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Anabela Mota Ribeiro

Maria João Valente Rosa

02.05.16

Maria João Valente Rosa é a directora da Pordata, a base de dados do Portugal Contemporâneo. Doutorou-se em Sociologia, é demógrafa e professora da Universidade Nova. As suas áreas de estudo são aquelas que se relacionam com a população, Segurança Social, Educação. É autora, entre outros títulos, dos ensaios “Portugal: os números” e “Portugal e a Europa: os números”, com Paulo Chitas, editados pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Estamos a dias de mais um 10 de Junho. Olhamos para nós? Como aparecemos reflectidos no espelho?

  

Apesar de todas as mudanças expressivas que aconteceram depois de 1974, somos, números redondos, os mesmos 10 milhões que éramos há décadas. É assim?

Não. Em 1970 éramos 8,7 milhões. Em 2013, 10,5 milhões. Somos mais do que éramos. Já começámos a diminuir. Às vezes um número diz pouco. Até poderia ser o mesmo, mas as características desse número são radicalmente diferentes.

 

Em que é que isso se vê?

Por exemplo, na composição etária da população. Temos uma população extremamente envelhecida actualmente. Somos um dos países mais envelhecidos em termos mundiais. Nos anos 70, de um conjunto de 15 países da União Europeia, éramos o país mais jovem e menos envelhecido. Começámos a envelhecer mais tarde.

 

Qual é a barreira, quando é que começámos a envelhecer de uma maneira notória?

O grande marco é o ano de 2001. O número de pessoas com 65 e mais anos ultrapassa o número de pessoas com menos de 15 anos. Isto não se faz de um ano para o outro, a evolução já se vinha a desenhar nos anos 80. Mas a rapidez do processo foi de tal ordem que aí fomos originais, acelerámos o passo.

 

Porque é que isso é visível em 2000? Estamos a sair de um período em que a democracia se consolidou, há uma ideia de expansão, crescimento. Ainda estamos longe da crise.

O envelhecimento não aconteceu por acaso. Tem a ver com o desenvolvimento da própria sociedade. Em demografia há dois factores que explicam a modificação do perfil da população. Por um lado, a diminuição dos níveis de fecundidade. Deixámos, em Portugal, de substituir as gerações. No contexto europeu – a Europa é o continente mais envelhecido do mundo –, tínhamos níveis de fecundidade nos anos 60, e ainda nos anos 70, elevados. Actualmente temos o nível de fecundidade mais baixo da Europa a 28, com 1,21 filhos por mulher. A existência de menos filhos por mulher significa que a base da pirâmide se vai estreitando. Um outro factor importante é a mortalidade [infantil].

 

Que, no nosso país, e nos anos posteriores à revolução, diminuiu drasticamente.

Aí fomos quase os campeões do processo. Tínhamos níveis vergonhosos de taxa de mortalidade infantil, de óbitos no primeiro ano de vida, no início dos anos 60. Actualmente temos níveis muito baixos no âmbito dos países desenvolvidos.

 

A mortalidade infantil permite perceber o índice de desenvolvimento do país?

É muito usado para medir esse índice, sim. Para além disto, a esperança de vida nas outras idades também foi aumentando. Cada vez mais as pessoas têm hipótese de chegar às idades mais avançadas. Isto leva a que o topo da pirâmide se vá alargando. Estes são dois excelentes indicadores do desenvolvimento da sociedade portuguesa nas últimas décadas. Não é por acaso que os países mais desenvolvidos são os que têm os níveis de esperança de vida mais elevados e, ao mesmo tempo, níveis de fecundidade mais baixos.

 

Sabemos que a razão porque nascem tão poucos bebés em Portugal é complexa. Mas toda a composição da família se alterou. Os homens entraram em casa, reivindicaram um espaço doméstico e deixaram de estar apenas na esfera exterior a ganhar dinheiro. As mulheres, é toda uma revolução, por demais conhecida. As crianças transformaram-se num bem raro, de estatuto completamente diferente do que tinham há uns anos. Tudo isto implica uma nova composição do tecido social.

A família já não é o que era. Quando falamos de família, não sei muito bem do que é que estamos a falar.

 

O que é a família hoje?

