Maria Teresa Horta
Portugal ainda é um país machista? É seguramente menos do que há 40 anos. É-o, em todo o caso. Dou-me conta disso se penso que a maior parte dos que estão a ler estas palavras – os leitores do Jornal de Negócios – são homens. Se penso que a maior parte dos que fazem negócios em Portugal são homens. Se penso que na lista dos mais poderosos da economia portuguesa, que este jornal elabora anualmente, as mulheres têm uma expressão residual. E antes que desandem e pensem que acordei feminista demais para vosso gosto, gostaria de dizer que, sim, é verdade que a directora deste jornal é uma mulher, a editora deste suplemento é uma mulher, esta que vos escreve é uma mulher. E sabemos que uma das pessoas mais poderosas em Portugal, a que ocupa o Ministério das Finanças, é uma mulher. Mas a pergunta que faço, que Maria Teresa Horta faz na entrevista, é a seguinte: e isto é assim em Trás-os-Montes e no Algarve?, está generalizado? Nenhuma carreira – nenhum projecto de felicidade – ficou pelo caminho para que estes homens (os leitores, os que fazem negócios, os poderosos) chegassem onde chegaram?
O mote da entrevista é outro, ainda que atravessado por este. É consensual que uma das mudanças mais contrastantes no nosso tecido social diz respeito ao papel da mulher. Hoje ninguém discute que uma mulher tenha formação escolar, tenha uma carreira (e faça de supermulher). Ainda se lembram – ou sabem – do tempo em que a mulher era uma sombra? Não é uma anedota, houve mesmo um tempo, e não é longínquo, em que ela precisava da autorização do marido para se ausentar. E não, não vos peço que levem o jornal para casa, para que as vossas mulheres ou as vossas filhas o leiam. Isto é evidentemente dirigido a homens. Melhor: a pessoas. Homens e mulheres. Porque aqui se fala de quem somos, de sociedade, de política, das condições que nos permitem ser isto e aquilo. Ou seja, de liberdade.
A poetisa e escritora Maria Teresa Horta destaca-se há muito na luta pelos direitos das mulheres. O seu discurso político é empenhado, categórico, sem virar a cara para o lado, sem espaço para a condescendência. Zero de atitude compromissória – essa coisa que abunda. A ela não a apanham a dizer: como passa vossa excelência? – se do outro lado estiver um membro deste Governo, ou o presidente da República. Zero de sorrisos. Recusou em 2011 receber de Passos Coelho o prémio D. Dinis, como é sabido. Zero de arrependimento.
Que é feito do sonho de Abril? 40 anos depois, olhamos para dentro de casa, e não só.
O que é que o 25 de Abril fez à sua vida?
Aquilo que fez à vida de todos os portugueses: virou-a dos pés para a cabeça. Viver em liberdade e ser uma festa completa, desde que se acordava e enquanto se dormia... É uma época tão jubilosa, de tanto entusiasmo, tanta esperança. Tanta crença no futuro. Tudo era cinzento e passou a ser rosa acre.
Rosa acre? Porquê?
Porque é a cor mais intensa. Era mais a rosa acre do que a rosa damascena. Quando me lembro do 25 de Abril, o que sinto é essa festa. Dava prazer ir para a rua em liberdade.
Com o que é que sonhou? Três coisas em relação às quais pensou: isto agora vai ser possível.
Agora vai ser possível fazer deste país outro país. (Era um país amordaçado, triste.) A mulher vai mudar a sua vida. E nós, jornalistas, não precisamos de ir mais à censura.
Como jornalista, lidava com a censura todos os dias.
Sempre trabalhei em jornais diários. Aquela coisa de o coronel cortar e de às vezes ainda termos que falar ao coronel porque queríamos que voltasse atrás... Era uma violência. Não se podia pôr uma palavra que não passasse na censura. Fechavam o jornal. Era um atentado diário. À integridade, à autenticidade. Eu trabalhava enquanto jornalista cultural, fazia entrevistas, aquilo que cortavam tinha a ver com literatura. E cortavam tanto quanto em artigos políticos.
Eram consideradas ideias subversivas e autores subversivos?
Sim. Quanto mais ignorante se fosse, melhor. Toda a gente sabe que quanto mais conhecimento, mais difícil é dominar e calar uma pessoa. E não havia censura prévia nos livros porque no início ligavam pouco à cultura, não se tinham apercebido do perigo. Nessa altura, estava com a Maria Isabel Barreno e a Maria Velho da Costa em tribunal.
