Maria Rueff
Maria Rueff dobra as escadas e desculpa-se pelo ligeiro atraso. Tem o ar fresco de quem acaba de se arranjar. Lera durante a manhã um livro de Michael Cunnigham. Parece ter o tempo todo pela frente; contudo, quando saímos para a rua, já quase noite, ouve mensagens. Por essa altura, eu já percebia melhor o seu olhar vagamente acossado. A ferida, como ela lhe chama.
Um quarto para as três. Os sapatos e a carteira são de um chique confortável. Sabe que é de qualidade, que merece, e isso parece satisfazê-la. A figura é anódina. Avança pelo café imune aos olhares, que, ao contrário do que seria de esperar, não a vampirizam. Uma vez ela contou-me que apanhou o metro para o Chiado, para fintar o trânsito e chegar a horas. Lembro-me de ter pensado no inferno do metro, em hora de ponta, com os autógrafos e a devassa. Mas não, explica ela durante o almoço. Em tempo de Big Brother, as pessoas preferem saber se a Marta já teve o filho. E é verdade que a sua existência, a da Maria ultra-tímida, nunca apelou ao espalhafato.
Pelo fim do almoço, ligou-se o gravador e ataram-se algumas pontas que vinham da salada e do sumo. Ao cabo do segundo café, muito adiantado nesta cronologia, ela era já outra. Estranhamente outra. Vemo-la de todas as maneiras, e tão poucas vezes a podemos ver como ela é.
Dá-se a coincidência de eu ter chegado ao prédio em que vivo exactamente quando a Maria estava a sair, e de a primeira casa que vi ter sido a sua. Há pouco mais de dois anos. Consegue recuperar esse tempo da sua vida? Que coisas lhe ocorrem?
O início de um casamento de profundo amor. Um crescimento meu como mulher. Tive uma adolescência «One of the boys», da amiga no meio dos colegas, da associação de estudantes e das lutas estudantis. Tinha descurado o meu lado de mulher, como ser sensível, como ser carente, e tal.
Descurado o ser feminina, num sentido convencional?
Embora seja muito bruta de gestos, muito portuguesa – e reporto-me às mulheres de que estávamos a falar: as beirãs, as mulheres de força – os meus ídolos de beleza são a Audrey Hepburn, e aquela mulher d’ «O Piano», [Holly Hunter, filme de Jane Campion]. E o João, o meu marido na altura, conseguiu perceber que, por detrás disto tudo, estava um modo de ser feminino. Essa época, (quatro, cinco anos), essa casa, é o ninho desse amor e desse respeito.
Tinha vinte e três anos quando foi para lá. Já era a Maria Rueff?
Estava justamente no princípio. Com «A Mulher do Senhor Ministro», a que se seguiu o «Herman Enciclopédia», e por aí.
Quando a vi, a casa não tinha ainda sido pintada. Na sala havia marcas de molduras. Que imagens guarda perto de si?
Tinha um quadro de ninguém muito importante, pelo qual me apaixonei numa galeria sem nome – por serem sem nome, são mais acessíveis às bolsas. Foi o meu primeiro quadro. Uma coisa que evoca o Bosch, aquelas caras estranhas; tem também a ver com as máscaras de teatro, mas não com as máscaras pirosas venezianas! E tinha fotografias de todas as mulheres da minha família que amo. Somos cinco filhas, a minha mãe, a minha avó, a minha bisavó – um forte lado de matriarcado. Tinha a fotografia do meu pai – foi naquela casa que o perdi.
Podemos ir às mulheres? As pintoras de que falávamos ao almoço convocam a feminilidade de diferentes modos. A delicadeza na Menez. A visceralidade na Paula Rego. O sangue, que é também o sangue do parto, na Graça Morais. Como é que num universo com tantas mulheres se aprende a ser mulher, e depois como é que se chega à adolescência a descurar a feminilidade?
As mulheres da minha família são mais o que a Graça Morais retrata. Ou seja, tocar a vida. Há uma coisa muito beirã, e muito transmontana, do sangue ligado ao trabalho e à vida – no parto, na matança do porco.
