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Anabela Mota Ribeiro

Mariana Vieira da Silva

24.11.15

Mariana Vieira da Silva é socióloga. Está a fazer um doutoramento em Políticas Públicas no ISCTE. É membro da direcção do gabinete de estudos do PS e membro da comissão política.

 

Um verso de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. O problema é que viver é preciso. Quais são as dificuldades concretas do viver que acha mais preocupantes em Portugal?

Toca-me o que julgo ser, não a dificuldade mais concreta, mas a mais gravosa: esta sensação de que uma parte significativa dos portugueses, quando olha para o seu futuro, tem dificuldade em imaginar, e em ambicionar, uma vida melhor do que a vida que tem. Esta concepção de que o progresso não nos trará crescentes níveis de mobilidade social é destrutiva. Alimenta populismos, sedimenta o alheamento face à democracia e instituições e banaliza esta ideia de que, no fundo, não merecemos mais.

 

Há 40 anos tivemos um Verão Quente, com o país a rasgar-se. Que lhe contaram os seus pais sobre esse tempo?

Nasci quatro anos depois do 25 de Abril, e os meus pais eram militantes do Movimento de Esquerda Socialista (MES). Aqueles anos, na minha memória afectiva, reconstruída a partir das histórias familiares, são anos muito mais marcados pelas ideias de liberdade e participação, por essa coisa magnífica de se desenharem programas políticos alternativos, de se fazerem listas às eleições, de se estar horas à espera de votar do que por qualquer rasgar. Anos de tantas possibilidades, depois de décadas de impossíveis. O Sérgio Godinho antecipou, em 1972, o que se seguiria: “E a sede de uma espera só se estanca na torrente”.

 

Vamos aos gregos: diz o guerreiro Aquiles ao rei Agamémnon, na “Ilíada”: “Ah, como te vestes de vergonha, zeloso do teu proveito”. Os portugueses estão divorciados dos políticos? Que parte ocupa neste divórcio a acusação ou suspeição de que são corruptos (demasiado zelosos do seu proveito...)?

Os portugueses vivem pior do que viviam há quatro anos, e há quatro anos viviam pior do que viviam em 2008. A democracia, o Estado de direito, a confiança nas instituições não se constroem no vazio. A minha geração, mas principalmente a dos que hoje têm menos de 30 anos, é a primeira que vive sem a expectativa de que vai viver melhor que a dos seus pais, sem a certeza de poder proporcionar aos filhos as mesmas oportunidades que a geração dos meus pais pôde proporcionar aos seus filhos. Todos estes factores ajudam a criar a ideia de que os políticos são todos iguais, ou que não fizeram nada por nós.

 

Na sua opinião, não são todos iguais. Dizer que são abre portas a populismos?

Podemos continuar a acumular sucessivas medidas para reforçar a transparência e moralização, pelo exemplo, da classe política. Mas estamos sempre a tentar vazar a cheia com um balde de praia. E estaremos a criar um caminho repleto de perigos: o de que um destes dias ninguém queira, podendo escolher, ser político.

 

À esquerda e sobretudo à direita, disse-se que Portugal tinha vivido acima das suas possibilidades e que era preciso aprender a viver de outra maneira.

A maioria actual chegou ao poder com um discurso, que considero mistificador e simplista, sobre as razões que nos trouxeram à actual crise: o famoso “vivemos acima das nossas possibilidades”, colectiva e individualmente. E governou em função desse discurso, ampliando-o. Uma parte da sociedade portuguesa assumiu-o [como verdadeiro]. Aprender, aprendemos sempre. Aprendemos que respostas construídas a partir de diagnósticos errados vão originar sempre soluções erradas. E aprendemos também – e este talvez seja um dos poucos ganhos – a questionar, como nunca antes havíamos feito, os programas, as promessas feitas nas eleições.

 

O que é que não fizemos nestes quatro anos e devíamos ter feito? Refiro-me às grandes reformas falhadas.

Mais do que grandes reformas falhadas julgo que podemos identificar dois erros fundamentais. Foi aprofundada uma tendência para desenhar políticas públicas com base em diagnósticos incorrectos ou em mitos. Estes mitos vão sendo alimentados recorrendo quase sempre a uma ideia de “culpa”, mas também baseados na ideia de que a má gestão é um exclusivo do Estado.

 

O segundo erro.

Esta voragem de destruição das políticas do passado. Esta obsessão fez com que interrompêssemos políticas públicas fundamentais, como as de aposta na ciência e na educação, ou a reforma dos cuidados de saúde primários.

Temos que ser capazes de construir objectivos comuns que sirvam de base às políticas públicas, e temos que saber baseá-los em informação, em conhecimento, em experiência.

 

Atravessamos um deserto em que todos sabemos o nome do ministro das Finanças alemão ou grego. Antes de mais: considera que é um deserto?

A política em boa parte foi engolida pela finança, mas isso não significa que vivamos um tempo despojado de ideologias. Pelo contrário. Há uma ideologia que se revelou mais forte, que ganhou força para que o seu discurso passe como se retratasse o curso natural das coisas. Como se fosse um discurso neutro e puramente técnico. Não é.

 

Demasiada conversa e negociação? Selvajaria e domínio dos mais fortes sobre os mais fracos? É tempo de quê?

Defendo, radicalmente, que nunca há demasiada negociação. O presidente Obama foi há poucos dias ao Daily Show e o que nos apresentou foi um curso acelerado sobre como a política se constrói a partir dessa ideia de conversa e negociação. Avanços. Que, passo a passo, têm a capacidade de transformar o sistema de saúde americano ou controlar o programa nuclear iraniano.

É um pouco dessa cultura que nos falta.

 

O futuro passou a ser uma ameaça, evitar o perigo uma divisa. É mesmo assim? Quando foi a última vez que usou a palavra esperança?

Uso a palavra esperança com frequência, porque a vontade de que as coisas mudem para melhor vai suplantando o pessimismo que resulta da realidade à nossa volta. A palavra que nos vai faltando é alternativa. Precisamos de alternativas mais convencionais, mais revolucionárias, mais de esquerda, mais de direita, mais ou menos progressistas.

 

Férias de Verão: dê-me uma recordação das férias de quando era criança. São um dos seus maiores tesouros?

As férias de Verão intermináveis que ouço descrever a tantas pessoas são um mistério insondável para mim. Fui nadadora de competição e, desde muito pequena, treinava até ao final de Julho, duas vezes por dia, para tirar partido das férias escolares e preparar os campeonatos nacionais. Aqueles treinos às 7.00 da manhã na piscina dos Olivais são dos meus maiores tesouros (gelados).

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2015