O processo das chamadas Três Marias tinha rebentado em 71, depois de escreverem as Novas Cartas Portuguesas. Esperavam ir presas?
Claro. Não tínhamos ido presas porque tínhamos pago caução. Só faltava o juiz dar a sentença, estava marcado [o anúncio] para Maio de 74. Ele tinha ordem para nos prender. Mas havia em todo o mundo ocidental uma pressão enorme das feministas, e não só. Jornalistas, pensadores, estiveram connosco. Simone de Beauvoir, [Jean Paul] Sartre, Marguerite Duras, Christiane Rochefort.
Uma das coisas que mais mudaram nestes anos diz respeito ao papel da mulher na sociedade. Concorda?
O 25 de Abril foi maravilhoso para toda a gente, especialmente para as mulheres. As mulheres nem sabiam que tinham direito a ter voz. Eram a sombra do homem. As mulheres não tinham sexualidade, não tinham direitos, não tinham qualquer espécie de relevância na sociedade portuguesa. Todo o código de família – que depois foi mudado pelo Salgado Zenha – era uma coisa aterradora. O direito que tinha era dar opinião.
Estava escrito?
Estava. A mulher não podia sair do país sem o homem lhe dar autorização. Se o filho dos dois [quisesse sair], ele é que tinha que dar autorização. Porque ele é que mandava nos filhos. A mulher tinha o direito de discordar.
No espaço público, que direitos tinha? Tinha direito a votar?
Não. Só tinha direito a votar se fosse chefe de família, coisa que nenhuma mulher era, a não ser que fosse viúva. Ou então se tivesse um curso superior, o que nessa altura era bastante raro.
Quando é que as mulheres começam a votar?
Só depois do 25 de Abril. Nunca votei antes. Não acabei o meu curso. Voto com a maior das alegrias!, continua a ser uma festa tão grande. Foi uma luta minha. Luta que até hoje se mantém. Deram-se tantos passos atrás depois do 25 de Abril que já nem reconheço o 25 de Abril.
Desvirtuou-se assim tanto?
Sim, muitíssimo. Estão a tentar dar cabo de tudo o que conquistámos.
Concretize.
O Sistema Nacional de Saúde é uma macaqueação daquilo que tínhamos imaginado e daquilo que chegou a ser. Os direitos dos trabalhadores não têm nada a ver com aquilo que se tinha conquistado no 25 de Abril. A escola pública, que era um ideal e uma realização da Primeira República..., estão a fechar dia após dia. Já estão a dar dinheiro às escolas particulares. Nas aldeias tiram tudo, o correio. Coitadinhos dos velhinhos que têm de andar quilómetros para receber as pensões [na estação dos CTT mais próxima].
Quando é que o sonho se desvirtuou?
O sonho hoje é mesmo só sonho. Mantém-se a liberdade de ir para a rua manifestar. Mas pergunto-me se as pessoas não começam a ter medo. Essa é uma das coisas em que se recuou – o medo. Um medo que conhecia desde criança. Nasci no fascismo, vivi 30 e tal anos no fascismo. Sempre conheci esse abocanhar do medo em todas as pessoas que ia conhecendo. Falávamos ao telefone e sabíamos que estava a ser escutado. Houve uma altura em que a PIDE me bateu à porta, durante uns três meses, todas as semanas. Às seis da manhã. Ainda acordo de noite a ouvir baterem à porta.
As pessoas têm medo de que represálias?
De perder o emprego, é óbvio. As pessoas têm medo de dar a sua opinião porque têm medo de ficar desempregadas. Hoje em dia pode-se ir para a rua? Pode. E depois, como é, não há filmes? Eles não vão ver quem está? Essas pessoas são as primeiras a ficar desempregadas. As pessoas aceitam tudo, têm que viver. Quando temos um primeiro ministro que diz: “Não pode encarar o desemprego como uma tragédia, tem que encarar como um mudar de vida”, então, ele que mude. Vai para o desemprego e muda de vida.
Quando é que o sonho começou a ser desvirtuado? A crise dos últimos anos tem sido muito aguda. Mas é de agora?
Tem vindo a pouco e pouco a ser desvirtuado aqui ou ali. O grande declive tem sido nestes últimos anos.
Com uma marca ideológica?
Claro. Aquilo que estão a fazer, fazem porque queriam fazer. Estão a dar cabo deste país. Estão a abolir tudo o que era 25 de Abril. Como é possível que se acabem com feriados sendo um deles o 5 de Outubro? A República não é importante?
