atrás deles. Numa entrevista antiga, que reli recentemente, falava das minhas viagens, sozinha. Cresci, tenho mais experiência de vida, mas sou a mesma menina que partiu para Londres ou Nova Iorque. Tenho essa sede de viver, de aprender. Não tenho medo de correr riscos, de lutar pelo que quero.

 

Porque é que não vacila? Seria normal que a menina que chega de Benavente se amedrontasse. Onde radica essa força e determinação?

A base de tudo é a educação que recebi dos meus pais. O apoio que recebi deles, o incentivo para ir atrás dos meus sonhos. Nomeadamente ser actriz.

 

Eles não tinham dúvida de que ia conseguir? O seu pai era a pessoa que mais a incentivava nesse projecto.

Penso que não. E essa convicção repercutia-se em mim. Transmitiam-me uma certeza e uma segurança de que eu seria capaz. Ter perdido a pessoa que mais me incentivou, fez-me perceber que a vida é curta, mas continua a ser bela. E que não há nada que nos possa deter em relação ao que queremos. Não por acaso, foi nessa fase da minha vida, [quando morreu o meu pai], que fui para Inglaterra, com uma enorme sede de viver.

 

Era uma menina de 18 anos. Tinha-se mudado para Lisboa para estudar Comunicação Social. Podia ter baixado os braços. Ao invés, optou por estudar e ser modelo.

Ou ficava quieta, ou partia à conquista do mundo. Um mundo que os meus pais me fizeram acreditar que estava ao meu alcance. Ao meu alcance e ao de qualquer pessoa. Não me fizeram sentir que seria mais capaz do que qualquer pessoa. Mas fizeram-me sentir que, se as outras pessoas são capazes, eu também sou.

 

Em relação a que coisas é insegura?

Sou uma pessoa confiante. O que não quer dizer que não tenha as minhas zonas de insegurança. Não acho que as minhas inseguranças, a nível profissional, me atrapalhem muito. Talvez me atrapalhem mais as de nível emocional. Tenho medo de perder as pessoas que amo.

 

Vamos a um caso concreto, continuando a falar de segurança: quando se fala da adaptação do “Equador” para televisão, pensa que o papel de protagonista tem de ser seu?

Quando li o livro, pensei que aquela era uma personagem que eu gostava de interpretar. Mas isso é o que qualquer leitor sente: que é aquela personagem. Na leitura projectamo-nos naquele personagem, nas suas características, viajamos com ele.   

 

Quando Raoul Ruiz vem filmar para Portugal, e faz casting, intimamente pensa que o papel vai ser seu?

Eu estava a estudar em Madrid quando fizeram o primeiro casting. Regressei de Espanha, mais cedo, de propósito, para fazer o segundo casting. Fiz eu e mais 300 actores! [risos] Foram todos os actores e todos os que querem ser actores em Portugal. Encontrei-me com Raoul Ruiz num hotel, e falámos. Não foi um casting, foi uma conversa. Sobre coisas que tinham que ver com o filme, sobre coisas que não tinham que ver com o filme, sobre a minha carreira; meteram-se outras conversas. O Raoul gosta muito de contar histórias. É mágico ouvi-lo! E pronto. Pediu-me um DVD com imagens; fui a casa, fiz uma cópia de trabalhos meus, e entreguei-lho. Ele foi para o Chile nesse dia e nunca mais pensei no filme.

 

Porquê?

Se calhar para não criar expectativas. É um mecanismo defensivo, não consciente. Quando recebi a notícia, dois, três meses depois, já não ansiava uma resposta. Foi uma surpresa imensa quando a minha agente me ligou e perguntou: “Estás sentada?... Vais ser a protagonista do filme do Ruiz”. Só me lembro de ter dado um pulo no sofá! Nem acreditava. Sabia que era um filme importante, um realizador reconhecido a nível mundial, admirado e premiado no cinema europeu.

 

Perguntou-se porque é que foi a escolhida? Até para saber melhor dos seus trunfos, das suas potencialidades.

Não perguntei a mim própria, mas perguntei ao Raoul. Que disse que tinha que ver com o meu carisma, com a minha pele, com o meu olhar. A minha luz. Mais do que uma vez, disse que a minha luz e a minha pele captavam a câmara, chamavam a câmara. 

  

Já começaram a filmar, na última semana de Novembro. Como é que foi?

Vão ser quatro meses de rodagem. O arranque foi incrível! Quando cheguei a casa, ao fim do primeiro dia, não conseguia dormir de tanta excitação! Há muito que não me lembrava de ter esta sensação. Correu muito bem. Ele é um génio da sétima arte e é muito fácil voarmos nas suas asas. É fácil por sabermos que estamos em boas mãos. É fascinante ver a calma que transmite, a liberdade que dá à equipa, a serenidade com que nos conduz.