À carne?
À carne. Tudo é esforço. Não há espaço nem tempo para a sensualidade.
Sensualidade dengosa?
Sim, chamemos-lhe sensualidade norte-americana. Porque acho que há uma sensualidade nesse lado rude. Mas não há oferecimento. O homem se quiser que se apaixone por essa força, por essa verticalidade de carácter. Esse lado etéreo, nunca o conheci na minha mãe. O lado mais gueisha da mulher, nunca tive noção do que era. O meu ex-marido ajudou-me a aprender esse lado. Mas ainda hoje não o sei muito bem.
Não sabe qual é o seu lugar como mulher?
Pois. Não tenho essas armas.
A arma da sua mãe era a força. Quando a conheci, impressionou-me a sua imponência.
No espaço de tantas mulheres o que se aprende é isso: ser mulher pela força, pela transmissão de conhecimento e educação – para mim, como arte suprema. Devo tudo à maneira genial como a minha mãe me educou. Nunca me impediu de coisa nenhuma, mas mostrou-me sempre um sentido de honra, um papel, uma obrigação, «Para teres liberdade tens de mostrar que é possível confiar em ti».
Para uma mulher como a sua mãe, essa sensualidade dengosa seria uma espécie de subalternização da mulher?
Fui educada em cânones de muito pudor. Ainda hoje, quando ponho um decote ou uma mini-saia, sinto-me não muito à vontade. Não é que não o ponha nas personagens; estou a dizer eu, Maria. Esse lado gueisha, foi-me ensinado como sendo feio. Ainda hoje não digo «Como está, muito prazer»; porque uma mulher não diz «Prazer», diz «Muito gosto». Percebe? A minha mãe é quase minha avó, teve-me com 42 anos, um diamante depurado. Não tive a mãe nova, com quem se aprende a pôr batom.
Insisto na ideia de subalternização, quando a mulher se põe em certas figuras.
Completamente. Figuras, é como ela lhes chama. «Não vais para a rua nessa figura».
E ia?
Nunca fui.
Tem quatro irmãs. Como era a vossa relação?
Todas tinham idade para ser minhas mães. Portanto, foram sendo minhas mães, à vez. Vivi dois anos, na altura da descolonização, com uma das minhas irmãs em Coimbra. Mais tarde, pela doença do meu pai, vivi com uma das minhas irmãs que é advogada. Aliás, quis ir para Direito um bocado influenciada por ela.
A relação de identificação com a mãe é fundamental, inclusive na relação que mais tarde se estabelece com as outras mulheres. No seu caso houve uma dispersão.
É isso que é a minha massa artística. Foi isso que foi enchendo o meu reservatório de várias personalidades. Uma criança normal vive só com uma verdade, com a verdade daquela mãe. Eu vivi com várias verdades, com vários discursos, com várias perspectivas. Ainda hoje acho que tenho tripla, quádrupla personalidade. Sou muito camaleónica, e penso que resulta disso tudo.
Era uma ultra-tímida, não era?
Sempre fui. Precisando de usar o humor... Numa família em que a irmã a seguir tem mais treze anos e a mais velha dezoito, esta criança tem de arranjar algum truque para seduzir o mundo dos adultos. Foi através do humor que acabei por conquistá-los a todos.
Era a engraçadinha?
Não era bem fazer gracinha. Era imitar a vizinha, ou, em situações dramáticas, fazer um disparate para aliviar o ambiente. Era um elemento quase catártico. É uma visão de adulta, mas pressentia que o mar estava mais alto que a terra, e fazia um disparate para ver se.
Não havia homens?
Há o meu irmão João, que adoro, e que substituiu a figura do meu pai. Irmão, no verdadeiro sentido. Se ficar numa cama de hospital, ou se ficar sem dinheiro nenhum, ele estará lá – como esteve na altura do Conservatório. O meu pai. Eu vivi com o meu pai dentro de um hospital psiquiátrico. Onde conheci o António Lobo Antunes, que foi seu médico – tenho «A Memória de Elefante» assinada por ele porque lhe pedi numa consulta um autógrafo. Cresço com um pai profundamente sensível, profundamente culto, mas profundamente destruído. Não aguentou a descolonização e saltou para o lado de lá.