O 25 de Abril foi realmente um sonho e como tal era muito difícil que se mantivesse intacto. Aquele 1º de Maio foi uma coisa única em todo o mundo. Vir o povo todo para a rua, os políticos, todos de braço dado nas manifestações. É uma festa tão grande que alguma coisa teria de ser perdida. Uma coisa é o sonho, outra coisa é a realidade, e outra coisa ainda é o desmantelamento.
Passámos por uma fase intermédia? Isso corresponde também aos anos em que as pessoas se distanciaram da política? Há muito que as taxas de abstenção são altas. As pessoas não têm uma actividade cívica empenhada.
Levámos 50 anos a desaprender o interessarmo-nos pela política. A prática quotidiana do fascismo era essa: não podíamos nada. Não tínhamos que dar a nossa opinião. Íamos presos, éramos perseguidos, entravam-nos em casa. Quando nos sentávamos num café púnhamos a mão debaixo da mesa para ver se havia um microfone.
Depois da revolução, as novas gerações encontraram um país onde o essencial estava adquirido. Entretanto os mais velhos tinham desaprendido de intervir porque aquilo por que haviam lutado estava satisfeito.
Os mais novos encontraram uma sociedade aberta, ninguém os impedia de nada, era tudo possível. Podiam falar à vontade. Basta olhar os olhos dos jovens que estão em cursos de Comunicação Social. Quando se diz que cada texto, cada letra, tinha de ir à censura...
Qual é a reacção?
O que se vê nos olhos é incredulidade. Julgam que somos loucos. Como é que era então possível fazer um jornal diário? Era um horror, mas era possível.
Quando vou ao Brasil, depois do 25 de Abril, e ainda encontro uma ditadura [a ditadura militar terminou em 1985], sou convidada para uma rádio. Senta-se o jornalista à minha esquerda e à direita um senhor. Era um censor. Disse: “Isto nem no fascismo em Portugal”. Nenhum escritor se sentaria ao pé de um censor. Tem tão pouca consideração por si próprio um escritor que se senta ao lado de um censor... Ainda hoje não me sento ao lado de ninguém que esteja ligado à extrema-direita, que esteja ligado ao fascismo ou à censura.
Em 2011 recusou receber o prémio D. Dinis das mãos do primeiro ministro, Passos Coelho.
E este ano não aceitaria de ninguém deste Governo nem do Presidente da República, que é conivente com eles. Nem uma códea de pão, quanto mais um prémio. Não preciso de prémios, preciso de ter respeito por mim. Não posso ir para a rua gritar contra eles e depois, porque é um prémio, dar um sorriso e apertar a mão. Não posso! É uma questão de coerência. E de auto-estima. Não recebo nada desses senhores.
Qual foi a reacção que encontrou na rua, no seu bairro, nas pessoas à sua volta, depois dessa atitude?
Muito boa. No Facebook, centenas de pessoas muito animadas dizendo: “Ainda bem que há pessoas que continuam a ter dignidade, a agir conforme as suas ideias”. Mas houve uma mulher que pôs assim na minha página oficial: “Que pena, eu que a admirava tanto e a amava, agora desprezo-a”. Isto é muito português – os extremos. Mas achei muita graça. E gostava de conhecer a senhora. Eu desprezava-me a mim se tivesse aceitado o prémio.
Sabe que todos os idílios têm um período de corrupção inevitável. Imaginou este grau de corrupção do sonho?
Nunca pensei no 25 de Abril que isto pudesse acontecer. (Aquele Manifesto dos 74, eu assinei, queria assinar. Manifestos era o que fazíamos durante o fascismo, e era perigoso. E agora, qual é o passo seguinte, é ter medo de assinar?) Percebi que se estavam a dar passos atrás depois de 75, depois de [25 de] Novembro.
É militante de algum partido?
Não. Mas fui militante do Partido Comunista durante 14 anos. Antes do 25 de Abril, trabalhei com o PCP na clandestinidade, pertencia ao grupo de pessoas que davam apoio aos presos políticos. Com 19, 20 anos quis entrar no partido e a resposta foi que era muito nova.
Muito nova? Era uma resistência à sua origem de classe? É oriunda de uma família aristocrata. A Marquesa de Alorna, cuja biografia escreveu, As Luzes de Leonor, é sua antepassada.
Penso que a desconfiança era em relação à minha poesia. A poesia erótica ainda é uma coutada dentro da literatura a que as mulheres dificilmente têm acesso. Senti durante anos que havia um terreno movediço debaixo dos meus pés em cada livro que publicava. Depois do 25 de Novembro sou aceite no PC em duas semanas. Aí já havia uma abertura que tinha a ver com a democracia.