São famílias. As famílias já não nos remetem para os laços institucionalizados que se iniciam, por exemplo, com o casamento. O aumento das uniões de facto é revelador de que as pessoas se juntam e de que já não precisam de institucionalizar perante os outros a sua relação. O casamento era um momento importante para se pensar num projecto de parentalidade, e isso também perdeu o seu valor.

 

Boa parte dos nascimentos são fora do casamento.

Quase 50%. Nos anos 60 eram os chamados nascimentos ilegítimos. Hoje, as crianças têm menos irmãos biológicos, mas muitas vezes têm irmãos que são fruto de anteriores relações que os pais tiveram. E muitas pessoas juntam-se sem dar início a um projecto de parentalidade. Os laços emocionais efectivos tomaram muito lugar na vida das pessoas. Para além das famílias monoparentais. As pessoas vivem mais tempo, têm mais hipóteses de concretizar múltiplos projectos [conjugais]. E há um aumento do número de divórcios. Também estão a aumentar os nascimentos que ocorrem sem que os pais coabitem.

 

É um novo entendimento de parentalidade e de conjugalidade.

Exacto. Neste momento é tão difícil falarmos de família no singular... Estamos a falar daquelas pessoas com quem tenho laços de consanguinidade ou estamos a falar de pessoas com quem partilho a minha vida? O conceito de família tradicional, de pai, mãe e filhos, tem tradução real, mas deixou de ser dominante como era no passado.

 

Isso dá um tecido social matizado onde antes existia a homogeneidade, mais do que tudo.

Sim. A criança perdeu o valor económico que tinha, ganhou um valor emocional. Não pensamos nos filhos como um garante para a velhice, do ponto de vista do contributo que eles poderão ter para a nossa sobrevivência quando chegarmos a essa fase de vida.

 

Com a crise, e com os cortes nas pensões e a fragilidade em que os mais velhos ficaram, não apareceu novamente essa ideia de que vamos precisar dos nossos filhos para nos amparar no fim da vida? Ou só pontualmente?

Os dados relativamente ao que se está a passar nesta fase crítica são muito diversos. Também têm existido sinais no sentido contrário, de serem os pais e os avós o garante dos filhos e dos netos em situação de emergência.

As mulheres começaram a estudar. Estão em maioria em termos de diplomados no ensino superior, nos doutoramentos. São as mulheres que menos abandonam a escola precocemente. Faz parte do seu projecto afirmarem-se como boas profissionais, e não apenas como boas mães. Muitas vezes, em Portugal, o ser boa mãe e boa profissional são partes de uma equação que não se acompanham.

 

Persiste a ideia de que uma mulher que investe demasiado na sua dimensão profissional não investe o suficiente nos filhos. São os resquícios do passado, de uma cultura machista?

Sim. Mas tem tradução na realidade. Em Portugal valorizamos muito o número de horas de trabalho. Trabalhamos muitas horas. A percentagem de mulheres a trabalhar a tempo parcial é baixíssima comparada à média da União Europeia. Isto deixa pouco tempo para o desenvolvimento de outros projectos, como o de ter filhos – que é um projecto que se quer muito bem sucedido.

 

A escala de prioridades alterou-se, mas, sobretudo, o tempo de fazer cada investimento alterou-se. Primeiro a carreira, depois os filhos?

O que está a acontecer na sociedade portuguesa é que as pessoas estão a adiar cada vez mais o nascimento do primeiro filho. Actualmente a idade média do nascimento do primeiro filho já é de 30 anos.

 

Como é nos países do norte da Europa, com quem sempre nos queremos parecer?

Não é muito diferente. A nossa diferença é que estamos a ficar-nos cada vez mais pelo primeiro filho. Em muitos países do norte da Europa as mulheres primeiro asseguram a outra componente, que é imprescindível para se ser um cidadão em pleno, mas depois conseguem a conciliação de tempos.

 

A conciliação dos dois planos é um problema difícil de resolver em Portugal, onde as pessoas trabalham até tardíssimo.

A conciliação de tempos está muito mal resolvida, aqui. Mas a sociedade mudou. E são mais os indivíduos e as suas emoções que se começam a afirmar.

 

Uma palavra tão simples e central como felicidade passou a entrar na equação.