Eu sabia do seu entusiasmo pelos livros do Lobo Antunes. Pensei que passasse mais pela forma como ele trata o universo das mulheres.
A minha paixão pelo Lobo Antunes começa n’ «A Memória de Elefante» onde fala do Miguel Bombarda. Eu era uma adolescente, 14 anos, vejo o meu pai ali dentro e de repente descubro na literatura «Ah, há aqui um senhor que explica isto tudo, que fala brilhantemente».
Quem é que lhe dá a ler «A Memória de Elefante»?
A minha irmã Céu, com quem fiquei depois a viver. Muito nova, fui lendo, influenciada por ela. Não era uma miúda com comportamento de miúda. Era muito séria e calada, com uma tónica muito triste. Comecei a ler Lobo Antunes desalmadamente. Ele não associa aquela miúda a mim..., se é que me conhece. Desde aí que o endeuso. África. Loucura. Sofrimento. O facto de serem, também, seis filhos, de dividirem a mesma barriga. Esse sentimento de que a mãe não é só minha, o pai não é só meu... Ele é um bocadinho o que se dizia que o Brell era com as mulheres: maltratava-as porque as amava profundamente. Não ter conseguido conquistar para ele aquela mãe... Transportou esse amargo de boca para as outras mulheres. Sei lá! Já estamos a fazer psicanálise do próprio Lobo Antunes.
Estava a falar de si também.
Sim. Em termos de homens que retratam as mulheres – não sendo homossexual, porque os homossexuais são privilegiados no retrato do mundo feminino – máximo dos máximos, considero o Chico Buarque. É o único homem que é verdadeiramente uma mulher a escrever.
Diz-se que as mulheres têm um fraquinho por canalhas que as maltratam. O Chico Buarque, não só por ter composto a «Ópera do Malandro», tem uma aura de canalha que nos maltrata mas ao qual é impossível resistir.
Absolutamente. Penso que tem a ver com a maternidade. O amor está ligado ao sofrimento, ao ensinamento. Não querer que o marido seja só o cavalheiro, o príncipe.
Tem de ser mais visceral, como nos partos?
Dor, tem de ter dor.
Tem medo de ter filhos?
Muito medo. Eu tenho um lado muito perfeccionista, que empresto aos personagens, e persigo o ideal da beleza – como estado puro das coisas. Tenho medo de não ter a calma, e o recuo, e controlar demasiado a liberdade que o meu filho deverá ter. Uma mulher, no século XXl, conseguir que uma criança tenha um percurso óptimo, que seja um bom ser humano, que tenha valores, uma carreira, é uma obra de arte suprema. Não sei se há tempo e espaço para isso.
Trata-se, também, de uma roleta russa. Apesar do esforço e da atenção, alguns saem ovelhas tresmalhadas.
Isso faz-me um enorme medo. Se calhar ainda por egoísmo. Terá que ser uma prova... Por acaso sou católica, mas mesmo que acreditasse que tudo acabava no último suspiro, não penso que a vida seja para passar férias. Aquela coisa, «Ai se o meu filho se droga, ai se o meu filho é mongolóide»; tem que se trabalhar como ser humano e ser humilde o suficiente para perceber que aquilo apareceu por alguma razão. O meu medo é não conseguir ser não-egoísta o suficiente para poder amar bem aquela criança – que venha mal ou que tenha um percurso mau. As pessoas sofrem por egoísmo.
Como assim?
Aprendi com a morte do meu pai que se chora um ano por egoísmo. Claro que se chora por aquela pessoa, pelas saudades. Mas também por egoísmo: eu é que sofro com a sua ausência.
A pessoa deixou-a?
Exacto. Isso é egoísmo, não é amor. Ou é amar de uma forma egocêntrica. O maravilhoso em ser-se mãe ou educador é dar a liberdade. Deixar um filho ir à sua vida é a maneira mais profunda e humilde de se amar.