Se entrou para o PCP depois do 25 de Novembro, significa que sentiu que o PCP estava a perder terreno e que esse era o momento de dar força ao partido. Aquilo que preferia era que o PCP tivesse ganho o PREC, e não o PS?
Na altura, sim.
E hoje?
Saí do partido, não me puseram fora. Hoje continuo a achar que a democracia só existe por causa do Partido Comunista.
Contrariava a ideia de que o 25 de Novembro punha termo ao que podia ser uma ditadura vermelha?
Nunca acreditei nisso.
Saiu depois de 1989, depois do desmoronamento do muro e do mundo soviético.
Sim. Era chefe de redacção da revista Mulheres, editada pela Caminho, que era do partido [PC], e foi muito complicado. Eu faço muitas perguntas, quero ouvir respostas.
É um grande título: nada foi fácil porque faço muitas perguntas.
Sou uma perguntadora. Sou uma sonhadora da liberdade. Exijo muito da liberdade. E sou muito agradecida ao Partido Comunista. Não tinha havido militares de Abril se não tivesse havido um trabalho por trás.
Voltemos à dimensão política que a sua obra tem e nas suas repercussões. A publicação das Novas Cartas Portuguesas teve consequências (já falámos disso). Esta recusa de receber o prémio D. Dinis das mãos de Passos, o que aconteceria se ela tivesse lugar no antigo regime?
Não sei. Naquela altura não me vinham prender por isto, mas ficaria com mais uma pedra na minha vida. O que já acontecia comigo..., com as Novas Cartas Portuguesas, com o Minha Senhora de Mim [livro de poesia, 1967]... Quando publiquei o Minha Senhora de Mim, a minha editora, Snu Abecassis, foi chamada ao Moreira Baptista, que lhe disse: “Proibi o livro desta senhora. Se volta a publicar, o que seja, dela, fecho-lhe a casa”.
Snu tinha fundado a Dom Quixote dois anos antes, em 1965.
Sabia que não havia nenhum editor que me pudesse publicar. Como escritora estava arrumada. O que é que podiam fazer mais se me recusasse a receber um prémio das mãos do Marcelo Caetano? Nada mais do que me estava a acontecer.
No caso da recusa de 2011, quais foram as consequências?
Até agora nenhumas. Porque não dependo deles. Tenho uma reforma à qual tiram dinheiro, como acontece com milhares de pessoas nas mesmas condições. E porque vivemos em liberdade, e nessa altura vivíamos em fascismo.
Falemos novamente das grandes mudanças na vida das mulheres, daquilo que começou por apontar como um dos sonhos do 25 de Abril.
Pensei que a mulher pudesse, em Portugal, ter o estatuto que agora tem: um ser humano com plenos direitos. A Constituição reconhece a igualdade entre o homem e a mulher. Mas isso corresponde à verdade? Não.
Temos uma base legal que nos protege mas a realidade não corresponde, é isso? Porquê?
Porque, mesmo que se faça uma revolução, como se fez em Portugal, a mudança de mentalidades é muito lenta.
Aqueles que nasceram na década de 70, nasceram com um novo país. A sua mentalidade ainda tem muito desse passado penalizador das mulheres?
Tem. São filhos desse passado, os pais continuam a ser pessoas que viveram nesse passado. E as mentalidades têm séculos. Os homens continuam a matar as mulheres neste país. As mulheres têm o mesmo trabalho que os homens e têm salário desigual. As mulheres não estão à cabeça das empresas, dos jornais, no Governo.
Neste momento o Jornal de Negócios e o Público têm duas mulheres directoras, Helena Garrido e Bárbara Reis.
Isso só, muda?
Já é uma mudança. E são dois jornais de referência.
A cultura, a leitura, levam as pessoas a mudar. O próprio jornalismo leva as pessoas a mudar. A minha pergunta é se encontra isso no país inteiro. Se encontra essa mudança em Trás-os-Montes, no Algarve. Olha para o Governo e é um desastre de mulheres.
Mas olhamos para as universidades e são mais as mulheres do que os homens.
Isso é diferente. E as meninas são sempre as melhores das turmas. Depois, saem da universidade, e são elas as primeiras a ser empregadas? Não, não são.
A equação das mulheres que têm agora 30, 40 anos é a conciliação da família e da carreira? Isto não era posto assim há uns anos, era evidente que primeiro estava a família.
