Mário Soares (2005)
Esta entrevista é parte do livro "Mário Soares - O que falta dizer", editado em 2005 pela Casa das Letras. O livro resultou de um repto lançado por Mário Soares a Anabela Mota Ribeiro, Elsa Páscoa e Maria Jorge Costa. A ideia era, através de uma longa entrevista, percorrer áreas como a política, o internacional e a cultura, para dar a conhecer o seu posicionamento e reflexões acerca das mesmas.
A despeito do momento em que a entrevista foi realizada [eleições presidenciais], assumiu-se desde o princípio, e com acordo das partes, que a conversa deveria ser absolutamente livre, independente, aguerrida, e que nunca assumiria um tom panfletário - nem nas perguntas, nem nas respostas.
Nas duas primeiras sessões, o político e candidato respondeu às interpelações das três jornalistas; as sessões seguintes ocorreram em separado. Foram no total cinco encontros, 15 horas de conversa, realizados entre 30 de Outubro e 5 de Novembro, repartidos por diferentes espaços: a casa de fim de semana, em Nafarros, e a Fundação Mário Soares, na Rua de S. Bento, em Lisboa.
A entrevista que se segue foi conduzida por AMR.
No final do nosso primeiro encontro mostrou os livros da casa de Nafarros, e a casa contígua que serve, exclusivamente, para guardar livros. Num outro encontro, na Fundação, mostrou também os livros e os quadros. Para que serve ler tantos livros e ter tantos livros?
Tenho no conjunto uns 50 mil, 60 mil livros. Não tenho a pretensão de os ler todos, mas sei onde estão, porque é que os comprei, de que é que tratam. Li os índices, li as pestanas para ver o que é que diziam. Tenho curiosidade pelos autores. Estão ali num sítio onde eu sei que posso ir quando me apetecer, ou quando precisar. Uma grande biblioteca, bem arrumada, tem que ser arrumada pelo próprio; porque arrumar livros é uma maneira de arrumar a própria cabeça. Neste momento estou a refazer a minha biblioteca. Esta biblioteca é da Fundação, doei-a à Fundação_ portanto, não conta. No meu espírito, já não é minha. A minha biblioteca é a que tenho em casa, quer em Nafarros, quer na casa do Campo Grande.
Dá todo o tipo de livros?
Por exemplo, toda a biblioteca jurídica, tirando o Direito Constitucional, um pouco do Direito Criminal e do Direito Público, dei tudo.
Não precisava desses livros?
Dei baixa na Ordem dos Advogados desde que vim para Portugal. Acho que o advogado defende interesses privados e o político defende interesses públicos. No meu espírito são coisas incompatíveis. Não estou a criticar quem as fez, quem se manteve advogado e político, mas estou a dizer que achei mais transparente ir lá fazer aquilo.
Imagino que a reorganização da biblioteca esteja suspensa...
Antes de tomar a decisão de me recandidatar estava a reorganizar a biblioteca. Resolvi alugar o andar por cima do meu, onde moro há 60 anos. O andar de cima tem um grande terraço, e, por intermédio do meu amigo Ribeiro Telles, estou a fazer um jardim suspenso. É uma coisa que vai ficar linda! Uma casa inteira onde não tenho mais nada, só livros e quadros, e onde estou a instalar a minha biblioteca. Fiz uma arrumação de acordo com o meu próprio critério. A política de um lado, a história do outro, a história de Portugal num lado, a história de certos países que me interessam especialmente, como a Espanha e o Brasil, em secções separadas. A religião, as artes, a literatura portuguesa, a literatura de outros países, a literatura clássica. Lá em cima tem também um escritório, (além do escritório da casa onde moro), onde tencionava escrever os tais livros de que falei. Mas agora isso está interrompido, dados os afazeres que tenho.
Que trabalhos tinha em mão?
Estava a fazer estudos sobre as pessoas que conhecia em Portugal, uma biografia do Salazar que comecei a magicar, um livro sobre os grandes vultos que conheci, o Mitterrand, o Willy Brandt, essas pessoas, uma reflexão sobre conversas que tive com eles, etc. Tenho que voltar a isso, assim que tiver tempo. Tenho que voltar a reflectir sobre o que foi isto tudo desde 1974. É uma coisa importante e eu tenho uma contribuição directa que mais ninguém tem. Conheci as pessoas, falei com elas, sei como é que se passaram as coisas. Tenho uma versão; não quer dizer que seja a versão verdadeira ou que as outras são falsas. Não é isso que estou a dizer, porque sei bem que a memória, às vezes, é traiçoeira, é selectiva. A memória tem a ver com a emotividade, como se sabe. Há coisas que ficam porque nos marcaram e há coisas que se apagam da memória. Muitas coisas desagradáveis, tendo a esquecê-las, não me vêm.
É fascinante o processo da memória, perceber como é que resgata umas coisas e não resgata outras. E é um processo autónomo, é lá com ela.
Quando eu era estudante de Filosofia, estudei Psicologia. Um dos exemplos que os professores davam, vinha em todos os manuais, era este: um cidadão entrava numa aula, desconhecido, dizia umas palavras desagradáveis e simulava uma briga com o professor. Depois pedia-se à classe para explicar o que tinha visto. Cada um tinha visto a cena da sua maneira. Isto é a prova de que a memória é selectiva, mesmo quando é imediata. E que é emotiva também. Havia aqueles que tomavam logo o partido do professor, outros que achavam graça ao tipo ter entrado da maneira que entrou, etc. Por isso é que os testemunhos são importantes, mas os historiadores do futuro têm que confrontar os diferentes testemunhos e fazer a história como eles a entendem.
Tem com os livros uma relação por vezes romântica. Na sua juventude, ser escritor, ser ficcionista, era um sonho.
Era um sonho.
Todavia, os livros políticos, aqueles que dizem respeito ao correr da história e que são do domínio do factual, ganharam predominância...