Exacto. A partilha de tarefas e de responsabilidades parentais, apesar de estar melhor resolvida entre os jovens quando comparamos com gerações mais velhas, está muito mal resolvida, ainda em prejuízo claro das mulheres. Os homens ajudam, porventura.

 

Mas a palavra é “ajudam”. Como se não fizessem mais do que a sua obrigação.

Ainda há um problema muito grande de igualdade entre géneros a resolver. Voltando à questão da felicidade. Muitos acusam as sociedades de serem egoístas. As pessoas pensam que querem ser felizes, ter a sua vida, e que, por isso, têm menos filhos. Não sei se é uma questão de egoísmo. Quando se pensa na criança não se está a pensar apenas na felicidade que essa criança nos vai dar ou no retorno financeiro que essa criança nos vai dar. Pensa-se muito naquilo que a criança pode ser e naquilo que tenho condições de dar a essa criança.

 

Não deixa de ser curioso que sejam os dois extremos da vida, as crianças e os velhos, aqueles que mais diferenças sentiram nas últimas décadas. A maneira como se é criança alterou-se profundamente. Mas também o aumento da esperança de vida, e a medicalização da sociedade, alterou a forma como se é velho.

Completamente. Embora uma pessoa com 70 anos, hoje, não tenha nada a ver com o que era no passado, – como no futuro não terá nada a ver –, continuamos a entendê-las do ponto de vista social, e do ponto de vista da nossa organização enquanto sociedade, quase da mesma forma.

 

Como assim?

O modo como pensamos a vida: há uma fase em que se estuda, há uma fase em que se trabalha e há uma fase em que se descansa ou se entra na reforma. A fase em que se estuda é uma fase que está a dilatar-se. Cada vez mais as sociedades estão sustentadas no conhecimento. Isso faz a diferença em termos de competitividade. Até aos 23 anos não chega. Depois, em termos de trabalho, a idade que vai até aos 65 ou 66, um período em que trabalhamos de forma particularmente intensa e que não nos deixa tempo para mais nada. E depois temos um tempo em que se diz que já acabou.

 

Acabou o trabalho. Mas, atendendo ao aumento da esperança de vida, não começam a preparar-se para morrer.

Ao longo da vida as pessoas vão mudando, adquirindo competências, perdendo outras. Faria todo o sentido que a pessoa abarcasse várias carreiras ao longo da vida. Mas para isso seria preciso prepararmo-nos, termos tempo para a formação. Congelámos uma estrutura de três fases de vida, sem sequências, que não se cruzam. O importante era cruzar estas fases de vida.

 

Como concretizar isso?

Defendo uma menor intensidade de trabalho durante o período de vida activo, através da promoção do tempo de trabalho parcial e de outro tipo de iniciativas. E simultaneamente uma reforma a tempo parcial. Começarmos por estar mais tempo ligados a actividades que não têm que ser aquela actividade com a qual iniciámos a nossa vida.

 

Há questões emocionais muito sérias que as pessoas não consideram quando olham para aqueles que se reformam. O que é que vão fazer à vida? Se tudo correr bem, e se se reformarem aos 66, podem ter 20 anos em que estão a fazer o quê?

Há vários problemas. A reforma faz bem à saúde? Não tenho provas, mas acho que não.

 

Como é que uma pessoa ganha energia (se está farta até à ponta dos cabelos de fazer aquilo que fez a vida toda) para começar de novo aos quase 70 anos?

Essa pessoa está esgotada. Mas estou a falar para as pessoas do futuro, que somos nós. Quando falamos da situação actual esquecemo-nos de a perspectivar a médio, longo prazo. O que é que estamos a fazer para mudar. Muito pouco. Continuamos a discutir fórmulas que transportamos do passado. Por exemplo, a questão da segurança social. Continuamos a esticar de um lado ou a diminuir do outro. Ou a aumentar a idade da reforma, a diminuir as prestações, a aumentar as contribuições. E andamos nisto.

 

É um problema centralíssimo. Como é que se torna sustentável uma sociedade que envelhece desta maneira?

As soluções dos problemas não se encontram dentro do mesmo quadro referencial em que esses problemas nasceram. Para encontrar a solução tenho que sair.

Na Segurança Social temos duas questões que deviam ser separadas: o presente e o futuro. E continuamos a discutir o futuro com base no passado.

 

O presente é crítico, todos sabemos.