Ainda ao almoço, falávamos de um outro aspecto: os filhos podem ser excelentes pessoas, ter uma esmerada educação, bons profissionais. Mas infelizes. Parece que há uma incompatibilidade entre a genialidade...
E a felicidade corriqueira.
Se tivesse sido mais feliz, se tivesse tido uma existência mais linear, seria a actriz que é hoje?
Não. Nem sequer seria actriz. Sou actriz por necessidade. Um dos médicos do meu pai dizia que eu tinha uma esquizofrenia bem resolvida. Acho mesmo que é isso. É o que está por detrás deste desdobramento todo.
É o seu tormento e o seu substrato. Profundamente autofágico.
Um artista quando atinge a plena felicidade, quando tem o carro que quis ter, o namorado que quis ter, morre um bocadinho artisticamente. A partir do momento em que curou as feridas deixou de ter que dizer ao mundo. A criação nasce da ferida. Não é por acaso que a Callas, no curto espaço em que consegue viver com o Onassis, antes do casamento com a Kennedy, deixou de cantar. Deixou de ter motivo, ferida, para cantar. Estava feliz, ia ser mãe. Adoro biografias: tentar perceber o que move as pessoas!
Enquanto método de trabalho, imagino que seja fundamental perceber como é que as pessoas se encaixam, fazer uma primeira leitura para poder compor o personagem. No seu caso não é imediato. Fisicamente é como se tivesse uma presença moldável.
Nem feia nem bonita, nem alta nem baixa, nem gorda nem magra. Sim.
E animicamente, é uma tímida que consegue ser histriónica. Como é que comporia o personagem Maria Rueff?
Uma profunda manta de retalhos. Com o bom e o mau disso. Para mim, ser humano Maria, é muito desaustinante. As pessoas mais íntimas dizem que sou um elástico: ora concordo, ora não concordo. Embora tenha um lado de valores intocáveis. Como a verdade, a humildade, a generosidade, a integridade, a dignidade. Que jamais porei em causa, por nada deste mundo. São as linhas que cosem tudo nesta manta de retalhos.
Como é que decide ser actriz, com o afinco suficiente para mudar de vida e ir para o Conservatório?
Era o meu maior sonho. Adorava representar, adorava teatro. Mas, pela tal educação espartana, não podia dar-me ao luxo... Não era conotado com ser-se menos senhora, não era a coisa da leviana. Mas uma profunda incógnita em relação ao futuro. Não havia trabalho. «Vais ser artista, vais viver de quê?, do ar?»
Era o que dizia a sua mãe?
Não. Esse discurso era o que esperaria, e ela, mais uma vez, foi genial e disse «Percebo o teu sonho. O que mais quero é que um filho realize o seu sonho». Eu achava que devia ir para Direito, ter o meu canudo. O destino decidiu por mim. Acho piada que o destino interfira, que não seja o homem a dominar tudo. E não entrei em Direito por uma décima. De maneira que fui logo para o Conservatório, sempre com «Ó mãe, para o ano volto a Direito».
No Conservatório estuda para ser uma actriz, ponto. Neste momento, parece-me pertinente perguntar se se considera uma actriz ou uma actriz cómica? Só a conhecemos no registo da comédia.
Acima de tudo sou actriz. O que não me importo, e que faz sentido, é que as pessoas se vão especializando. Se posso ser muito boa em comédia... Fazer comédia, também tem de se nascer com o dom. Obviamente sei que tenho isso. Não estou a puxar de galão nenhum, não terei outras coisas. Não sou bonita, por exemplo. Devemos dar valor ao dom com que nascemos e não ficar eternamente infelizes por não sermos o outro. Estou especializada nessa zona, o que não quer dizer que, se me puser um texto de Tenessee Williams, não o trabalhe com tanta entrega e dedicação e consiga fazê-lo.
Tem vontade de experimentar?
Tenho, tenho. Tenessee Williams foi um dos exercícios do Conservatório. A Laura do «Jardim Zoológico de Cristal» foi a coisa que mais adorei fazer, justamente por ser o oposto do que pareço ser. Espero poder experimentar as cores todas da paleta, não ficar só no azul.