Sim, mas se vir os livros que escrevi, são sempre testemunhos. Desde o “Portugal Amordaçado”, que escrevi no exílio e que foi um livro importante naquele momento histórico. Ninguém conhecia o que se passava numa ditadura como a nossa e esse depoimento ficou, as pessoas recorrem a ele. Até à maneira como fui participando na vida pública, sempre escrevendo, ou para os jornais, ou ensaios, ou conferências, ou livros. Fui sempre pontuando a minha actividade com livros de reflexão, que estão por aí.
Insisto: são livros-testemunho, não são livros de um ficcionista... Que era a sua primeira ideia.
A minha ideia era ser ficcionista e sou ficcionista ainda hoje. Tenho uma tendência para estar num café, por exemplo, entra um casal, começam a falar e imagino o que é que podem estar a dizer, quais são os acordos e desacordos, como é que se entendem, etc. É a tendência pura do ficcionista. Também lhe digo uma coisa, não tome como vaidade, que eu não sou vaidoso, sou até bastante crítico em relação à minha pessoa: há um tipo de inteligência, que têm os políticos, os pedagogos e os romancistas, a que Pascal chamava “l’esprit de finesse”,
O que distingue esse o seu tipo de inteligência?
“L’esprit de finesse” é uma inteligência de tipo intuitivo que capta aquilo que os outros dizem e a entendem em termos profundos e não aparentes. Muitas vezes as pessoas servem-se da palavra para esconder o seu próprio pensamento. Servem-se da palavra para fingir o que não são ou para esconder o seu pensamento. E eu, realmente, sempre tive essa capacidade de perceber as pessoas, homens e mulheres. Muitas vezes, éramos jovens, a minha mulher e eu, e íamos a casa de um casal amigo. E a minha mulher vinha e dizia: “Ah, aquele sujeito nosso amigo dá-se tão bem com a mulher, é um casal encantador”; e eu dizia: “Isso é a aparência, vais ver que não é o que existe”. E de repente, havia um divórcio, havia uma separação e as pessoas ficavam muito espantadas!
E o senhor não ficava nada!
Nada! Isso é um exemplo, mas podia dar-lhe mil exemplos dessa natureza.
Essa agudeza, essa finesse, aprende-se?
Não se aprende, é uma coisa inata, acho eu. Há muitas espécies de inteligência, eu tenho algumas mas não tenho outras. Há a inteligência abstracta, dedutiva, dos grandes matemáticos, dos juristas, de alguns filósofos. Sou relativamente pouco dotado desse tipo. Depois, há a inteligência mecânica, das pessoas que têm a capacidade de perceber os mecanismos das máquinas; são curiosos de saber como funcionam os diferentes tipos de máquina e de técnicas. Eu não tenho esse tipo de inteligência, também. Depois há aquelas pessoas que têm uma memória para os números extraordinária, que fixam sem esforço os números de telefone, são capazes de perceber muito bem e rapidamente as diferenças dos números, as fraudes de conta, etc. Eu não tenho esse tipo de inteligência. Tenho dificuldade em lidar com números, faço frequentemente confusões, brincam comigo a esse respeito.
Diz que com à vontade que não tem diferentes tipos de inteligência...
Quando é preciso fazer contas complicadas, tenho dificuldade. Nunca pego naquelas maquinetas de fazer [contas] porque tenho uma certa incapacidade de lidar com máquinas. Tirando a máquina de escrever, uma Hermes Baby que tive quando estive no exílio_ não tinha ninguém e tinha que escrever muitas cartas, muitas coisas, e aprendi a escrever com dois dedos.
Como é que reagiu aos computadores? Não muito bem, imagino...
Nunca fui uma pessoa que me agarrasse aos computadores, a esse tipo de coisas. Se é preciso meter o DVD, tenho dificuldade em meter aquilo bem. Peço sempre à minha mulher ou aos meus netos. Mesmo a procura dos canais, irrita-me se não apanho à primeira. Tenho esse tipo de dificuldades. Pelo contrário, sou um curioso da vida e sou, sobretudo, um curioso das pessoas.
Fotografa imediatamente quem tem à frente?
Sim, e não julgue que isto é uma pretensão. Conheço as pessoas não só pelo que dizem. Penetro nas pessoas e consigo perceber os mecanismos psicológicos que as movem.
Isso é válido para qualquer pessoa?
É válido para os amigos e para os inimigos. E, por isso, nunca tive grandes surpresas em política. Nunca fiquei muito surpreendido com algumas coisas que me apareceram na política, nem muito indignado, porque previ-as com bastante antecedência.
Então, não é fácil traí-lo. Porque percebe as pessoas e pressente a traição...
Nunca me queixei de traições por isso mesmo: pressenti-as a vir.
Essa sageza, essa agudeza, nasceu com ela?
As aptidões intelectuais podem-se estimular e podem-se desenvolver. A escrita... Eu escrevi sempre com facilidade; o que, cheguei à conclusão, era mau para um escritor. Porque um escritor deve castigar a prosa, deve rever, rever, rever. Veja os textos originais que nos chegaram do Eça de Queirós, ou do Camilo, e veja como eles reviam. O próprio João de Deus, que tem aquela poesia tão cristalina, “Um beijo na face/pede-se e dá-se/dá”, parece que é uma coisa que saiu assim... Não saiu, foi tudo refeito e rescrito. O ofício das letras, além de uma arte é um ofício. Um escritor precisa de estar todos os dias na sua banca de trabalho, com a volúpia da escrita, de encher o papel em branco, dantes era pela caneta, agora é pelo computador, tanto faz, é mesma coisa.
Mas o que é que se aprende nos livros? Existe em si uma aptidão natural para entender as pessoas. Mas ela pode ser exercitada, aperfeiçoada nos encontros que a vida proporciona. E nos livros também. Queria perceber como é que a sua vida foi enriquecida, moldada pelo encontro com os livros e a arte.