 

Na véspera, estava como?

Muito calma. Preparei-me bastante, sozinha. Este era o terceiro trabalho de época que fazia. Os dois anteriores foram a série “Equador” e o filme “O Último Condenado à Morte”. Havia um trabalho de pesquisa que tinha sido feito. Nesse sentido, foi um pouco mais fácil. Mas há depois um trabalho de construção da personagem: dos seus sentimentos, frustrações, o que é que cada cena quer dizer... 

 

O que é que esta experiência pode significar na sua carreira?

É a primeira vez que trabalha com um realizador tão internacional.

Neste momento não penso muito no impacto que o filme pode ter na minha carreira. Penso muito no impacto que terá em mim, actriz. O que é que vai ser trabalhar com um cineasta que trabalha com a Catherine Deneuve, a Isabelle Huppert, o John Malkovich. Que tem a experiência de vida e de cinema que ele tem. Acho que vou crescer muito.

 

Como assinalou na agenda a excitação do primeiro dia de filmagens com Ruiz?

Escrevi apenas: “Comecei o filme do Ruiz”, e fiz uma estrela.

 

Ter sido a escolhida para este filme, ou, antes, para protagonizar “Equador” faz de si uma pessoa invejada?

Só não me sinto invejada porque não penso nisso. O povo português é muito invejoso. É um sentimento que repudio tanto… Já o senti na pele. Quando cheguei do Brasil, depois da minha experiência bem sucedida na Globo, houve pessoas que deixaram de me falar, houve pessoas nos corredores da NBP que fingiam que não me viam, que fingiam que estavam a ler alguma coisa ou a falar ao telefone quando eu passava.

 

Nunca sentiu inveja? Quando não foi a escolhida.

Posso sentir pena de não ser a escolhida. Mas a inveja não faz parte da minha natureza. Acho que sentir inveja está ligado à falta de auto-estima e confiança em nós próprios. É um sentimento muito destrutivo. Mas não sou a única pessoa a ser invejada. Fico feliz quando colegas minhas conseguem bons trabalhos. Fazer uma protagonista não é essencial. Em televisão, o papel da co-protagonista é muitas vezes mais interessante do que o da protagonista. O importante num papel é que ele me traga coisas novas, que me estimule.

 

Continua a gostar de fazer novelas? Ou a sua orientação, cada vez mais, é o cinema?

Gosto! Estou extremamente feliz por ter a oportunidade de fazer cinema. Gostava de fazer mais teatro. Mas quero continuar a fazer novelas. Faço parte de uma estrutura [NBP] que mudou bastante desde que o André Cerqueira a encaminha. Quero fazer parte deste movimento, e investir na ficção nacional. Não vejo a televisão como uma arte menor. Vejo a televisão como uma área onde há muito para melhorar e evoluir.

 

Além da inveja, outra coisa de que não se fala habitualmente: dinheiro. Está rica? Tem uma vida de estrela de televisão? Com acesso a determinados círculos, uma vida glamourosa.

Estou rica por dentro! [risos] Porque tenho uma família e um grupo de amigos maravilhosos. Para a idade que tenho, 34 anos, tenho um certo desafogo financeiro. Não me considero mal remunerada. Aquilo que ganho permite-me ter uma vida confortável. Permite-me ser completamente independente, ter a minha casa, parar uns meses e investir na minha formação – como fiz agora, em Madrid, para me estimular enquanto actriz. Mas há uns anos, quando fui para Nova Iorque, trabalhei muito durante meses, para juntar dinheiro. As coisas não são o que as pessoas fazem crer! Nós não estamos em Hollywood. Não sou rica.

 

Quais são os seus “pecados”, além de comprar sapatos? O que é sente quando está em cima de uns saltos Louboutin?

Gosto imenso de sapatos! Gasto imenso dinheiro em sapatos. E em jóias. Adoro presentear-me! Sempre que vivo um momento importante, marco-o com uma jóia. Gosto de ser eu a oferecer-me a mim própria. Por exemplo: a primeira vez que pisei um palco enquanto profissional, nesse dia, comprei um anel. Giro.

 

Para assinalar o filme do Ruiz, o que é que se ofereceu?

Ainda nada. Mas tenho quatro meses para o fazer. Hei-de encontrar a coisa certa. Para marcar momentos importantes, não se trata do valor monetário da jóia. Não tem de ser caro. Tem de ser especial. As jóias com valor, encaro-as como um investimento. Mas o filme do Ruiz, vai ter que ter uma jóia!

 

 

 

 Publicado originalmente na revista Máxima em 2010