Muito crítico. A taxa de pobreza das pessoas com 65 e mais anos, se não tivessem transferências sociais, seria de 90%. Após transferências sociais é de 15%.

 

Por transferências sociais entende pensões, rendimento mínimo...

Subsídio de desemprego, abonos, tudo. Mais de um milhão e trezentas mil pessoas recebe pensões de velhice abaixo do salário mínimo nacional. Temos uma situação problemática: a dependência que estas pessoas têm e a sua incapacidade de desenvolver novos projectos.

 

E depois temos o problema do futuro.

Não podemos continuar a pensar que no futuro vamos continuar a usar as mesmas fórmulas e o mesmo modo de funcionamento. Os países que têm maiores percentagens de pessoas a trabalhar a tempo parcial são os países que têm maior produtividade laboral hora/trabalho. E são os mesmos países em que a remuneração média por trabalhador é mais alta.

Em Portugal, trabalhamos muitas horas mas produzimos muito pouco. Enquanto continuarmos a pensar em tempos e em horas, e não em resultados, não vamos lá.

 

O que a baixa produtividade nos diz, mais do que tudo, é que o nosso modelo de organização do trabalho está errado?

Sim. E diz-nos que a nossa baixa produtividade tem a ver com um défice elevadíssimo de qualificações. Mais de metade da população tem no máximo o ensino básico (nos trabalhadores por conta própria). A média da União Europeia é 22,5, nós temos 67,2. Olhando para os trabalhadores por conta de outrem, os valores são menos altos mas igualmente graves.

 

Em 1974 um quarto da população era analfabeta. O investimento na educação foi brutal e as novas gerações já são todas escolarizadas.

Ainda temos um nível de abandono [escolar] elevado. Ainda somos o quarto país da Europa em que os jovens dos 18 aos 24 desistem de estudar e não se encontram inseridos em nenhum curso de formação. E não têm o secundário completo. A nossa meta para 2020 é de dez%. Não sei como é que vamos lá chegar. No início dos anos 90 era de 50%. Continuamos com um discurso perigosíssimo: “Estudar para quê?”

 

Um discurso que recrudesceu com a crise e em especial o aumento do desemprego jovem?

Sim. “Estar a estudar para o desemprego. Estudar não compensa. Mais vale ir trabalhar.”

Estes baixos níveis [de escolaridade] impedem-nos de fazer avaliações pelos resultados, e não pelo tempo que se demora a fazer. É muito difícil estabelecer metas para quem não sabe quais são as metas. “Tem que chegar ao fim do dia e a sua meta é esta. Se demora uma hora a fazer ou cinco horas, é consigo. Não vou prejudicá-la.” Em Portugal o que vigora é o contrário.

 

Quem trabalha poucas horas é visto como preguiçoso.

É. Quanto mais horas está a trabalhar mais bem visto é no âmbito da organização da qual faz parte.

 

Também é verdade que não se fez uma renovação demográfica de 1974 para cá. Muitas destas pessoas pouco qualificadas, nascidas antes do 25 de Abril, continuam vivas.

Mas mesmo em relação aos jovens, entendo que a situação é preocupante. As pessoas desistem. Ou então estão os 12 anos mas não passam do 9º ano de escolaridade. Vão sendo retidas em nome da exigência, como se a exigência tivesse a ver com isso. As nossas crianças não são menos dotadas que as finlandesas. Por que razão as crianças finlandesas conseguem sucessos enormes na escola e nós não conseguimos?

Em Portugal, apesar dos enormes avanços que conseguimos, ainda não nos libertámos. A origem social e familiar ainda continua a fazer muita diferença em relação às oportunidades. As crianças continuam a ser muito o cabide daquilo que são os adultos. Isto é terrível.

 

A permeabilidade social em Portugal é muito reduzida. As pessoas continuam a frequentar as escolas do seu meio, a dar-se com as pessoas do seu meio, a casar com as pessoas do seu meio. E raramente furam na escala social.

É a questão do mérito. Não conseguimos olhar para a pessoa e avaliá-la pelo que ela vale por si. Estamos a anos-luz de ser uma sociedade que valoriza aquilo que a pessoa é e sabe, e não o meio de origem ou certas características quase vazias que tem. Valorizamos pontos tão disparatados quanto o critério administrativo da idade. Ou a nacionalidade.