Houve livros que me marcaram em diferentes gerações. Tive a sorte de ler os grandes romances da literatura mundial muito jovem, quando estava preso. Enquanto alguns fabricavam uma espécie de baralho de cartas para jogarem às cartas, cartas que fabricavam com pedaços de papel, porque não eram permitidas cartas dentro de uma cela, eu passei a vida a ler. E a ler quase só romances.
Lia-os em francês?
Lia-os em francês, em português e em espanhol_ são as três línguas que leio sem dificuldade. Por exemplo, li a “Guerra e Paz”, li os “Thibault”, li a “Alma Encantada”, do Roman Roland, esses grandes romances que levam um mês a ler. Li “Os Irmãos Karamazov”, do Dostoievski. Li os americanos, o Wolfgang Sinclair, que é hoje um escritor esquecido, mas que teve uma influência extraordinária nos anos 50.
O “Quixote”, leu?
Claro que li. Não li o “Quixote”na cadeia, mas a grande literatura, li-a toda na cadeia. Quando estava no isolamento, e estive várias vezes no isolamento... O isolamento é estar fechado numa cela única, sem ninguém. Ao contrário do que pode parecer, não sofria muito com o isolamento.
Com o que é que entretinha a sua cabeça?
Com a minha cabeça. E lembro-me de uma vez, em Caxias, havia celas colectivas e celas isoladas, e estive nas duas. Na cela colectiva, tive experiências interessantes; havia os presos políticos e havia os presos comuns, às vezes misturavam-nos. Um belo dia, certamente para me humilharem, entenderam meter-me numa dessas celas, em que estavam 20 e tal numa sala deste tamanho, com beliches de três lugares. Quando estava metido com presos políticos, ou nos conhecíamos pessoalmente ou sabíamos quem éramos; portanto, era fácil a convivência. Dessa vez, perante os [prisioneiros] comuns, fiquei numa situação difícil porque ninguém me conhecia. Alguns eram facínoras puros, outros eram uns malandros. Aquilo era uma sala grande, tinha uma espécie de retrete... As retretes são as coisas mais nojentas que há nas cadeias.
Para começar, há uma total falta de privacidade para momentos íntimos...
Em tudo. O chefe de cela disse-me: “Entraste agora, és tu o escalonado para limpar a retrete!”. Não é fácil a um tipo que nunca limpou uma retrete, que já era advogado, enfim, e que não fosse...
Era um menino de família.
Tinha sido um menino de família, tinha sido professor, tinha estado preso várias vezes. E de repente, um tipo diz-me: “Limpa a retrete”, com aquele ar desafiador... Percebi que estava num mundo hostil e que tinha que dominar aquele mundo. Limpei a retrete, não há dúvidas.
Sentiu-se humilhado, furioso?
Nem furioso, nem humilhado. Pensei assim: estou numa situação horrível, tenho que a suportar, e tenho que dar a volta, senão estou destruído. A minha reacção foi esta.
Eu estava a tentar perceber como é que fica perante o horror.
Eu sou colérico em relação às coisas pequenas. Se me falta um lápis, se não vejo um livro que não encontro, começo a dizer às minhas secretárias: “Onde é que está isto?” Mas nas coisas graves percebo que tenho que fazer frente à situação. Então, não só limpei a retrete, como depois comecei a falar com eles e a tentar percebê-los, as divisões e os ódios que existiam entre eles, as conflitualidades. Posso garantir-lhe que foi a única vez que limpei a retrete, porque depois todos eles se ofereciam para me limpar a retrete.
O que é que lhes dava em troca?
A partir de um certo momento, eu era o chefe real da cadeia. Porque era a única pessoa que se interessava por eles. Comecei a falar com eles e a tentar entender um por um. Era uma coisa que ninguém fazia.
Isso era o que dava em troca, respondendo à minha pergunta?
Foi o que comecei por dar. Mas o meu grande sucesso foi o seguinte: estava lá um francês, que era meio tonto, tinha entrado porque tinha tido uma visão de Fátima; entrou clandestinamente em Portugal, passou a Espanha, porque queria vir a Fátima. Por sinal estava no beliche em baixo do meu. Falava muito mal português e eu falava com ele meio em francês, meio em português, para nos entendermos bem e para que os outros também entendessem e não desconfiassem. Estava lá há seis meses, tinham-se esquecido dele. E eu disse-lhe: “Porque é que não escreves uma carta ao cônsul francês em Portugal?” Ele nem sabia que isso era possível! Eu fiz-lhe uma carta, que ele depois copiou como uma letra muito hesitante; assinou-a, entregou-a e mandou-a. Dei-lhe o dinheiro para os selos.
Teve resultados?
Por mais estranho que pareça, uma semana depois, aparece o cônsul a visitar o homem. E o homem foi libertado. Imagina o que isto significou na minha cela? A partir daí, fui o procurador daqueles tipos todos. E depois, claro, eu tinha cigarros. Dizia à família: “Mandem-me cigarros em quantidade”, e a minha mulher: “Mas tu quase não fumas, para quê é que queres tanto cigarro?”. E mandavam-me bolos, que eu distribuía por toda a gente. Os tipos perceberam que eu era diferente deles e começaram-me a tratar da maneira que era devida, sem que lhes tivesse pedido nada. Considerei que isto foi uma das experiências mais ilustrativas na minha vida.
Porquê?
Porque fui posto à prova e consegui reagir bem. A prisão é uma escola fantástica para quem resiste. É a melhor das universidades. E a prisão é a destruição total de um homem para quem se deixa abater. De um homem ou de uma mulher.
Não há nada que o deite abaixo?
Naturalmente que há. Tenho tido grandes tristezas. A morte do meu pai e a morte da minha mãe afectaram-me muito, bem como a morte de amigos. A morte é um fenómeno com o qual convivo mal. Sei que a morte faz parte da vida, mas convivo mal com ela. Quero afastar essa ideia para longe.
Nunca pensa na sua morte?