O que está viciado é já a pergunta. Por que é que não se faz essa pergunta aos homens? A mulher é que continua a ter que optar entre a sua vida profissional e a sua carreira. Todos temos na cabeça que para a mulher a família é a coisa mais importante.
E isso é válido para todas as gerações?
É. Mesmo para as mais novinhas. As mulheres continuam a cumprir aquela frase portuguesa que ainda não encontrei em mais sítio nenhum: “São mais que as mães”. Não há mães sem pais.
O que essa frase quer dizer é que, na cabeça das pessoas...
... a primeira função da mulher continua a ser família. “O meu marido ajuda-me muito”. Ajuda? Onde é que está escrito que quem faz o trabalho doméstico são as mulheres? Enquanto se achar que o homem ajuda, e que já é maravilhoso [que ajude no trabalho doméstico]… Enquanto se disser que os homens já tomam conta dos filhos... E depois, não são filhos deles?
E neste momento estamos a regredir. Os passos que demos para diante, mais de metade já demos para trás.
Regredimos no sentido em que as mulheres são as mais penalizadas? São consideradas o elemento mais frágil. Se a criança fica doente, é preciso ficar em casa a tomar conta. Normalmente é a mãe.
Com certeza. Ela é aquela de quem os patrões prescindem mais facilmente. Esse peso continua a existir em cima da mulher. Por isso fazem perguntas que não fazem aos homens. “É casada?, pensa ter filhos?”. Uma amiga da minha nora foi a uma entrevista de emprego; quiseram ver a carteira, se estava arrumada. Alguém pede a um homem para ver a arrumação da mala do carro, o que tem nos bolsos?
Fomos engolidos pelo critério economicista? E aí não somos só nós, Portugal. E não são apenas as mulheres, ainda que estas possam estar no ponto mais vulnerável da cadeia. Estamos numa espécie de disfuncional mundial.
Sim. Quando me vêm perguntar se ainda sou feminista, se ainda há necessidade... Nem respondo. As pessoas acham que já fizemos imenso. Votamos, não apanhamos todos os dias. E a sexualidade, acha que as mulheres são tão felizes assim na sua sexualidade? Ainda há montes de preconceitos em relação às mulheres.
A maneira como a sexualidade ocupa o espaço público nos últimos 40 anos mudou muito.
Antes do 25 de Abril, a mulher não tinha sexualidade. Agora tem.
Vulgarizaram-se as relações sexuais antes do casamento. A publicidade, a televisão são muito explícitas nas mensagens de conteúdo sexual.
A publicidade é péssima, andou quilómetros para trás. Uma pessoa vê coisas na televisão hoje que não se viam antes do 25 de Abril.
Lembra-se daquele título do Jornal de Notícias, o ano passado: “Ministra foi mostrar o buraco”? Referia-se a Maria Luís Albuquerque e à situação das finanças do país.
Isso não se diz de um homem.
Talvez os autores percebessem o que fizeram se aplicassem a expressão à sua mãe ou às suas filhas.
Aí, sim. As mulheres são sempre respeitadas particularmente. A mãe e a filha são sagradas. E des-sexualizadas. Fiz um livro chamado A Mulher na Literatura Portuguesa. Um escritor tinha escrito um texto sobre a mãe e dizia que a mãe não tinha corpo e não tinha cheiro. As coisas que a mãe tem mais! Ainda hoje me lembro do cheiro da minha mãe.
Como é que o descreveria?
Louro. De uma pele branca. Foi até aos 90 anos linda de morrer. A minha mãe era parecida com uma árvore.
Que palavras imagina que os seus netos, o seu filho e o seu marido diriam imediatamente de si, como disse da sua mãe que era parecida com uma árvore?
Cada um diria a sua coisa. O meu filho, não faço ideia. O meu filho é da condição do sonho, dos anjos. Está lá por cima. Os meus netos são muito diferentes. Pensavam em poesia. O Tiago diria: “A minha avó é poesia”. O Bernardo [falaria de ] determinação. É a imagem que têm de mim. E o Luís [marido], também.
É um casamento longo.
O que é que pensa um homem apaixonado há 50 anos por uma mulher que também está apaixonada por ele há 50 anos? Todos os dias faço poesia de amor por ele. Há dois dias ele disse uma coisa a que achei muita graça: “Pára de bulir, só um bocadinho”. É uma palavra linda. É a ideia que as pessoas, as minhas amigas, têm de mim. A permanente agitação, a permanente desobediência.
É o seu carácter insubmisso.
E sou muito determinada. Quando me proíbem, incandesço.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014