Muito cedo conseguiu reconhecimento, fama, dinheiro. Goza de uma unanimidade que o Herman deixou de ter – é certo que a sua carreira não tem ainda os anos de erosão que a dele acusa. Sente nostalgia desse percurso de palcos que seria o normal numa actriz que sai do Conservatório? Saudades desse tempo que não aconteceu?
Imenso. O que mais me perturba é não ter tido tempo para fazer rascunhos. Separei-me. É a primeira entrevista em que digo isto, mas acho importante. Também na vida, não tive espaço para errar. É quase uma carreira yuppie e eu odeio yuppies. Preciso de me pôr à prova, dar-me o direito de ser má, de dar cabeçadas. Até na vida senti necessidade de pôr esse travão, «Este casamento já não está a ser, tenho um casamento como se tivesse 40 anos e não fiz disparates». Não quer dizer que agora tenha uma existência leviana. Espartilhei-me muito cedo.
Com uma velocidade cruzeiro.
Que me obriga a uma diplomacia, a um jogo de cintura muito extenuante. Sobretudo no que toca ao que os jornais quiseram fazer da minha relação com o Herman. Que sempre foi puríssima, de profunda admiração minha. Se me mantive com ele foi porque quis – nunca houve o monstro que está a impedir a miúda de voar. Sinto que ainda não aprendi tudo, jamais me porei em igualdade de circunstâncias... Mas agora apetece-me mudar de percurso, experimentar outras coisas, tornar a encher o tal repositório artístico.
É o início de uma nova fase?
Sinto que sim. O programa [O Programa da Maria] foi o primeiro grande dissabor profissional que tive. Ao mesmo tempo foi importante. Foi uma areia, que para mim é boa, na engrenagem: nem tudo é perfeitinho, empenou aqui alguma coisa.
Porque é que o programa não correu bem? A responsabilidade é da Sic, que não cumpriu o contrato e o retirou do prime-time? Contratualmente deveria ter mais uma série e estar em prime-time.
É um primeiro filho que nunca quis ter. Como não tenho nenhuma ânsia de protagonismo, «O meu programa, o meu não sei quê»... Essa ambição, que é a mola dos grandes protagonistas, não tenho. Fui-me deixando arrastar pelo processo. Havia coisas verdes e coisas que acho boas. O erro fundamental foi o seguinte: a estação comercial foi buscar-me, e eu não sou popularucha; por outro lado, não nos esforçámos, nem eu nem as Produções Fictícias, para ser mais abrangentes.
Deveria existir um compromisso?
Deveria. À distância, penso que sim. Mas não me envergonho, houve vitórias importantíssimas. Ir buscar aqueles actores, trabalhar com a equipa do Diamantino [realizador], com pessoas do cinema, todas da minha geração que encararam aquilo mais como um bombom do que como um trabalho.
As Produções Fictícias escrevem todos os seus textos. A Maria é sobretudo uma intérprete. Tem vontade de escrever os seus personagens?
Agora nem tanto. Os personagens mais conhecidos que fiz resultaram, quase, de um acto comum de criação. ia constantemente às Produções Fictícias e discutíamos, «Olha, tenho este sotaque, esta postura; que boneco nos pode surgir?» Alguns tiques, algumas expressões. Na Rosete, por exemplo, o «E tudo e tudo e tudo» é meu. Depois eles escrevem, de facto, o corpo do personagem. Não sei se tenho a disciplina de me sentar em frente a uma máquina e inventar tudo. Não sei se virei a ter. Nem sei se tenho a vocação. O que é bom com as Produções é que cada um sabe qual é o seu espaço. O sucesso é partilhado.
O programa não correu bem e Emídio Rangel foi para a RTP. Tem-se especulado muito sobre a sua transferência.