De vez em quando passa-me pela cabeça: “Quando cá não estiver, o que é que hei-de fazer?”. A crença é realmente um grande conforto para aqueles que acreditam. Mas é difícil acreditar. Pensar que há um Deus, que somos feitos à sua semelhança, que sente o que nós sentimos e que pode ser até antropomórfico, é uma coisa que não entra no meu espírito. Nunca entrou. Por isso sou racionalista e agnóstico. E também não acredito, dada a evolução das espécies, dado o que já sabemos cientificamente da nossa vida, também não acredito na outra vida. As pessoas que acreditam têm esse grande estímulo: estão a trabalhar para poderem estar na outra vida e serem recompensados na outra vida. Eu não acredito na imortalidade. Mas acredito na memória, na memória histórica.
Até determinado momento das nossas vidas, acreditamos que somos imortais.
Nunca pensa na morte?
Não penso na morte [tenho 34 anos].
É normal.
A partir de que momento é que passou a equacionar, ainda que querendo pô-la ao longe, a ideia da morte.
Não é uma coisa que me preocupe muito. Ainda estou convencido de que tenho uns anos para viver. De maneira que tenho protelado isso e dito: “Bem, já passei esta barreira, vou passar certamente outras, na altura própria vou pensar nisso”. Mas a eternidade é para mim uma coisa dificilmente concebível.
Há pessoas perto de si profundamente crentes. A sua mulher, por exemplo.
A minha mulher era completamente agnóstica como eu. Mas quando o João teve aquele desastre e esteve à morte, ela chegou lá primeiro. Eu tinha partido naquele dia para uma viagem oficial que não podia de maneira nenhuma anular. Estava tudo combinado, uma viagem presidencial é sempre uma coisa difícil de organizar.
Imagino que seja uma dilaceração, ter um filho à morte e ter de cumprir deveres oficiais.
E que morte. Tecnicamente ele deixou de respirar duas vezes durante o avião que o levou de um sítio para o outro, foi o boca a boca que o despertou... A minha mulher chegou lá, deparou com um médico muito simpático, sul-africano de origem holandesa, mas de fala inglesa, que era muito religioso. Quando chegou e viu o filho naquilo, uma papa, todo partido, e o médico lhe disse: “Há dez por cento de probabilidade de ele se salvar. Reze, reze”, a minha mulher converteu-se, e rezou. Era tão difícil para ela conceber a morte do filho, que era uma pessoa cheia de vida, cheia de alegria, cheia de tudo, que se converteu naquele momento. Desde aí ficou a ser crente. Em minha casa só ela é que é crente. Os meus netos não são, os meus filhos não são, nem a minha filha nem o próprio João.
É extraordinário o próprio não se ter convertido.
Há uma história muito bonita, que já contei. Quando lá cheguei, ele ainda estava em coma. Dois dias depois, saiu do coma e escreveu, (ainda não podia falar, estava todo entubado), “thank you”, para o médico. O médico olhou para aquilo e respondeu-lhe: “Agradeça a Deus, que foi um milagre”, e ele voltou a escrever: “Agradeço ao senhor doutor, porque não acredito em Deus”! É preciso ter coragem, naquele momento, para fazer uma declaração daquelas.
Isso fá-lo sentir orgulho?
Tenho orgulho nos meus filhos e nos meus netos, isso tenho. Porque é gente muito bem formada, de primeira qualidade.
Sim, mas a coragem, essa têmpera, deixam-no muito satisfeito. Seria ignominioso ter um filho ou alguém muito próximo que fosse pouco valente?
Era inimaginável. A minha filha também é muito valente. Têm ambos uma personalidade muito forte, muito contrastada, apesar de serem muito amigos e terem discussões. Os meus netos, também. Enfim, nós somos uma casa onde se discute muito, sempre.
É sinal de vitalidade, não é?
Já na casa do meu pai era assim. Eu era praticamente filho único. Os meus dois irmãos tinham mais 17 e 18 anos, e eram só meus meios-irmãos. Um era filho do meu pai e outro da minha mãe. Havia um ambiente muito político. O meu pai era um homem político, além de ser um pedagogo. Publicou muitos livros escolares, de história universal e de geografia. Entendia muito bem as pessoas, era de uma grande humanidade e deixou muitas recordações nos seus alunos. Por exemplo, os Pupilos do Exército, mais de 60 anos depois de terem sido alunos do meu pai, já o meu pai tinha morrido, fizeram um almoço comigo. Passaram uma manhã a contar histórias divertidas do meu pai, que os tinha marcado a todos. Fiquei deslumbrado com aquele almoço.
Foi o exemplo que mais perseguiu a vida toda, o do seu pai? Tem, como o seu pai, a qualidade de tocar o momento e a pessoa com quem está.
A minha mãe era uma pessoa também muito sólida. Devo muito à minha mãe, em muitos aspectos. O meu pai era um homem de sonho, de pedagogia, de desejo de ajudar os outros, real, sincero. A minha mãe era uma mulher com os pés fincados na terra, na realidade, que adorava o meu pai, que me adorava a mim. Tive sempre essa coisa, desde miúdo, que os pais me adoravam, quer um, quer outro. E que me acompanhavam sempre. Percebi isso com os meus cinco ou seis anos, intuitivamente, depois fui confirmando essa ideia. Não digo que vivessem completamente para mim, mas eu era o centro das atenções da casa, com os meus irmãos muito mais velhos também a ocuparem-se de mim. Deu um grande conforto na vida, ter esse carinho, essa confiança em mim, que me incutiu em mim próprio confiança.
Auto-estima é fundamental.
Exactamente. Mas a minha mãe era uma mulher forte, fortíssima. Quando o meu pai ficou doente, ela tomou conta do colégio. Era uma pessoa de poucas letras, não tinha grande instrução, mas era uma mulher de trabalho, uma mulher de grande determinação. Não se deixava engolir por histórias. As pessoas que me rodeavam, os amigos do meu pai, as mulheres dos amigos do meu pai, eram muito mais cultas que a minha mãe.