 

É uma forma de racismo?

É. Somos nós e os outros. E dentro do nós existem aqueles para quem olhamos através de um segundo ou terceiro filtro. Quando temos dois candidatos a um mesmo lugar, com idênticas competências, o primeiro factor que vem à cabeça para se optar por um e não pelo outro é a idade. Não faz sentido. Uma sociedade que está a envelhecer como a nossa, o capital que estamos a desperdiçar...

Quando se fala em dinamização da economia, a economia faz-se com pessoas. Tivemos uma grande entrada de estrangeiros dos países de leste e pusemo-los a fazer trabalhos desqualificados. Pensamos que nos estão a tirar o nosso lugar. Outro mito é o de que o mais velho está lá para ocupar o emprego do mais novo. É mentira. Quanto maior for o dinamismo da economia mais empregos são criados – para todos, novos e velhos.

Ainda sobre o discurso perigoso do “estudar não compensa”: o diploma não é tudo, mas é um bom princípio para conseguirmos ser mais resilientes. Há a diferença salarial entre quem tem baixa escolaridade e alta escolaridade. Portugal não é um país com excesso de diplomados.

 

Quando dizem que temos excesso de diplomados ou doutorados estão a dizer, de certa maneira: “Baixa a bolinha, não podes desejar ser doutor. Modera a ambição”?

É uma forma de dizer isso. É uma forma de as pessoas se promoverem pela sua mediocridade. Continuamos a viver como se fôssemos bipolares. De um lado temos a mudança social evidente do ponto de vista familiar, demográfico, e mesmo nas condições de vida. Uma mudança que foi muito acelerada. Depois continuamos a reproduzir aquilo que herdámos. O principal problema das sociedades modernas não é o futuro, é o passado. Insistimos em perpetuá-lo, é a nossa forma de nos afirmarmos.

 

Percebemos que dentro de casa as coisas mudaram muitíssimo. Contudo, quando olhamos para o espaço exterior, para a maneira como os portugueses tratam a res publica, a mudança não é tão significativa? Temos uma atitude mais empenhada civicamente, colectivamente, ou continuamos encapsulados na nossa família, no nosso pequeno grupo?

Começam a existir algumas formas de pensar para além daquilo que nos é imediatamente próximo. A forma como convivemos com o espaço público, com a questão do ambiente, é bem diferente do que era até há dez, 15 anos.

 

Estou a pensar na relação com a política, na maneira como as pessoas se abstêm nas eleições.

As pessoas não se revêem já neste fato. Um fato que sempre foi muito marcado por partidos políticos. Do facto de as taxas de abstenção serem particularmente elevadas, não consigo retirar um maior desinteresse das pessoas pelo que se está a passar. Desinteressam-se pela forma como estão a pedir que colaborem. De outras formas, estão mais empenhadas. Nos voluntariados, por exemplo.

 

Somos essencialmente um país homogéneo? O corte é norte-sul, litoral-interior, espaços rurais-espaços urbanos? Ou, cada vez mais, ricos-pobres?

Também somos um país de ricos e pobres. Nos últimos anos, a desigualdade de rendimentos entre os mais ricos e os mais pobres aumentou. E houve quem tivesse ficado particularmente mais vulnerável: os mais jovens.

 

Voltemos à minha pergunta: os cortes neste país aparentemente homogéneo são em que sentido?

O país é muito assimétrico. Portugal é o 12º país mais populoso da União Europeia a 28. Do ponto de vista da superfície e da população não somos um país irrelevante. Quando olhamos para o país numa perspectiva regional, os indicadores tomam um rosto muito diferente. Genericamente, todas as regiões estão a envelhecer. As regiões mais envelhecidas são as do interior, em especial as zonas menos urbanas. O litoral é mais dinâmico. E mesmo no litoral temos duas bossas, as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Cerca de 35% do poder de compra concentra-se em dez municípios do país. Quando olhamos para a distribuição de estrangeiros pelo território, há predomínio de estrangeiros no sul do país, para além da zona de Lisboa.

 

De um ponto de vista político, somos instáveis? Tivemos inúmeros governos em 40 anos. E não crescemos. E gastamos muito, quer particulares, quer Estado. São grandes linhas que podemos sublinhar?