Obviamente o namoro existe, mas não sei que decisão tome. Sair da Sic implica deixar o Herman Sic. Tenho dois contratos, um com a Sic, que tinha a ver com o programa em prime-time – contrato que incumpriram; e outro que me obriga a três anos de Herman Sic. O Herman, que foi tão justo no momento em que fiz um programa sozinha, não terá agora de pagar pela minha ausência. Bater a porta será também bater-lhe a porta. Para mim, é o que está em causa. Como só falta um ano de contrato, e como só tenho 29, há um lado que me diz «Vai» e outro que me diz «Espera». Um ano, numa carreira, não é nada. Ainda. Como tenho o ano do teatro, um bombom artístico grande, acho que vou esperar.
Quando conheci a sua mãe, ela disse que você teria que fazer mais coisas – penso que se referia aos clássicos, aos gregos. Que não podia ficar como primeira palhaça a vida toda. Sente que é isso?
A minha mãe tem curiosidade, porque me conhece profundamente, em ver-me noutras coisas. Mas sabe que não tenho nem complexos nem pressa.
Ela desconsidera o lado cómico?
Não, adora.
A sua mãe era bonita?
Era lindíssima. Aquela beleza Grace Kelly, loura, olhos azuis. As minhas irmãs herdaram mais essa beleza.
Gostava de ser assim, profundamente bonita?
Acho que não. Deve ser um incómodo. Penso nisso muitas vezes. Seria como a angústia dos milionários e dos sexy-symbol: nunca se sabe se as pessoas nos admiram ou se admiram o nosso dinheiro ou se querem ir para a cama connosco. A Marylin, o que é que a levou ao suicídio? Se calhar nunca ter na mão a prova real de que a amavam, para lá do seu corpo.
A beleza, se fosse mais óbvia, podia ser prejudicial na composição dos personagens?
Também se passa o seguinte: a maior parte dos actores preferem-se a si às personagens. É muito comum em algumas actrizes, ainda que a personagem seja uma vendedora, porem uma bata, sim senhor, um avental, sim senhor, mas não porem o cabelo de forma a ficarem feias como a Dona Almerinda da praça. Isto não é ser-se actriz. Isto é ter-se ego e falta de noção do que é representar. Representar é estar em vez de, é ser a outra pessoa.
Portanto, não lhe custa aparecer feia?
Pelo contrário. Custa-me é aparecer Maria.
Porque no seu registo há uma espécie de raiva, «Posso não ter a beleza triunfante da Grace Kelly, mas posso ser todas as coisas». Uma pulsão de quase...
Vingança. Vem da tal ferida. E não escondo que se calhar vingo, quando faço de Bárbara Guimarães, por exemplo, o facto de ter sido «One of the boys» no liceu, de não ter sido nunca «A gira do liceu», de os homens lidarem comigo pela minha cabeça e não pelo meu corpo.
Quando teve a sua primeira menstruação contou a quem?
A todas as minhas irmãs, à minha mãe, foi uma festa! Finalmente também sou! Foi uma sensação de crescimento, de libertação.
E com os rapazes?
Houve amores impossíveis. Tive uma paixão assolapada no liceu por um amigo, que jamais pressentiu, «Ai que porreira que ela é, que disponível». Amor impossível, Tchaikovsky, «Morte em Veneza», essas coisas.
Nunca lhe contou?
Não.
A quem é que conta as suas coisas?
Tenho uma relação de profunda intimidade com a minha irmã Céu. À minha mãe. Ao meu namorado, neste momento. A Bola, o Monchique, o Herman, embora colegas, são amigos também; mas eles dizem que tenho um lado muito secreto... Gosto de reservar para mim os sentimentos mais obscuros.
Como é o seu dia?
Normal. Os dias de trabalho são dias de muitos cigarros e muito stress. Num dia normal acordo pelas dez, tenho aulas de corpo, (Técnica de Pilatos), e estou a pensar preparar o meu aparelho vocal para o teatro. Um bocado de televisão, teatro, cinema. As coisas que toda a gente faz. Depois, adoro ler, observar.
Para terminar voltamos à casa, essencial ao universo feminino que dissecámos nesta entrevista. Trata da casa?
Cozinho, trato da casa, adoro fazer arranjos de flores. Faço tricot. Menina prendada.
Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2001