Mas ela não se deixava intimidar por isso?
Ela nunca se deixou intimidar por isso e tinha uma personalidade que toda a gente respeitava. Ai, isso não tenha dúvida.
Seria muito fácil, no meio de literatos, e sendo ela menos versada, sentir-se excluída, inferiorizada.
Não era versada, não era versada. As leituras dela foram mínimas. Tinha muito pouca instrução, fez talvez a instrução primária até à terceira classe. Mas a vida ensinou-a. E era uma força da natureza, era uma mulher que se impunha às pessoas. Quando nasci, ela tinha 38 anos. Quando me lembro bem da minha mãe, tinha um grande deslumbramento por ela, porque era muito bonita.
Era pequenina?
Não, era grande, maior que o meu pai. Uma mulher desembaraçada, a vida nunca a assustou. Tinha uma filosofia própria e dizia coisas muito acertadas de bom senso. Eu sabia que ela só tinha um calcanhar de Aquiles. Era eu, e, em segundo plano, o meu pai. O meu pai, além de todas as outras coisas, foi um homem um pouco mulherengo, pregou-lhe algumas partidas de que houve ecos em casa, mas aquilo manteve-se sempre...
O seu pai gostava muito da sua mãe?
O meu pai tinha por mim uma fixação, mas também apreciava muito a minha mãe. Sabia que era uma mulher de bom senso, uma mulher de trabalho. O meu pai esteve muitos anos na clandestinidade. Era uma pessoa em ascensão; tinha ministro, deputado, governador-civil, professor dos Pupilos do Exército, vogal do Tribunal de Contas, tinha uma carreira brilhante. De repente, vem a ditadura e o meu pai entrou logo na conspiração contra a ditadura. Entre 1926 ou 27 e 1935, o meu pai andou sempre na conspiração. Portanto, os anos da minha infância, passei-os sozinho com a minha mãe.
Quer dizer que não o via, ou via-o muito raramente.
Em encontros fortuitos, mas lembro-me dele. E de a minha mãe me dizer: “olha que o teu pai chama-se Sr. Araújo, trata-o por Sr. Araújo” .
Mas então a imagem dele foi mitificada. Imagino que tenha chegado através das histórias que a sua mãe contava.
E das histórias que ele próprio contou, e dos meus irmãos, e de toda gente, e dos amigos do meu pai, e de toda a gente. Depois perdeu uma perna. Depois fundou o colégio, que ainda hoje existe, e que é um grande colégio dirigido pela minha filha. Aos domingos e aos sábados começavam a aparecer os amigos do meu pai. Com as mulheres ou sem as mulheres, chegavam lá sempre para conspirar. E eram tardes inteiras, às vezes noites. Almoçavam por lá, às vezes jantavam, e a minha mãe nunca se atrapalhava com isso. Eu ouvia deslumbrado as discussões dos amigos do meu pai porque estava ali sempre, a discutir uns com os outros sobre o Salazar.
O fascínio por Salazar vem daí?
Por isso é que quero fazer um dia uma biografia do Salazar: toda a gente era contra. Depois vivi a Guerra de Espanha e a Guerra Mundial, então já com uma consciência diferente. Foi isso que me foi formando.
Alguma da gente com quem mais tarde se dá é da literatura. Frequentava também o cinema?
Sempre tive a paixão pelo cinema. Gostava pelo imaginário que dá o cinema, pelas actrizes, pelos actores. Tirando os períodos de cadeia, em que não podia ir ao cinema, eu ia ao cinema uma, duas, três vezes por semana. Como os meus pais me davam dinheiro, ia. O cinema era uma fonte de diversão naquela altura em que as pessoas iam todas. Conversávamos entre nós, depois íamos tomar uma cerveja e discutíamos até altas horas o que é que era o filme.
Discutiam sobre o que tinham visto, sobre o que tinham lido, sobre o que se passava. Essa dimensão era fundamental na sua vida. Que interlocutores teve nas letras?
Quando era jovem, os meus amigos foram os expoentes máximos do neo-realismo - não é por acaso. O Mário Dionísio era o teórico no neo-realismo, o Pomar, na altura, era neo-realista, os outros pintores que eram meus amigos estavam mais ou menos nessa linha. Depois, os escritores: o Fernando Namora, o Carlos de Oliveira, o Manuel da Fonseca, o Joaquim Namorado, o Alves Redol, o Soeiro Pereira Gomes, toda essa gente, foram todos da minha privança íntima. É toda a escola neo-realista.
Tem com a literatura brasileira uma relação igualmente intensa.
Li todos os livros do Jorge Amado, e depois conheci-o muito bem. Também li e fui influenciado pelo Erico Veríssimo; o «Embaixador» é um livro extraordinários sobre a América Latina.
Uma veia mais psicologista, como a da Clarice Lispector, interessa-lhe também?
Interessa, naturalmente que me interessa, e cada vez mais. A certa altura apercebi-me que o neo-realismo era...
Uma coisa datada?
Uma coisa um pouco datada. Era a chamada literatura engagé, a literatura ao serviço da política. Percebi que isso não era um caminho, que os grandes escritores não podiam ir por aí. Eles todos se modificaram um pouco. Os melhores, os mais dotados. Não se pode dizer hoje que o Carlos de Oliveira seja só um escritor neo-realista.
O Carlos de Oliveira é um grande escritor, ponto.
Um grande escritor, um grande poeta. O José Cardoso Pires também foi meu amigo desde os tempos da universidade. Ele era de Ciências e eu de Letras, andávamos ali a conversar, participávamos nas mesmas tertúlias. Tertúlias de café com 20, 30 pessoas, vinham uns, iam outros, discutíamos, conhecíamo-nos todos. Era interessante.
Falavam também da vida uns dos outros? Ou só falavam no essencial, de política, do que se passava?