E trabalhamos muito e produzimos pouco. A grande linha que dá sentido a tantos destes pontos frágeis de Portugal é a educação. Voltamos sempre lá. As exigências de hoje não são as mesmas de há 40 anos atrás. Hoje precisamos de chegar muito mais longe.

 

Uma das grandes penalizações da crise, recuperando um ponto que vem de trás, é a ideia de que a educação não é um bom investimento.

Existem vários. Esta ideia de que a educação é um gasto é terrível. Os resultados da educação não se vêem no imediato, no ano seguinte. Vêem-se a médio e a longo prazo. É preciso um investimento consistente, sem grandes flutuações ou mudanças de sentido em legislaturas. Deveria ser a nossa grande referência em termos estratégicos.

Este centramento no presente, embora se fale de futuro, é outro problema muito grave. As pessoas estão ansiosas por um resultado imediato.

 

E a acudir ao imediato.

O imediato não nos basta. O futuro será mau se for pensado numa sucessão de imediatos. Em relação à Segurança Social, a população vai continuar a envelhecer. Recentemente a Comissão Europeia no relatório Ageing Report 2015, admite o aumento da fecundidade, as migrações passaram a positivo, e mesmo assim a população continuará a envelhecer. Continuo a ouvir da boca de muitos responsáveis que o problema do envelhecimento está na fecundidade, e que, se esta aumentar, deixamos de envelhecer. O que me está a amedrontar.

Portugal podia ser um case study fantástico, sendo um dos países mais envelhecidos do mundo. A crise muitas vezes obriga-nos a rever uma série de pressupostos. Mas estamos a rever pouco. Precisávamos de repensar a questão das horas, das avaliações, da produtividade. A nossa relação com os estrangeiros aqui dentro.

 

 

O corte das pensões. Além da dor efectiva das pessoas que passaram a viver com praticamente metade daquilo com que viviam, o que é que representou?

O problema do presente está nas pessoas que estão totalmente dependentes, porque alguém lhes disse: “Podem contar.” A questão é a confiança. Dizem toda a vida que não é preciso fazer nada porque “estamos cá quando chegar a essa idade”. A pessoa chega a essa idade, não arranjou mecanismos alternativos, e dizem que as regras mudaram. E não lhes dão hipótese de fazerem qualquer coisa. Temos muito enraizada a ideia de que os mais velhos servem para pouco e que não podem dar um contributo. Agora, as gerações mais novas podem perguntar: “O que é que tenho a ver com isto? Foi um contrato que não foi feito por nós.” Há um problema geracional que começa a colocar-se. Começamos a ter duas facções, a dos que pagam e a dos que são beneficiários. Estamos a comprometer a sustentabilidade futura da sociedade como um todo, do ponto de vista da sua coesão.

 

Os cortes tiveram que ver essencialmente com a sustentabilidade.

Sim, os cortes recaíram na questão da sustentabilidade e implicaram a introdução do sistema de sustentabilidade e a revisão do método de cálculo das pensões, que passou a contar com toda a carreira contributiva em vez dos quinze últimos anos. Mas temos que dar o salto. Tudo o que está a acontecer, entendo como paliativos, não como solução do problema.

 

Temos de pensar como é que trabalhamos, não mais horas, mas como produzimos mais riqueza?

Começa por aí. Produzir mais riqueza. Se calhar não passa apenas por nos esforçarmos mais. Precisamos de tempo para estudar. Precisamos de saber avaliar. Precisamos de pensar que aos 40 ou 50 é tempo de imaginarmos outra vida. É tempo de nos re-imaginarmos.

 

Isso não é utópico?

Não. Isto é mais realista do que as pessoas pensam à partida. As soluções não têm que vir de fora. Aquele Estado protector que nos comanda e organiza: todos já sentimos que não é a melhor forma de vivermos nesta sociedade. O Estado é uma parte. Fazemos parte do Estado, mas é uma parte. E por fazermos parte deste grupo temos aqui um papel decisivo. Podemos mudar muita coisa.

 

Quando perguntava pela forma como os portugueses se relacionam com a res publica estava também a falar disto. As pessoas distanciam-se e desresponsabilizam-se muito mais...

Muito mais do que seria desejável.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015