Não, falávamos do que se passava, da literatura, da arte, dos filmes, das peças de teatro. Não se esqueça que a minha mulher também foi uma grande actriz, e falava-se muito nas peças que ela fez. Por via dela, participei em muitas coisas que tinham a ver com teatro, com a Amélia Rey Colaço, que eu conheci bem, e o Robles Monteiro.
Gostava verdadeiramente de teatro?
Gostava verdadeiramente de teatro. Gostei sempre mais de cinema do que de teatro, para lhe dizer a verdade. O teatro no nosso país era sempre um pouco dramatizado, estilo Alves da Costa. Falavam de uma maneira um pouco estranha, pouco realista...
Num estilo gongórico...
Um pouco gongórico. Eu gostava de cinema, mas gostei muito das peças que a minha mulher representou. Vi o Lorca, o Régio, isso tudo.
O dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues, cujo estilo é completamente subversivo, interessou-lhe?
O Nelson Rodrigues aparece muito mais tarde. Estou a falar da geração que aparece com força nos anos 50, mas que vinha de trás.
Nelson Rodrigues não saiu do Brasil... Mas outros, como Jorge Amado, viveram exilados na Europa. Foi em Paris que tomou contacto com o mundo das letras internacionais?
Conheci o Jorge Amado e a mulher em Paris, no hotelzinho. Conheci, ao mesmo tempo, um grande escritor cubano que vivia lá. Havia um conjunto de escritores de vários países do mundo que comecei a conhecer. Por exemplo, o Gabriel Garcia Marques, de quem fui amigo, embora tivesse tido grandes discussões com ele por causa do Fidel Castro. Mas só conheci o Gabriel Garcia Marques depois do meu exílio, nos anos 70. Como conheci o grande escritor peruano Vargas Llosa, ou o mexicano Carlos Fuentes. Agora a minha filha encontrou o Vargas Llosa em Paris e ele disse: “dê um abraço ao seu pai. Olhe que estou a torcer por ele, porque acho extraordinário que se apresente com aquela idade. Estão a discutir a idade? Que burrice!”.
Conheceu as grandes figuras do Século XX, mas não percebo como é que se relaciona com os trastes, com os medíocres. A maior parte das pessoas que conhecemos e com as quais lidamos todos os dias, não são pessoas proeminentes, especialmente talentosas ou esforçadas.
Não gosto muito das pessoas pretensiosas, nem das pessoas que se fazem passar por uma coisa que não são. Como gosto das pessoas em geral, procuro sempre, mesmo nas pessoas más, ou nos que são uns trastes, como diz, tirar o que há de bom nelas. Todas as pessoas têm coisas boas e coisas más, tudo depende da percentagem. O Mitterrand dividia as pessoas em duas categorias: aquelas que ele achava inteligentes e boas, com as quais tinha umas atenções, uma amizade requintada, (tive a sorte de ter sido metido nessa categoria por ele e de ser amigo dele até ao fim da vida). Em relação a tudo o resto era de uma altivez, de uma incompreensão, de um desprezo que para mim eram chocante. Eu não tenho isso. Evidentemente que sei muito bem distinguir aquilo que são jóias em estado puro, de pureza interna, e aquilo que são pessoas mesquinhas, pobres de espírito, intriguistas, bajuladores - não gosto nada dos bajuladores! Mas mesmo nessas pessoas há coisas boas. E pode-se retirar delas o que há de melhor. Isso é bom para nós, que fazemos essa experiência, e elas ficam gratas por termos feito isso.
Devo depreender que acredita na bondade do humano...
Acredito profundamente que cada ser humano tem consciência. Por que é que temos o senso do bom e do mau? Porque é que temos o sentido do belo? Vale a pena acreditar na consciência das pessoas. As pessoas todas, mesmo que nos façam uma grande malandrice, têm consciência que a fizeram. Às vezes querem emendar a mão e é preciso dar-lhes a segunda oportunidade. Esta é a minha noção do relacionamento com as pessoas. A minha mulher costuma dizer: “não te lembras do que ele já disse de ti?, esse tipo disse de ti isto assim e assim”.
Há um ano, quando nos encontrámos, estava a ser lançado o livro dos poemas da sua vida. Falou-me de um poeta que lhe tinha feito uma malandrice qualquer, e que, apesar de não ser um excepcional poeta, decidiu incluir na sua antologia.
É o Armindo Rodrigues.
O seu gesto quis ser uma bofetada com luva branca?
O Armindo Rodrigues é um homem muito emocional. Embora tenha versos de pé quebrado, quando entrou na fase religiosa do Comunismo, é um bom poeta. Fomos muito amigos, ele era mais velho do que eu. Depois do 25 de Abril, transformou-se num comunista furioso. Acreditou naquela aventura da reforma agrária e por aí fora. Então, começou a escrever artigos sobre mim, terríveis. Um dia, morreu o Ary dos Santos, que é um bom poeta. Eu estimava o Ary dos Santos, apesar de o Ary dos Santos também ter aderido ao Partido Comunista. Mas como ele morreu e eu era primeiro-ministro, resolvi ir prestar uma homenagem. Entrei na Sociedade de Autores sozinho, como é meu hábito, sem segurança nem nada. Estava ali todo o estado-maior comunista a fazer uma espécie de homenagem, a última, ao camarada. Aquela gente toda olhou para mim como se fosse uma mosca que cai na sopa! Como é que este tipo se atreve a vir aqui?
Era tão grave assim?
Havia nessa altura no ar um antagonismo terrível. Foi o meu primeiro governo. A única pessoa que se aproximou de mim foi a Isabel da Nóbrega, nessa altura vivia com o Saramago: “Não se importe, Mário, que estes tipos são uns fanáticos”. No dia seguinte, apareceu uma carta num dos jornais comunistas, uma “carta aberta a Mário Soares”, escrita por Armindo Rodrigues. Dizia assim, mais ou menos: “Mário Soares, você é um homem de uma desfaçatez absoluta! Você, que tem sido um grande reaccionário, que tem prejudicado esta revolução tão bela dos cravos, você que destruiu a Reforma Agrária, atreveu-se a vir a um enterro de um camarada? Quero avisá-lo que dei ordens expressas à minha família e aos meus amigos para que, se o virem no meu funeral, o expulsem pelas escadas abaixo a pontapé, que é o que você merece!”. E li aquela carta e ri-me.
E riu, como ri agora?
Claro, é uma coisa de um fanatismo que só compromete a causa que ele julgava que defendia. Bem, tentei escrever-lhe uma carta, que tem alguma graça, mas que não lhe reproduzo agora.
A partir dessa história, presumo que leia romancistas de todos os quadrantes políticos.
Leio o Mário de Carvalho, que é muito interessante e muito dotado. Leio os livros do meu amigo Urbano Tavares Rodrigues; e o livro de memórias do irmão. Agora leio o Saramago, ao princípio não lia.
A vossa relação nem sempre foi pacífica.
Tive um desaguisado com o Saramago quando ele era director do Diário de Notícias. Conhecíamo-nos desde a juventude. Apareceu um livro dele que me disseram que era muito bom, o «Memorial do Convento»; não o li. Depois apareceu «O Ano da Morte de Ricardo Reis», voltaram-me a dizer que era uma obra-prima; e então, aproveitei umas férias no Algarve e li o «Memorial do Convento». É um livro fabuloso, realmente fabuloso e importantíssimo na literatura portuguesa. Fiquei deslumbrado. Fui ler logo a seguir o outro, e ainda fiquei mais deslumbrado. Resolvi escrever-lhe uma carta neste estilo: “Meu caro José Saramago, como sabe não gosto nada de si do ponto de vista político e tenho muitos desacordos consigo. Várias pessoas me chamaram a atenção para os seus livros. Acho que você é um grande escritor português, que prestigia o nome de Portugal, e, não obstante não termos relações, entendo, como primeiro-ministro do país, que lhe devo esta homenagem. Devo dizer-lhe que você está a prestigiar Portugal com os livros que escreve. Receba os cumprimentos do Mário Soares.” Demorou um mês ou coisa assim, mas veio uma resposta. O Saramago escreveu-me uma carta engraçada que era mais ou menos isto: “Caro Mário Soares, eu ainda gosto menos de si do que você de mim em matéria política, porque o responsabilizo por muita coisa. Mas seria hipócrita se não lhe dissesse que a sua carta me deu muito prazer e que lhe agradeço os comentários que fez. Fico muito feliz que tenha gostado dos meus livros”. A partir daí, quando nos vimos começámos a rir e voltámos a ter as mesmas relações.
Mitterrand dividia as pessoas em função da sua inteligência. Quanto a si, a matriz de uma eventual divisão é qual? A religião?
A crença é uma coisa do foro individual. É-se crente ou não se é crente. Mas há muitos pontos em que as pessoas podem conviver. Lembro-me que tinha discussões com a minha professora de Francês, uma senhora já de bastante idade, mas de uma grande inteligência; chamava-se Carolina Franco. Era filha do Visconde de Franco, era de uma família aristocrata. Os azares da vida fizeram com que tivesse pouco dinheiro e acabou por ser professora. Essa senhora não era católica inicialmente, mas converteu-se por volta dos 40 ou 50 anos. Era uma católica muito genuína, que acreditava profundamente, como os católicos convertidos em geral acreditam, e que tinha discussões imensas com um irmão, Xavier da Silva. Era grande amigo do meu pai e um digno pensador, como se dizia no tempo, que tinha sido Ministro dos Negócios Estrangeiros. Estavam sempre a discutir! E eu ia dar lições de Francês com a senhora, encontrava-a com o irmão, e, em vez do francês, entrava nas discussões!
Que lado tomava?
Eu, a favor sempre do Xavier, que era um homem inteligentíssimo e digno pensador, e ela sempre a bater no irmão e a bater em mim por não termos crença. Ela, no final das discussões, dizia-me assim: “Você, Mário, não tem religião, mas ainda um dia vai ter; estou lá em cima e hei-de ver isso. Porque você tem uma coisa que é ainda mais importante do que ter religião, que é a inteireza e a rectidão de carácter! Ainda hei-de vê-lo, lá de cima, um grande apóstolo da nossa santa religião.” Palavras textuais: um grande apóstolo da nossa santa religião! Ela tinha escrito num livro de orações: “Ó meu Cristo, ó meu Cristo, ó meu amor, ó não sei quê”, umas coisas apaixonadas...
Parecia uma carta ao namorado!
Uma coisa estilo Santa Teresa de Ávila, um amor místico ao Cristo. O irmão tinha visto aquilo e o que é que escreveu por baixo? Ele era muito repentista e escreveu uma quadra que eu fixei, que nunca mais esqueci, com uma letrinha miúda: “Pois, senhores, em vistas disto/de um amor tão exaltado/estou a ver que Jesus Cristo/ ainda acaba em meu cunhado”! Isso deu uma discussão horrorosa. Isto mostra que a religião é uma coisa íntima. Respeito muito as pessoas religiosas, se me disser que não tenho crenças, eu tenho crenças não-religiosas.
Acredita em quê?
Eu tenho uma crença que não se explica por razão de natureza racional, mas que é verdadeira: acredito no Homem, acredito no progresso do Homem, acredito na consciência.
Acredita que ele é bom?
Que tem inato o sentido do bem e do mal. Há aqueles que não são capazes de resistir ao mal e há aqueles que são capazes. E isso pode ser feito sem ser [num ângulo] religioso. Acredito no progresso, tenho essa crença profunda. Eu, aliás, numa discussão que tive muito, muito interessante que infelizmente não está publicada... Uma vez convidaram-me para discutir com o senhor Cardeal Patriarca estes problemas da crença e da não crença, num grande auditório no Colégio Pio XII, levava mil e tal pessoas, estava cheio. A Maria João Avillez era a moderadora, mas quase não moderou. Eu comecei por dizer àquela assembleia, e foi um gelo, que aquilo era quase tudo católicos, que não acreditava em Deus, que não acreditava na imortalidade da alma. Disse logo assim, para começar. O Cardeal respondeu dizendo que eu dava prova de coragem, dizendo aquilo com simplicidade; mas se eu julgava que os católicos não tinham dúvidas e tinham só certezas... Os católicos também têm dúvidas, toda a gente perante uma história tem dúvidas. A partir daí, desenvolveu-se toda uma discussão à volta desta temática. Foi um dos momentos interessantes da minha vida, essa discussão_ infelizmente não está publicada. Aliás, tenho frequentado desde há 15 anos os chamados encontros ecuménicos, organizados pela comunidade de Santo Egídio em todo o mundo.
Vai porquê?
Estão pessoas das mais diferentes religiões e alguns poucos que não têm religião nenhuma. Aparece lá muito o Jean Daniel, que é o director do Nouvelle Observateur, e também o director do Reppublica, um jornal italiano, que tem uma posição bastante semelhante à nossa. Até costumamos dizer, por brincadeira, que somos os agnósticos de serviço!, porque vamos discutir, e discutimos entre as religiões.
Vai sempre à procura de se enriquecer, por via da discussão?
Vou à procura de mais conhecimento.
Por via do encontro com a diferença. A sua vida fica mais rica.
Mais rica, no sentido moral do termo. Tenho tido a sorte de conhecer as personalidades mais interessantes, quer no plano filosófico, quer no plano literário, quer no plano político, que passaram por este século. Conheci bem, e ele tentou também convencer-me em matéria religosa, o Jean Guitton, que foi um académico que morreu há poucos anos, com mais de 90 anos e uma lucidez admirável. Tenho os livros dele autografados. Tinha uma visão muito larga e muito generosa da fé. O fanatismo é a pior coisa que existe.
Qualquer forma de fanatismo?
Em tudo, na religião, em todas religiões, e também na política. Fanatismo, intolerância, as pessoas estarem convencidas de que têm a verdade no colete, saberem meia dúzia de coisas disto, daquilo, do que for, e não saberem de mais nada, e estarem convencidos de que aquilo é a bíblia. Bem, isso, realmente é o fanatismo, é o mal.
A sua bíblia é o mundo.
Exacto.
Estava a pensar que livro tem à cabeceira... E talvez seja o mundo.
Tenho vários livros, depende das fases. Mas devo dizer que agora tenho poucos livros à cabeceira. Há mais de dez anos que deixei de ler na cama. A leitura na cama é péssima para as cervicais. Habituei-me a ler num bom sofá que tenho próximo da cama, ou então num quarto ao lado, para não incomodar a minha mulher, se ela está a dormir...
Pela primeira vez, desde que anunciou a sua candidatura, parece que se justifica muito mais em relação às coisas que fez...
Ninguém sabia nada porque não tenho por hábito andar a vangloriar-me do que fiz. Quando se vê agora o que fiz nestes dez anos, as pessoas ficam muito espantadas. Sou uma pessoa que gosta de batalhar, gosta de discutir, gosta de viver as ideias, gosta de se pronunciar sobre as coisas. E tenho curiosidade pelo mundo e pela vida. Nunca a perdi, e isso é um sinal de juventude.
É a sua maneira de...
Reagir à velhice.
... guerrear esse inimigo poderoso, esse grande inimigo da sua vida, que é a velhice.
Eu até agora não tenho sentido grandes estragos. Mas posso-lhe garantir que sou muito introspectivo e muito crítico de mim mesmo. Quando começar a sentir, darei imediatamente por isso. O meu médico diz que sou um bom doente. Sempre que estou doente, coisas pequenas, uma gripe, e ele me receita qualquer coisa, cumpro. Quando vou ao médico é para cumprir. Se vou àquele médico e não a outro, é porque tenho confiança nele. Ele diz uma coisa interessante: “Você quando me chama, diz-me precisamente aquilo que sente e aquilo que tem”. Costumo introspeccionar-me e saber as faltas que tenho. A velhice... Como dizia o general DeGaulle: “A velhice é um naufrágio”. Dizia no fim da vida, claro.
E é?
Eu acho que não é um naufrágio se a gente souber compensar aspectos negativos da velhice com alguns muito positivos, que são a experiência, o conhecimento e a memória, (se não a perde). Tenho uma memória que, como todas, é emocional, que está ligada a factos que me marcaram. Mas por enquanto não me sinto diminuído para participar num debate público. A primeira dificuldade que senti para comunicar com as pessoas, foi perante o preconceito que elas criaram: que eu tinha 80 anos, logo não devia ser presidente. Foi por isso que falei várias vezes da idade.
Por isso se justifica...
Não é uma justificação. É que perante perguntas que me põem, tenho que responder. É uma resposta àqueles que não acreditam. Há muitos exemplos, não sou um caso único. Sou um caso feliz, isso sou, e até privilegiado. Mas não fiz nada para isso, foram os genes, nasci assim.
Insisto no tom, que parece de justificação. Tem uma evidente auto-estima e confiança em si. Mas parece afectado. As pessoas dizem que está velho e tenta dar provas da sua curiosidade, da sua vontade de viver, da sua condição.
Não preciso de dar provas, porque isso é genuíno. Penso que os portugueses estão a começar a perceber isso mesmo: afinal ele está em boas condições, afinal talvez valha a pena ouvir o que ele diz, e daí, afinal, talvez valha a pena votar nele.
Esta entrevista, conduzida por AMR, é parte integrante do livro "Mário Soares - O que falta dizer" (2005), de AMR, Elsa Páscoa, Maria Jorge Costa. A reprodução é feita com o consentimento da editora Casa das Letras.